Reféns da austeridade
Nos últimos dois anos, a adoção de uma política de austeridade reduziu o nível geral da atividade econômica em cerca de 8%. A queda acentuada do Produto Interno Bruto deveu-se tanto ao choque de custos imposto ao setor produtivo (elevação de juros e no câmbio) quanto à contração dos gatos e investimentos no setor público. Ao impor o receituário aos estados em dívida com a União, o governo Temer dificulta a retomada do crescimento. Esse é o diagnóstico do economista Marcio Pochmann, professor da Unicamp e presidente da Fundação Perseu Abramo.
“O plano federal de apostar em uma política recessiva levou a uma degradação das receitas”, diz Pochmann. Em vez de um míope corte de despesas, é preciso retomar o investimento público. “É perfeitamente possível ter um programa de incentivo a obras localizadas e fáceis de serem realizadas.”
CartaCapital: Dilma Rousseff iniciou o ajuste fiscal. Michel Temer aprofundou as medidas de austeridade e agora tenta impor esse receituário aos estados. Faz sentido insistir nesse caminho?
Marcio Pochmann: A persistência não é nova. Do fim dos anos 1980 ao início dos 1990, havia o diagnóstico de um Estado pesado, associado a elevadas taxas de inflação. Não por acaso, elegeu-se o candidato conhecido como “caçador de marajás” dessa estrutura inflada (Fernando Collor de Melo). A recessão de 1990 a 1992 resultou em um forte ajuste do setor público brasileiro, mas também houve um programa de consolidação da dívida pública, o que inviabilizou a perspectiva da Constituição de 1988 de dar protagonismo às unidades federativas a partir da própria descentralização de recursos e responsabilidades. Àquela época, os estados brasileiros tinham bancos públicos, empresas estatais, capacidade de se endividar externa e internamente.
CC: Quase todos os bancos estaduais foram privatizados. Um dos poucos sobreviventes, o gaúcho Banrisul parece estar na mira.
MP: Pois é. Esse período neoliberal levou ao processo de privatização, cujo maior impacto foi retirar dos estados a capacidade de fazer políticas de desenvolvimento regionais. Eles perderam a capacidade de se endividar em razão do acordo da dívida imposto desde 1994. De 1997 a 2016, a dívida dos estados subiu de 111 bilhões de reais, em valores atualizados, para 476 bilhões. E foram desembolsados 277 bilhões para pagar juros e amortizações, esterilizados no superávit primário.
CC: Então, se o governo federal adota determinado rumo na economia, os estados têm pouca margem de manobra.
MP: Começaram a abrir as negociações com os estados, mas o governo federal só libera recursos diante do compromisso de venda do que resta de setor público estatal. O projeto que temos hoje envereda por dois caminhos. Um é o ajuste fiscal. O outro é o combate à corrupção. Veja o caso do Rio de Janeiro. Estima-se que o ex-governador surrupiou uns 250 milhões de reais, mas o fato é que, enquanto o Brasil crescia, o estado tinha uma receita de 60 bilhões de reais. Ela caiu para 45 bilhões. Mesmo se os corruptos devolvessem tudo o que levaram, o Rio perdeu muito mais com a desarticulação da Petrobras, dos complexos que lá funcionavam. O plano federal de apostar em uma política recessiva levou a uma degradação das receitas, da arrecadação.
CC: Ao menos no discurso, o governo sempre fala do ajuste fiscal como “remédio amargo” para o País voltar a crescer.
MP: Se você fala em recessão, praticamente subscreve a sua derrota na eleição seguinte. Dilma, inclusive, nem conseguiu completar o seu mandato. No entanto, em certos momentos, a recessão abre a possibilidade de mudanças na condução da política econômica. De 1981 a 1983, ela foi feita dentro da perspectiva de que era necessário fazer com que o Brasil passasse a exportar mais do que importar. Até então, o crescimento era orientado para o mercado interno. A atual recessão é burra, pois não oferece alternativa nenhuma para o país voltar a crescer.
CC: No momento, o único favorecido pelo ajuste fiscal parece ser o setor financeiro, que acumula lucros recordes.
MP: A curto prazo, porque mais adiante o próprio setor financeiro passará por dificuldades, pois os devedores não terão condições de pagar as dívidas. Nas últimas décadas, os setores produtivos passaram a ser parceiros da financeirização. Em 2014, quase 50% do faturamento da indústria era proveniente dos bens financeiros. Como a alta taxa de juros leva a um processo de valorização da moeda, é muitas vezes melhor deixar de produzir internamente e passar a vender importados.
CC: Essa é uma das razões que levaram o Brasil a fechar quase 3 milhões de postos de carteira assinada nos últimos dois anos?
MP: Claro, pois reduzimos o nível de atividade. Não apenas perdemos empregos que existiam, como abandonamos a perspectiva da criação de novos postos. Ao mesmo tempo, acirrou-se a competição no mercado de trabalho. A renda das famílias caiu. Jovens até então inativos passaram a buscar trabalho para reforçar a renda familiar. E há enorme dificuldade para os sindicatos estabelecerem acordos acima da inflação.
CC: O raciocínio de que a reforma da Previdência vai retomar a confiança e atrair o investimento privado tem fundamento?
MP: É a marcha da insensatez. Diziam que, para o Brasil voltar a crescer, era necessário trocar o governo. Depois, era preciso ter uma equipe econômica complacente com os interesses do mercado, a tal “equipe dos sonhos”. Fez-se tudo, e a credibilidade não voltou. A confiança dos empresários não se dá em função de gestos, mas de ações concretas. Em 2017, podemos ter uma evolução negativa do PIB. Vendeu-se uma visão mágica, de que a solução está na esquina. Mas as expectativas não melhoraram e dificilmente vão. A Previdência dialoga com o futuro, e não com os problemas de hoje.
CC: O que seria mais adequado? Um retorno ao New Deal, a adoção de medidas anticíclicas?
MP: A saída pelas exportações é muito difícil, por conta do baixo crescimento mundial. Todos querem vender a dificuldade é achar compradores. A balança comercial melhorou por causa da menor produção interna, que diminui a necessidade de importar. O que sobra é o setor público. O Estado tem recursos não utilizados, suas reservas internacionais, o crédito com devedores que não pagam. É perfeitamente possível ter um programa de incentivo a obas localizadas e fáceis de serem realizadas. O Brasil também deveria recorrer a parceiros estratégicos. Neste momento geopolítico, em que há de um lado a nova postura dos EUA e o grande interesse dos chineses, o País poderia reaproximar-se dos BRICS para reconstituir a planta industrial.