Donald Trump, o “exit” dos EUA
Recentemente, a propósito da situação brasileira, me vali de citação de J. M. Thompson na obra Napoleón Bonaparte, abrindo o capítulo da campanha na Espanha do genial estrategista, por onde começaria a derrocada consumada em Waterloo:
Suponha um amontoado de fatos, alguns promovendo a sobrevivência, outros a destruição; suponha ainda que eles se sobrepõem no tempo, de modo que o espectador no litoral da história não consegue saber ao certo se a maré ainda está virando: mesmo assim, se ele for suficientemente observador, notará uma onda que se eleva sobre todas as outras, e uma que assinala o primeiro malogro em alcançar aquele nível.
A citação tinha o propósito de realçar as dificuldades analíticas da incerteza e imprevisibilidade dos acontecimentos, quanto à (in) determinação, ao papel do acaso ou do que é contingente.
Ela volta a calhar com a eleição de Trump presidente dos EUA, muito possivelmente um fato de grande magnitude política.
A vitória se inscreve na crise e instabilidade que marca indelevelmente este início do século 21, próprias de uma fase de transição histórica, que condena a velha ordem sem que uma nova ordem fulgure, pois ainda impotente.
Em apenas dezesseis anos desde 2001, são pródigos os fatos. A emergência do terrorismo mundial que derrubou as Torres Gêmeas em 2001; a resposta terrorista de Estado promovida pelos EUA; a Pax Americana pretendida; a alteração do equilíbrio internacional de forças em direção à multipolaridade; a segunda maior crise histórica mundial do capitalismo; a vitória do Brexit e, sob o mesmo signo, a vitória de hoje de Trump nos EUA.
A tônica da maior parte da ideologia dominante acerca das eleições dos EUA, dentro e fora do país, foi pensar a partir dos próprios desejos – inclusive na mídia nativa brasileira, a vitória de Hillary era uma “necessidade histórica”.
Mas o resultado foi outro. Com Trump, por vontade da maioria dos eleitores, o sonho dos colonos fundadores e o ideário do destino-manifesto do povo norte-americano, será perseguido de outro modo, não menos agressivo e arrogante – “olhar para dentro”, apesar da tradição republicana de livre comércio; promover o protecionismo que ameaça todo o edifício da globalização neoliberal; substituir o politicamente correto pelo discurso explícito da intolerância, capitaneando o ressentimento com a globalização.
Trump quer mais muros: contra os imigrantes, entre os países do Nafta (México e Canadá), contra o TTP (Tratado trans-Pacífico), afetando a ordem pretendida com a China e a Ásia em geral sem falar dos países da América Latina às margens do Pacífico. Voltando-se “para dentro”, a sua proposta altera toda a arquitetura da atual ordem mundial.
A vitória atesta como reagem os trabalhadores à crise capitalista mundial, mobilizando o ressentimento com o discurso dominante que não melhora a condição de vida de vastas maiorias sociais (antes pelo contrário). O próprio Fernando Henrique Cardoso, se pergunta (como deve estar ocorrendo com todos os pregoeiros da atual ordem da globalização neoliberal) “como responder ao tempo de desemprego e de outorgar nova legitimidade ao pacto social de pós-guerra” que manteve uma ordem mundial estável? “Como responder aos novos tempos de desemprego e baixo crescimento e evitar a onda direitista e reacionária”? O Brexit na Grã Bretanha já fora sinal disso.
As reações à vitória de Trump, na França e na própria União Europeia (pela voz da ministra de relações exteriores), foram frias e nem citaram o nome do eleito. Hollande afirmou que a votação abre “um período de incerteza” nas relações internacionais. Em declaração austera e dura, disse felicitar o americano, “como é usual”, mas advertiu para as “incertezas provocadas pela desordem no mundo”.
De sua parte, entretanto, Putin parabenizou vivamente Trump e espera mudanças nas relações EUA-Rússia. Aliás, expressou sua preferência aberta já durante a campanha. Afirmou que agora chega realmente ao fim o período da guerra-fria. Já a China, alvo central da estratégia norte-americana a médio prazo, terá que examinar atentamente a evolução dos fatos, provocada pelo TTP, podendo acentuar a aproximação com Rússia e a própria Europa.
No caso do Brasil, o governo torceu abertamente por Hillary – é a que estava mais em conjunção com a agenda ultraliberal em curso no país, atrelando a nação à locomotiva da globalização capitaneada pelos EUA.
Recolhe-se nas eleições norte-americanas, o resultado de toda a poderosa ofensiva contra a política e os partidos, por meio da espetacularização e “despolitização” da política enquanto forma mais elevada da consciência social para mediar o governo da sociedade e os interesses conflitantes.
Aliás, especificamente, o magnata Trump, assentou toda a força de sua trajetória política no império midiático, e encarnou diretamente o discurso direto à massa da população quase sem mediações de seu partido republicano (cujos grandes próceres, aliás, o abandonaram).
Foi derrotada, com a vitória de Trump, a glamourizada “ilustração” liberal – o sentido identitário que fragmenta o povo em múltiplos interesses sem pressupor uma nova ordem social, sob a ideologia do multiculturalismo, do politicamente correto e do cosmopolitismo.
Em especial, retorna ao palco principal o papel dos Estados nacionais para atender anseios e aspirações não cumpridos pela ordem da globalização neoliberal.
No panorama de conjunto, a pergunta mais ingente é se terá chegado ao fim a Pax Americana? Muitos estão propensos a responder que sim, pode ser. O tempo dirá.
Enfim, são muitas as perguntas e poucas as certezas. Como responder ao que seria melhor no resultado da eleição norte-americana sem indagar: melhor para quê e para quem? Tudo precisa ser respondido num quadro de referências analíticas que não são convergentes mas contraditórias.
Em tais referências, para a luta pelo socialismo, há que se considerar que há viragens históricas disruptivas e esta é uma fase pela qual passa o mundo.
O neoliberalismo desmancha no ar tudo que foi solidificado pelas conquistas civilizatórias progressistas acumuladas nos 75 anos após o término da 2ª Guerra Mundial, favorecidas pela derrota do nazifascismo e a disputa com o campo socialista então vigente. Ao mesmo tempo, está em curso poderosa crise mundial capitalista que não encontra saídas progressistas por ora e, por isso mesmo, promove grandes retrocessos aos trabalhadores e povos. O poderoso desenvolvimento de forças produtivas sob a 4ª Revolução Industrial emergente, em meio a tal estado de coisas, ao invés de favorecer os trabalhadores, promete nova geração de desmonte da materialidade e cultura do mundo do trabalho.
O neoliberalismo promove o esvaziamento da norma democrática face aos verdadeiros poderes da sociedade – o capital, as finanças, as comunicações monopolizadas, os poderes políticos, diplomáticos e militares imperialistas. Disso emergiu a pregação do choque de civilizações e a mobilização do sentimento mais bruto do ódio e intolerância ao “outro”. A crise humanitária da imigração é uma das faces mais horrendas da barbárie neoliberal e ilustrará os livros de História quando se apontar para a “globalização” triunfante.
Uma vasta agenda regressiva é o que o neoliberalismo propicia ao mundo. Agudiza-se a luta de classes contra os trabalhadores, a agressividade imperialista contra o anseio das nações dependentes e os povos pelo desenvolvimento, trabalho, direitos e liberdade.
A eleição de Trump é fruto dessas circunstâncias. Mas a História profunda deve considerar, em essência, a natureza intrínseca da civilização do Capital e do imperialismo. A pretensão hegemonista e agressiva do imperialismo norte-americano pelo domínio mundial prosseguirá e permanecerá como o verdadeiro combate para o povo norte-americano e os povos do mundo todo, se se quer salvar e avançar nas conquistas civilizacionais.