Emoção e história
Em lançamento nesta semana, a partir do olhar da primogênita Miruna, o livro “Felicidade Fechada” retrata o cotidiano da mulher, Rioko, e dos três filhos de José Genoono, guerrilheiro do Araguaia que se revelou um dos mais competentes parlamentares brasileiros após a democratização, até que em 2012 teve a vida política estropiada pelas provas fracas e penas fortes da AP 470.
Lançado em 1965, disponível até hoje, o livreto “Até Quarta, Isabella”, do fundador das Ligas Camponesas Francisco Julião, uma das principais lideranças do Brasil pré-64, descreve uma situação inversa – de pai para filha. Preso uma semana depois do golpe, depois de circular por alguns dias no lusco-fusco típico desses períodos – participou até de uma sessão no Congresso, quando denunciou a chegada dos generais em aparte — Julião ficou um ano na cadeia, sem o devido julgamento, até que o advogado Sobral Pinto conseguiu que deixasse a cela – um cubículo com 60 cm de profundidade — sob condição de fazer as malas e ir para o exílio. Ilustrado pelas várias utopias de um período no qual não se imaginava que os regimes comunistas pudessem desmoronar em cascata, como aconteceu nas décadas de 1980 e 1990, Julião escreveu seus textos na prisão, subornando um soldado que lhe trouxe papel e lápis.
Fez uma obra voltado para a quinta filha, a Isabella do título — nascida quando ele já fora preso e só pode conhecer pela boa vontade dos responsáveis pela carceragem, que permitiram que uma irmã do prisioneiro levasse o bebê para que o pai pudesse ver seu rosto pela primeira vez. As visitas passaram a ocorrer uma vez por semana, sempre às quartas-feiras. Filha da segunda mulher de Julião – a advogada Regina Castro, ligada ao Partido Comunista Brasileiro — Isabella teve um convívio mais intenso com os pais quando os três se uniram no exílio.
Obra de referência para muitos contemporâneos, “Até quarta, Isabella” foi um sucesso literário para letrados e não-letrados. Durante vários anos, era possível encontrar um exemplar do livrinho na biblioteca de intelectuais e profissionais liberais engajados na luta contra a ditadura. Mas seus capítulos também eram lidos em encontros discretos de lideranças rurais, pouco familiarizados com a palavra escrita.
Felicidade Fechada nasceu nos textos que Miruna Genoino publicava em sua página no Facebook, num tom em que o discurso político – inevitável no caso – se fazia através do desabafo pessoal. Filha de pais que participaram da luta armada e enfrentaram a tortura em função de suas ideias políticas, Miruna foi uma estudante moderadamente engajada em ideias de esquerda — por comparação. “Tive uma militância intensa quando secundarista, mas minha prioridade é a pedagogia, que expressa minha forma de pensar e transformar o mundo,” disse em entrevista ao site Brasil 247.
Isabella também foi menos engajada, na comparação com os pais. Depois de uma militância no PCB, inclusive na corrente de Luiz Carlos Prestes, ingressou no PDT de Leonel Brizola, como o pai. Hoje segue a vida política com empenho, tem uma posição a esquerda, mas sem militância direta. Em entrevista ao 247, Isabella disse que o fato de ter se tornado título de um livro de impacto imenso entre os amigos de seu pai chegou a criar uma relação traumática com a obra. “Me falavam tanto daquele livro que eu tinha medo de ler”, diz. “Era uma pressão muito grande”.
Capazes de traduzir emoções pela simplicidade mas sem simplismos, que traduz emoções fortes sem maiores enfeites, os textos de Miruna começaram a ser publicados durante o julgamento da AP 470. Logo se mostraram de grande utilidade num país que mal começava compreender que, por trás do necessário combate a corrupção, pode se espalhar um veneno contra a democracia. A publicação do livro, em 2017, mostra uma evolução neste entendimento. Ao coletar recursos pela internet, Miruna arrecadou mais do que o esperado.
Ao assumir a defesa do pai, cuja biografia nem ministros do STF foram capazes de colocar em dúvida, ela fez o papel daquelas crianças de fábula que levantam a voz para dizer que o rei está nu. Descrevendo reuniões e conversas em torno do sofá da sala de visitas da casa dos pais no Butantã – um sobrado comprado a prestações junto ao BNH, que constitui o principal bem patrimonial após trinta anos de carreira política em Brasília – Miruna ajuda a entender a força política desses pequenos núcleos que ativam a sociedade civil em momentos em que ela aparece anestesiada. Ponto alto do livro, que ilustra a capa, o imenso bordado organizado pela mulher de Genoino, simboliza a combinação de energia e poesia indispensáveis naqueles momentos em que gestos solidários mostram que nem tudo foi perdido.
Se o 15 de novembro de 2012 foi uma reedição da pior tradição da república bestializada, traço apontado pelo jornalista Aristides Lobo no 15 de novembro de Deodoro, em 1889, desta vez nem todos foram flagrados do mesmo jeito na fotografia. Na porta da Papuda, para onde os prisioneiros foram conduzidos depois de um pinga-pinga num jato da Polícia Federal sem que se cumprissem todas as formalidades legais, incluindo várias aberrações no caso do cardíaco Genoino, portador de um implante de 10 cm na aorta, logo apareceu aquela turminha do sofá da casa do Butantã – a mãe Rioko, as filhas Miruna e Mariana, o filho Renan – para mostrar que havia uma mosca na sopa dos contentes. Um gesto notável, quando se recorda a quantidade de marmanjos silenciosos e silenciados daquele momento.