A entrada de Michel Temer na presidência após o processo ilegítimo de  impeachment de Dilma Rousseff  representa a proposta de um novo projeto político para o país, com significativas mudanças na agenda interna e externa.  Na esfera internacional, o novo Ministro das Relações Exteriores, José Serra, já apontou em seu discurso de posse quais serão os dez pontos que guiarão as diretrizes da política externa brasileira a partir desse momento, destacando a necessidade de se reposicionar as relações Sul-Sul, com mais ênfase para a política comercial. Em particular, sobre as relações Brasil-África, Serra afirma que “a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. (…) Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos” (MRE, 2016), indicando que essa relação deva ter por base os interesses comerciais, e não a solidariedade propagada principalmente pelas iniciativas de  Cooperação para o Desenvolvimento Internacional ou Cooperação Sul-Sul. Entretanto, além da diretriz expressa na narrativa desse governo no âmbito do Itamaraty, destaca-se aqui nesse artigo a necessidade de se analisar também o impacto direto que as mudanças institucionais na esfera doméstica podem ter na implementação de diversos projetos de Cooperação Sul-Sul já em andamento.

Sabe-se que a Cooperação Sul-Sul brasileira teve uma expansão significativa nos últimos anos, com um crescimento de R$ 385 milhões em 2005 para R$ 1,6 bilhão em 2010 (IPEA 2010; 2013).  Essa expansão da Cooperação Sul-Sul brasileira chamou a atenção de estudiosos sobre o tema, principalmente, os projetos de cooperação técnica liderados pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que contavam com a parceria de diversos órgãos de governo para implementação, tais como  EMBRAPA, Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério da Educação (MEC), Fiocruz (Cabral, Shankland 2013; Cervo, Lessa 2014; Fingermann 2014; 2015; Menezes, Ribeiro 2011; Saraiva 2012; Vigevani, Cepaluni 2007; Soares de Lima 2005).

 A cooperação técnica brasileira, na narrativa oficial do então governo, apresentava-se  como uma alternativa à cooperação para o desenvolvimento dos países desenvolvidos  ao destacar os princípios de solidariedade, reciprocidade, demand-driven e incondicionalidade. Além disso, essa cooperação técnica tinha a vantagem de propor um novo modelo de desenvolvimento, ao se inspirar em políticas públicas de sucesso no âmbito do doméstico, as quais poderiam ser “exportadas” à outros países em desenvolvimento. Para isso, essa cooperação técnica contava com a participação de órgãos de governos que foram completamente alterados ou extintos pelo atual governo. 

 O caso de Moçambique, por exemplo, maior receptor da cooperação brasileira na África, indica como muitos projetos de cooperação técnica da ABC podem estar ameaçados em seguir continuidade devido às alterações ou extinções desses órgãos na esfera nacional. Entre esses projetos, destacam-se:   

1.     PAA África (Programa de Aquisição de Alimentos), que tem por base o programa criado pelo extinto MDA em 2003, no qual o governo adquire os alimentos diretamente dos agricultores familiares, assim como oferece uma linha de crédito com juros abaixo do mercado para a compra de maquinário.

 2.     ProSAVANA, que é um programa trilateral, em parceria com Japan International Cooperation Agency (JICA), que visa o desenvolvimento agrário do Corredor de Nacala, com inspiração no programa Prodecer realizado no Cerrado brasileiro, e, conta com três projetos integrados: Plano Diretor, o Plano de Investigação e Plano de Extensão. No PD conta com a FGV projetos na execução, o PI com a EMBRAPA e o PEM com o extinto MDA.

 3.     A Fábrica Antirretroviral, que em parceria com a Fiocruz e Farmaguinhos, busca viabilizar a produção de genéricos e antirretrovirais em Moçambique.

 A partir desses exemplos, percebe-se rapidamente que as atuais mudanças institucionais podem inviabilizar a continuidade desses projetos de Cooperação Sul-Sul na esfera internacional. A extinção do MDA, o Cancelamento do Edital Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e a exoneração de mais de 60 cargos de confiança, além da exoneração do presidente da ATER, Paulo Guilherme Francisco Cabral, indicam, por exemplo, uma dificuldade que o governo terá para dar andamento ao PROSAVANA e o PAA África, que contavam com essas instituições para sua efetiva implementação. Além do mais, a possibilidade de ser aprovada a PEC 241, atual PEC 55 no Senado, coloca em xeque as ações internacionais da Fiocruz, ao restringir seu orçamento, impedindo investimentos em iniciativas Sul-Sul.  

 A literatura especializada em Cooperação Sul-Sul destacou diversas limitações da atuação internacional brasileira, principalmente, devido à falta de um marco legal de cooperação que inviabilizava a cooperação financeira do país e dificultava a instalação de técnicos brasileiros em terceiros países para acompanhar a execução dos projetos (Cabral, Weinstock 2010). Já durante o governo Dilma, percebe-se uma arrefecimento dessas iniciativas, com cortes de 25% no orçamento da ABC entre 2012 (US$36,9 milhões) e 2014 ( US$27,8 milhões), além de uma falta de diálogo com as outras entidades, o que dificultava ainda mais  implementação de projetos, como o ProSAVANA (Folha de S. Paulo, 2015; Fingermann 2014, 2015).

 Entretanto, o fato é que as mudanças realizadas na esfera doméstica indicam que a CSS não ficará inviabilizada somente pela falta de orçamento da ABC, e a mudança de enfoque dado pelo MRE, mas também pela falta de recursos financeiros e humanos em outros órgãos de governo, como MDA, MCTI, Fiocruz, entre outros. O Brasil corre o risco de não finalizar muitos desses projetos, que envolvem em muitos casos agências internacionais do Norte por meio dos acordos de cooperação trilateral. A não finalização desses projetos coloca em xeque não somente a relação brasileira com esses países do Sul, mas também, paradoxalmente, com países do Norte, que são aqueles prioritários para o atual governo.

 

Bibliografia

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Soares De Lima, M.R. (2005) ‘A política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul’, Revista Brasileira de Política Internacional, 48(1):24-59.

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