Tecnologia: uma questão política central
1 – Por falar em “revolução digital”
Anuncia o primeiro-ministro o Programa 4.0, estratégias para a “economia digital” . Com 414 milhões de euros de “incentivos comunitários”, para projetos de “digitalização da indústria”, o programa prevê apoios às empresas e abranger 20 mil pessoas em ações de formação. Enfim, mais uma forma de dar dinheiro aos privados sem planeamento nacional…
Diz o primeiro-ministro querer “surfar na crista da onda”, o que nos leva para a fantasia de estar “no pelotão da frente” quando nos atiraram ao poço do euro. Isto num país que, graças às políticas de direita não possui valências, em muitos casos perdeu o que possuía, no domínio dos processos tecnológicos e capacidades produtivas quanto ao aproveitamento dos recursos nacionais do mar, do subsolo, da floresta, etc.
Antes de abordar a falada “revolução digital” vejamos a tecnologia como uma questão política.
2 – A tecnologia não é neutra
A tecnologia passa demasiadas vezes por ser politicamente neutra. Não é. A tecnologia é antes de mais uma questão política central do desenvolvimento. E quando falamos em desenvolvimento isto significa económico e social e o que é social, ao contrário das posições de direita, não vem por acréscimo do económico (submetido ao lucro) ou do tecnológico (como que por osmose).
Embora o desenvolvimento tecnológico (DT) se baseie no desenvolvimento científico a forma como a ciência intervém no processo produtivo define ideologias, diferentes. Note-se que a questão tecnológica abrange desde a atividade do cientista e investigador ao operário, unindo o sistema científico-técnico (C-T) e o produtivo.
A política de direita entrega o máximo possível de escalões deste sistema ao “mercado”, isto é, às determinações do grande capital e tanto mais escalões quanto mais radical for de acordo com o princípio de socializar custos, privatizar lucros. O capital necessita da intensificação do progresso técnico para contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro. Mas este progresso, pelo menos nas suas bases, compete ao Estado diretamente ou através de subsídios, sendo visto como um bem público para ser utilizado pelo capital privado. Um fator produtivo fundamental sem custos, mais um dos tais almoços grátis à custa dos cidadãos.
Deste ponto de vista, compete ao capital privado utilizar o progresso científico (dito a endogeneização do progresso) de acordo com o mercado e a motivação do lucro. Saliente-se desde já a contradição entre as motivações do lucro desta “endogeneização” e as necessidades sociais.
É neste sentido que as transnacionais se apropriam do progresso C-T e procedem à sua mercantilização através de patentes monopolistas, leis internacionais via OMC e os chamados acordos de “comércio livre”, baseados na ameaça imperialista de sanções e penalidades impostas por “tribunais arbitrais” internacionais ao seu serviço.
A questão do DT é não apenas uma questão central, mas uma questão que se coloca de forma dramática, para os povos menos desenvolvidos ou competitivos nas condições do livre comércio e livre transferência de capitais, tal como os estabelecidos na UE a que países como Portugal e outros ditos “periféricos” têm de fazer face.
3 – A política da direita na área tecnológica
A política de direita na área tecnológica praticada pelo anterior governo PS com o ministro Mariano Gago distingue-se da do PSD-CDS, porém ambas se baseiam na bondade e eficiência do capitalismo para a resolução dos problemas estruturais do país. Houve de facto um aumento do número de licenciados, mestres e doutorados, mas não um efetivo DT do país, não se reduziram as insuficiências e dependências neste campo e acentuou-se a degradação dos sectores produtivos.
O PS pretendeu realizar o desenvolvimento C-T pela integração capitalista da política científica em grandes centros internacionais, designadamente dos EUA, assumindo encargos e custos para o país, alheada das necessidades do desenvolvimento nacional e sem cuidar das reais necessidades do aparelho produtivo. Promoveu políticas depois levadas ao extremo pela direita mais reacionária, o governo PSD-CDS. Foi o caso da precariedade dos investigadores nacionais, o estrangulamento do sector universitário público, a degradação dos Institutos de investigação e desenvolvimento (I e D) do Estado.
As políticas de direita, quaisquer que fossem os protagonistas, seguiram um caminho errático com sucessivas alterações no estatuto e competências das instituições, redução de pessoal, financiamento, etc. Os objetivos foram no essencial os mesmos: estrangulamento e desvalorização dos serviços do Estado, das carreiras e salários, procurando que o capital monopolista e transnacional assumisse a condução das políticas tecnológicas do país.
Com argumentos de promoção populista da ignorância o ministro Pires de Lima (PSD-CDS), justificava os cortes às Universidades, Institutos Públicos, bolseiros doutorandos e investigadores, como necessários para terminar com “um modelo que permite à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real”. Simultaneamente os media promoviam a imagem do patronato como estrelas mediáticas e grandes impulsionadores do “crescimento e do emprego”. A realidade desmentia-os totalmente.
Ao mesmo tempo incentivou-se a emigração dos mais qualificados para saírem “da zona de conforto” (!) e as verbas passaram a ser orientadas para subsídios às grandes empresas, proporcionando toda a espécie de equívocos – ou fraudes – neste campo. Assim entre as empresas que mais receberam apoios e subsídios de DT foram… bancos e seguradoras.
Também no campo tecnológico a direita deixou ao país um gravíssimo problema. Guiada pela defesa dos interesses do grande capital económico e financeiro a competitividade centrou-se na redução de salários reais (austeridade) e direitos (precariedade): aumento da exploração dos quadros técnicos.
Os antigos diziam que “os néscios copiam os erros dos grandes”. A deformação ideológica da direita PSD-CDS é tal que não apenas copiou mas quis “ir além” dos que os próprios centros capitalistas praticam. Em nome da sacrossanta “concorrência” os Laboratórios do Estado foram colocados em competição com Universidades e Politécnicos por reduzidas verbas, sem definição de prioridades, sem coordenação, sem ligação com objetivos – que não existiam – de redução das dependências e défices estruturais do país.
La Boétie (1530-1563), autor do Tratado sobre a servidão humana , resumiu exemplarmente a política de direita nestes domínios: “As Universidades educam na lógica da servidão voluntária ao sistema”. O que a política de direita pretendeu foi colocar os quadros C-T ao serviço do pensamento dominante em vez de constituírem elementos fundamentais do progresso e participantes na definição e concretização do desenvolvimento.
4 – Transnacionais e imperialismo
A direita e a social-democracia apresentam as transnacionais como “dadores de tecnologia” quando nas condições de “livre comércio” e de direitos do capital transnacional não há qualquer hipótese de garantir efetiva transferência tecnológica. O que temos são exemplos de empresas nacionais com potencial tecnológico a nível internacional que foram liquidadas em sectores como a metalomecânica, sector automóvel, química, componentes eletrónicos, construção naval, etc.
A tecnologia é mais uma arma do domínio imperialista através das transnacionais. Os altos preços praticados, a imposição de condições restritivas desfavoráveis, a introdução de critérios desajustados às condições técnico-económicas dos países (tendentes a perpetuar os desequilíbrios sectoriais e a dependência) conduzem diretamente ao colonialismo tecnológico.
As transnacionais detêm quase que em exclusividade as patentes das tecnologias mais avançadas. A OMC impõe a política de que o saber e conhecimento são mercadorias mesmo quando essenciais à vida e à sobrevivência dos povos, como é o caso das farmacêuticas ou do sector alimentar.
A sujeição ao colonialismo tecnológico das multinacionais aparece como uma das formas mais evidentes do capitalismo dependente. O país dominado é incapaz de selecionar as produções e as técnicas mais adequadas ao seu desenvolvimento; verifica-se um atraso relativo cada vez maior na produção de bens de produção.
Sem controlo, nem defesa dos interesses nacionais o tão implorado investimento estrangeiro quando aparece limita-se a explorar força de trabalho barata. Não há transferência de tecnologia, o país permanece estagnado no estado de receptor das técnicas dos países desenvolvidos enquanto a mais-valia criada é drenada para o exterior. Exemplo, é a exploração dos recursos minerais do país, entregue a transnacionais e exportados, como em qualquer país subdesenvolvido, em bruto ou apenas preparado para transporte.
Esta questão deve levar-nos a refletir acerca da forma como os países se integram no comércio mundial, ou seja, na divisão capitalista internacional do trabalho e qual o sentido a dar ao nosso desenvolvimento tecnológico. O fecho de uma empresa de alta tecnologia como a Quimonda em 2010, é apenas um exemplo das consequências da dependência tecnológica no contexto neoliberal.
Os países mais avançados da UE exploram largos milhares de cientistas e técnicos altamente qualificados dos países dependentes, sem custos de formação e qualificação, explorando-os como reserva de força de trabalho barata no seu próprio país.
Com a globalização capitalista a exploração atingiu um novo patamar a nível mundial, baseado nos avanços tecnológicos detidos pelas transnacionais. Os bens intermédios assumem um peso muito importante no comércio internacional, constituindo cerca de 50% do seu montante. Partes e componentes são concebidas, fabricadas, montadas e vendidas em diferentes países. Esta enorme circulação de bens intermédios conduz a que o montante das exportações esconde a forma como se reparte o valor acrescentado (VA) e a mais-valia ao longo do processo.
Mesmo sem abordar as questões ecológicas, a compreensão destes fenómenos ajuda-nos a perceber os mecanismos da troca desigual, acentuados pelas “deslocalizações”, pela “livre circulação de capitais” e pelos dogmas do “livre comércio”. A maior parte do VA é captada pela concepção e desenvolvimento, comercialização dos produtos e gestão destas atividades. Assim, embora a produção, a montagem e ensaios sejam das mais importantes fases do processo produtivo, correspondem apenas entre 2% a 5% do VA. É o que a “economia digital” irá generalizar e agravar.
5 – Tecnologia e economia política
Não se resolvem os problemas tecnológicos sem resolver os de economia política. Isto é, sem dar resposta à questão de saber para que serve e a quem serve o desenvolvimento tecnológico. As respostas até podem parecer aparentemente idênticas, mas onde se distinguem é nas prioridades estabelecidas na prática. Em termos capitalistas, o objetivo fundamental é o aumento da competitividade e a garantia de maiores lucros para o capital privado. Vimos como com este objetivo a política de direita desvalorizou carreiras e salários dos quadros técnicos, empurrando-os para a emigração, desmantelando funções do Estado.
Políticas visando um DT equilibrado, planeado, com vistas ao desenvolvimento da produção nacional, foram consideradas “ideias do passado”, face às ilusões à volta das “novas tecnologias”, entregando aquelas funções ao capital transnacional que se encarregaria da “especialização produtiva”. Os resultados obtidos estão à vista, como referimos.
Numa resposta socialista o problema da tecnologia é em primeiro lugar um problema social e de estratégia económica, uma questão de soberania e não uma questão privada e tecnocrática, no sentido de maximizar o lucro capitalista, particularmente o transacional. Em suma, uma questão do planeamento económico democrático, assegurando um desenvolvimento independente com o estudo, criação e adoção das técnicas mais adequadas aos nossos recursos humanos e materiais e, sim, verdadeiramente sustentável.
Não podemos ignorar que tal não é possível no quadro da UE, tais as contradições nas necessidades e interesses dos países que a compõem no quadro da competição e da crise capitalista. Com a UE abateram-se todas as formas de proteção às atividades produtivas nacionais e a transferência de tecnologia tornou-se ilusória.
As transnacionais podem instalar no país equipamentos altamente sofisticados sem qualquer transferência de tecnologia processual, sem que os trabalhadores dominem ou sequer conheçam o processo produtivo em que estão envolvidos, limitando-se a conhecimentos com vista à operação, manutenção de equipamentos e procedimentos para a entrega dos bens, na lógica da produção de bens intermédios atrás referida.
Um sistema CT subordinado aos critérios da UE desvia o potencial nacional do cumprimento de objectivos relacionados com as necessidades do país. O DT tem de ser planificado em função das metas propostas ao plano económico, segundo as estratégias a médio e longo prazos, segundo os recursos disponíveis e as capacidades atuais.
Este processo exige o reforço do necessário suporte institucional das estruturas do Estado e laboratórios associados, melhoria do seu nível tecnológico e capacidade de intervenção com vistas à dinamização da economia produtiva e da investigação aplicada.
O planeamento económico permitirá o aprofundamento das ligações entre o ensino superior e a esfera produtiva. Serão assim criadas condições para que a concretização dos vários objetivos propostos seja acompanhada da inserção estável e permanente de trabalhadores altamente qualificados – com graus académicos diversos – que atualmente não encontram emprego ou emprego ajustado à sua qualificação. Uma posição consequente de esquerda, de princípios marxistas, integrará sistema CT no planeamento económico democrático, nos termos de uma estratégia de benefícios sociais.
Não esqueçamos, contudo, que a visão dos cientistas e técnicos de todas as áreas não pode limitar-se à sua área de especialização, são elos fundamentais da emergência da redução dos impactos ambientais e da prioritária erradicação da fome e da miséria na Terra. Tal só é possível lutando pela paz e pelo socialismo, única saída para a sobrevivência e o progresso da Humanidade.
Publicado em http://resistir.info/