A saúde econômica de SP em risco sob o comando de financistas
Operações no mercado financeiro feitas indiretamente pelo governo do estado de São Paulo, por meio de uma empresa de economia mista chamada Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), deixarão um duro legado de endividamento para quem assumir o Palácio dos Bandeirantes depois que Geraldo Alckmin concluir o quinto mandato consecutivo do PSDB no estado. É o que prevê o diretor jurídico do Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Sinafresp), José Marcio Rielli. “No médio prazo, a dívida do estado vai triplicar. É o meu sentimento. Fiz algumas contas em relação a isso, em três a quatro anos, porque é o prazo do resgate de debêntures no mercado”, afirma.
As operações orquestradas pela CPSEC – abrigada no prédio da Secretaria da Fazenda –, chamadas de securitização de recebíveis, são similares a um processo que tomou conta da Europa e que levou a Grécia para o buraco financeiro. No Brasil, no plano federal, a securitização está expressa no Projeto de Lei do Senado (PLS) 204, que aguarda aprovação pelo Congresso. De autoria do senador José Serra (PSDB), atual ministro das Relações Exteriores, o projeto representa um dos tentáculos das mudanças propostas pelo governo de Michel Temer para fazer o neoliberalismo e a regressão social andarem a passos largos por aqui.
Trata-se da “financeirização” da economia, que no caso de São Paulo, com a atuação da CPSEC desde 2009, quando foi criada sob a gestão Serra (PSDB) no governo estadual, significa a tomada do orçamento do governo por esse processo. Ou, como afirmou o senador Roberto Requião (PMDB-PR) em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), “esse projeto surge fundamentalmente para legalizar operações que foram feitas sem o suporte da lei”.
Os termos “securitização” e “financeirização” são neologismos. Segundo Rielli, significam o avanço do setor financeiro sobre diversos segmentos da economia, com o denominador comum de concentrar cada vez mais riqueza no próprio setor financeiro, em prejuízo de toda a sociedade.
Complicado
Não é fácil entender o que se passa na companhia. Mas o fato é que a empresa vende ativos da dívida com deságio que pode chegar a 50% do valor de face dos títulos, as debêntures, emitidas sobre as dívidas de contribuintes com a receita estadual. Dependendo da qualidade dessa dívida, é um caminho que o setor público abre para os bancos realizarem lucros, convertendo o que seria dinheiro público em dinheiro privado, ou em ativos de caráter privado. O valor do deságio não é conhecido oficialmente. Os contratos de operação da CPSEC são mantidos sob sigilo.
foto: SINAFRESP/DIVULGAÇÃO
Rielli: securitização é ‘canto da sereia do mercado financeiro’
O mistério em torno das operações, que deveriam ser de caráter público, a suspeita de que a atuação da empresa pode estar lesando o interesse público e a evidência de que o negócio da CPSEC fere a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) levaram o sindicato dos agentes fiscais a abrir, em setembro, uma ação popular contra o governo Alckmin no Ministério Público do Estado, com pedido de suspensão das operações da empresa. Do ponto de vista da lei, o governo estadual não pode realizar esse tipo de operação de crédito, com a compra por meio do mercado financeiro.
A ação arrola como réus os ex-secretários da Fazenda Renato Augusto Zagallo Villela dos Santos e Andrea Calabi, e o presidente da Companhia Paulista de Securitização, Jorge Luiz Avila da Silva. “O autor busca com a presente Ação Popular anular atos lesivos ao patrimônio público (…) Denuncia também grave burla à Lei de Responsabilidade Fiscal, com potencial efetivo de relevante comprometimento das contas públicas e das finanças das administrações vindouras”, afirma o texto.
Em resposta à ação, a promotora Regina Gomes de Macedo Leme, da 12ª Vara da Fazenda Pública, do MP estadual, indeferiu o pedido de suspensão das operações da empresa e restituição dos valores pelo mercado financeiro. Mas manteve a investigação da atuação da CPSEC, uma vitória parcial para os autores da ação popular.
Em nova investida no Ministério Público, os autores da ação solicitaram, em outubro, por meio de uma emenda à petição inicial, que fossem juntados ao processo todos os contratos celebrados pelos réus para a verificação, mediante auditoria, da validade jurídica dos negócios, bem como os valores envolvidos nas operações. A emenda foi motivada pelas declarações dos representantes da empresa, de que suas operações são absolutamente sigilosas. “É preciso que sejam apurados todos os valores indevidamente cedidos à sociedade de economia mista (CPSEC), os valores de comercialização das debêntures no mercado de capitais, os gastos com a escrituração e a emissão das debêntures, com a contratação das distribuidoras de títulos, dos corretores de valores e instituições financeiras envolvidas no negócio”, afirma a emenda.
Sete chaves
Em palestra sobre “sociedades com fins específicos” – outra designação dada a essas empresas de economia mista –, em Ribeirão Preto, interior paulista, Avila da Silva chegou a afirmar com todas as letras que os contratos entre a CPSEC e os investidores só serão exibidos mediante uma determinação judicial, ou da Comissão de Valores Mobiliários. São contratos “fechados” e têm “muitas características”, alega o presidente da companhia.
O diretor do Sinafresp lembra que desde que a empresa foi criada o governo do estado já captou cerca de R$ 2 bilhões, por meio de três operações. Mas ele também destaca que, para captar esse volume, foram lançados R$ 6 bilhões em debêntures e que a diferença, de R$ 4 bilhões, corresponde a títulos de uma classificação secundária, que o mercado não quer – conforme a qualidade da dívida, os títulos são classificados em “A” ou “B”. Outra questão é o capital social da empresa, de R$ 7 milhões, um valor irrisório diante do volume de recursos com os quais lida.
foto: JOSÉ CRUZ/ABR | JEFFERSON RUDY/AG SENADO | VALTER CAMPANATO/ABR
Para Requião e Lindbergh, projeto de Serra legaliza operações irregulares e endivida futuros governos
A CPSEC foi criada com capital de 3,350 milhões de ações, das quais apenas três pertencem a pessoas físicas. Uma delas é o ex-secretário Renato Augusto Zagallo Villela dos Santos. Das três operações realizadas, todas durante o governo Alckmin, duas foram na gestão do economista Calabi e uma na gestão de Villela dos Santos.
Em defesa da CPSEC, a Secretaria da Fazenda afirma, por meio de assessoria, que a ação popular contra a empresa parte de alegações “falsas e equivocadas”. E que todas as operações foram autorizadas pela Assembleia Legislativa, com amparo da lei de 2009 que criou a empresa e aprovou a cessão de direitos creditórios ao mercado financeiro. A assessoria afirma ainda que a LRF não veda a realização de operações para antecipação de receita pelo governo.
Mentor da CPSEC durante o governo de José Serra no estado, o atual secretário de Fazenda do Paraná, Mauro Ricardo Costa, falou em defesa das operações em audiência no Senado em 24 de novembro. A audiência pôs em discussão o PLS 204, que pretende autorizar o esquema de emissão de debêntures para que também o governo federal possa “reforçar” seu caixa. Costa tentou argumentar que não se trata de cessão de créditos tributários, o que é vedado pela lei. “Nós estamos cedendo o direito autônomo de recebimento do fluxo financeiro referente a esses créditos tributários. O crédito tributário não será cedido, não será vendido para a iniciativa privada”, defendeu, afirmando ainda que o esquema não aumenta o endividamento do estado.
Modelo em expansão?
A experiência da CPSEC, antecipando em São Paulo um modelo de financeirização da dívida pública que o governo Michel Temer deseja para o país, não é única. Outras operações têm sido feitas com o mesmo espírito, nos municípios de Belo Horizonte e Nova Iguaçu (RJ) e no Distrito Federal. Há ainda iniciativas similares no município de São Paulo, chamada de Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura (FMSAI), criado em 2009, e nos estados de Goiás (Goiasparcerias) e Rio de Janeiro (CFSEC).
“Em que pesem as diferenças de cada modelo adotado, em comum todos eles apresentam a característica de o ente receber um determinado valor de um investidor e, em troca, entregar o fluxo de receitas advindas dos direitos creditórios da dívida ativa”, afirma o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) em parecer sobre o tema na CAE.
O senador comenta a questão de fluxo de receitas versus direitos creditórios, apontada por Mauro Ricardo Costa, e entende que não há relevância nessa discussão. “O relevante é verificar se a operação gera ou não passivos para os futuros governantes”, sustenta Lindbergh.
A discussão recente em torno do engessamento dos orçamentos de municípios, estados e União por 20 anos, com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, é apenas uma das faces da tentativa de amarrar as contas públicas aos interesses do mercado financeiro. Na sequência, virá o embate pelo PLS 204.
Rielli reitera a função estratégica da securitização para que o governo federal ingresse no que ele chama de “canto da sereia do mercado financeiro”. Ele também cita o Projeto de Lei Complementar (PLC) 257, que estabelece um teto para o funcionalismo público, além das outras medidas. “Estão todas coligadas, ou seja, eu restrinjo a ação do Estado por meio do aperto fiscal, e jogo isso como títulos no mercado. Simples assim.”
foto: MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO
Zoe Konstantopoulou: na Grécia, crise humanitária e perda de soberania
Lições de quem foi ao fundo do poço
Na audiência no Senado em 24 de novembro, o discurso de Mauro Ricardo foi rebatido pela ex-presidenta do Parlamento grego Zoe Konstantopoulou, chamada exclusivamente para falar sobre efeitos nefastos que esse tipo de financiamento proposto pelo PLS 204 e em andamento na CPSEC pode causar – não apenas nas finanças do país, mas com desdobramentos políticos e sociais que colocam em xeque a democracia. A fala de Zoe não repercutiu na imprensa corporativa. Não fossem por três ou quatro sites de notícias, inclusive a Rede Brasil Atual, sua presença no país teria passado em branco.
“Minha experiência diz que vocês nunca devem negar a repercussão política desse tipo de ação, que vai retirar a soberania democrática do país”, disse a ex-deputada, depois de mostrar como o processo de financeirização da dívida grega levou o país ao fundo do poço. De uma população economicamente ativa de 5 milhões de pessoas, 1,5 milhão ficou sem trabalho. O índice médio de desemprego era de 30%, e entre os jovens chegava a 60%.
“Medidas como imposição de impostos, cortes de pensões e salários, além de cortes nos gastos públicos, como em saúde e educação, provocaram uma crise econômica e humanitária”, afirmou, lembrando também que o país mediterrâneo viveu uma explosão em sua taxa de suicídios e que 300 mil empresas foram fechadas no país entre 2012 e 2013.
Para a Grécia sair do buraco, Zoe liderou o processo de criação da Comissão da Verdade sobre a Dívida Grega, instalada em abril de 2015 para promover um processo de auditoria, com a participação de especialistas internacionais, entre acadêmicos, juristas e tributaristas. Segundo a deputada, dois objetivos têm movido o trabalho da comissão: o direito à informação e a natureza criminal da produção desses débitos fiscais, que levaram à “destruição” da qualidade de vida da população.
“Eu espero que vocês recusem essas imposições econômicas e que defendam a democracia”, afirmou a deputada, depois de mostrar que o último pacote financeiro de ajuda ao seu país foi direcionado em 92% para banqueiros credores. Uma pequena parcela ficou com o orçamento do país.