Brasil e Estados Unidos: livre comércio à vista?
Em 7 de dezembro, ocorreu a 34ª reunião plenária do Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos (Cebeu). Fundado em 1976, o Cebeu é o mais conhecido e mais antigo espaço de articulação empresarial entre Brasil e Estados Unidos.
Por ocasião da reunião, foi entregue a Marcos Pereira, atual ministro do Desenvolvimento, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), uma proposta elaborada conjuntamente pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), U.S. Chamber of Commerce e Câmara Americana de Comércio do Brasil (AmCham Brasil). Tal Roteiro para o Alcance de um Acordo de Livre Comércio é visto como um importante passo nas negociações bilaterais entre Brasil e EUA rumo ao estabelecimento de uma agenda mais ampla de liberalização comercial e de investimentos entre os países.
De maneira geral, o Roteiro apresenta dois grupos amplos de iniciativas: (i) negociações visando o estabelecimento de um amplo acordo de parceria econômica entre Brasil e EUA, incluindo acesso a mercado de bens, regras de origem, agricultura, medidas (fito)sanitárias, barreiras técnicas ao comércio, subsídios, comércio de serviços, investimentos, propriedade intelectual, e mecanismos de solução de controvérsias; e (ii) uma série de temas que podem ser implementados bilateralmente no curto prazo, paralelamente às negociações mais amplas.
Esta é a primeira vez que setores privados de ambos os países elaboram um estudo desta natureza, e o objetivo deste grupo é que o Roteiro seja debatido na reunião entre as autoridades brasileiras e estadunidenses em 2017 (há uma reunião prevista entre MDIC e DOC para a primeira semana de abril de 2017).
Da perspectiva destes setores empresariais, os EUA seriam um parceiro extremamente significativo pra o Brasil, já que ocupa atualmente o segundo lugar dentre os principais destinos das exportações brasileiras. Além disso, estudos feitos pela Fundação Getúlio Vargas a pedido da AmCham afirmam que um acordo de livre comércio entre Brasil e EUA seria importante para a integração do Brasil nas Cadeias Globais de Valor (CGV).
Neste ponto é fundamental destacar que, embora seja um termo sempre presente, em nenhum momento tais “cadeias globais de valor” são descritas em detalhe, ou é dito que “elo” de tal cadeia corresponderia ao Brasil, hoje ou em um futuro hipotético. Em última instância, as CGVs são uma espécie de Shangri-La, onde todos querem chegar mas não sabem muito bem como fazê-lo.
Em suma, tal iniciativa, embora tenha se originado na esfera privada, se encontra intimamente relacionada a um tópico central da política externa do governo Temer: no caso, a crítica à política externa adotada pelo Brasil durante os governos petistas.
Nos termos da “quinta diretriz de política externa” anunciada por José Serra quando de sua posse como ministro de Relações Exteriores, ao priorizar as negociações multilaterais na área comercial (ênfase nas negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio) os governos petistas teriam deixado o Brasil de fora das “grandes negociações contemporâneas” dos Acordos Preferenciais de Comércio (PTAs), das quais são exemplos a Parceria Transpacífico (TPP) e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTPI) capitaneadas por EUA e União Europeia.
Como consequência de tal comportamento supostamente negligente com relação às mudanças na economia mundial, o Brasil amargaria contemporaneamente uma posição significativamente periférica nas tão sonhadas CGVs.
Neste sentido, e tendo em vista o contexto internacional contemporâneo, na visão de tais elites (bem como do governo Temer) o Brasil deveria buscar alternativas à estratégia multilateral, que vem sofrendo com o Brexit e a eleição de Donald Trump, por exemplo.
Assim, um acordo de livre comércio com os EUA, por exemplo, ajudaria o Brasil não apenas a exportar mais mercadorias e serviços para o mercado estadunidense, mas também a se integrar às CGVs “por meio de importações de intermediários com mais conteúdo tecnológico”, que poderiam ser reexportadas para tal mercado (Alternativas do Brasil – AMCHAM, p. 10).
Mas nem tudo são flores – se é que há alguma flor neste charco. De fato, duas questões devem ser consideradas. Primeiro, as incertezas políticas tanto acima quanto abaixo do Rio Grande: acima, do lado dos EUA, Donald Trump se elegeu afirmando que retiraria os EUA do TPP.
Assim, caso seu discurso de campanha se concretize – mesmo que minimamente – em práticas políticas, é de se esperar um esfriamento de iniciativas como as propostas pelo Roteiro. Já abaixo, do lado do Brasil, embora a (re)aproximação com os EUA seja um dos pontos de destaque da política externa do governo Temer, sua baixa legitimidade interna, associada às crises políticas correntes, parece limitar sua capacidade de negociar tratados de maior robustez.
Neste sentido, é provável que, das negociações apresentadas pelo Roteiro, ganhem destaque aquelas associadas aos temas de menor escopo, passíveis de implementação no curto prazo – o que acabaria reproduzindo a “oitava diretriz de política externa” do governo Temer: “Com os Estados Unidos, confiamos em soluções práticas de curto prazo, eu repito, para a remoção de barreiras não-tarifárias, e de regulação que entorpecem o intercâmbio”.
Segundo, a economia política de negociações desta natureza. Em última instância, embora para alguns possa parecer uma novidade, os argumentos subjacentes ao Roteiro acabam reproduzindo uma agenda de política externa já conhecida, defendida por certos setores da sociedade brasileira (muitos deles ativamente presentes no golpe e hoje significativamente representados no governo Temer) que enxergam na parceria econômica com “parceiros tradicionais” como os EUA não apenas o aumento dos fluxos de investimentos para o Brasil, mas também a entrada do Brasil nas idílicas CGVs.
Em suma, tal parceria seria um passo sine qua non para a retomada do crescimento. Ora, uma ação nestes termos implicaria possivelmente um retrocesso na política externa brasileira dos últimos anos, em especial quando pensamos em ações exitosas de inserção internacional que foram adotadas e que claramente rompiam com essa visão de política externa defendida pelo Roteiro – vide, por exemplo, BRICS, Unasul e os avanços do Mercosul.
Ou seja: a despeito do ar de novidade, e dos “novos” termos utilizados (como as shangrilescas CGVs), o Roteiro – e as visões de mundo a ele subjacentes – parecem apontar para uma inserção internacional subordinada, disposta a abrir mão dos ganhos de autonomia auferidos nos últimos anos.
Leonardo Ramos é professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM). Convidado do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.