A primeira a surgir, nos anos 1950, foi atravessadores x agricultores. Aqueles compravam barato desses e vendiam nas cidades mais caro. A segunda falsa polêmica está nos anos de 1960, onde intelectuais se digladiavam sobre a permanência ou não de relações feudais na agricultura. Afirmavam, sobretudo os cepalinos, que a existência das relações pré-capitalistas era essencial para barrar o desenvolvimento do capitalismo na agricultura e isso explicaria a baixa produtividade agrícola. O fato é que tendo ou não relações atrasadas, o capitalismo penetrou definitivamente no campo. Na década de 1970, vem à baila a falsa polêmica entre produtos exportados X produtos para consumo interno. O argumento prescindia que as políticas governamentais e condições tecnológicas avançadas privilegiavam o setor de produtos de exportação em detrimento ao setor de produtos de consumo doméstico. Assim como os atravessadores e os senhores feudais, os produtos exportáveis eram considerados malfeitores. No início do Século XXI emerge outro dualismo: agricultura familiar (milhões de agricultores com pouco ou sem terra, excluídos das políticas públicas e marginalizados) x agronegócio (ricos inseridos nos mercados internacionais, tecnificados e detentores de privilégios nos governos). Os primeiros produzem alimentos e os últimos fabricam mercadorias.

Essa nova falsa polêmica do terceiro milênio retrata bem os esforços de grupos intelectuais nas universidades que reduzem a compreensão da agricultura brasileira sem uma visão de conjunto. Essas abordagens de oposição entre agricultura familiar x agronegócio caminham para um antagonismo que não há na realidade. Nem todo antagonismo é contradição, e nem toda contradição é antagônica. Contradição não é somente discordância, tensão ou oposição. Se for, é pura contradição da lógica formal. A simples negação de um elemento de uma contradição é uma forma mais prosaica de não conhecer a realidade.

Disso tudo, Ignácio Rangel, o mais original intelectual brasileiro, olhava a agricultura no país dentro de uma lógica não-linear da totalidade. Partia do ponto-chave: das contradições sociais concretas da totalidade social. Com efeito, observava, ao contrário das teses da Cepal, que mesmo mantendo relações atrasadas, a agricultura era penetrada fortemente pelo capital. E quanto mais o capitalismo entranhava no campo, mais a agricultura passaria a formas superiores de organização da produção, ou seja, as transformações econômicas são o motor da história. Com isso, surgiria, dependendo das características de cada região do Brasil, empresas capitalistas privadas, grandes cooperativas e/ou pequenas propriedades modernas com elevada produtividade, uma miscelânea de agriculturas territoriais. Advertia, também, que não poderíamos dar prioridade a qualquer um tipo de agricultura moderna, pois, dependendo das condições concretas, o interessante era estudar cada um deles. 

Rangel salientava que o processo de submissão do campo ao capital aumenta a divisão técnica e social do trabalho e como consequência aumenta verticalmente, não só, a produtividade da terra, mas também, a produtividade do trabalho. O aumento da produtividade do trabalho tem tendência à queda da produtividade por unidade de área. Ou seja, desaparecem os produtos destinados ao autoconsumo do camponês, o que leva à especialização produtiva, que é uma característica da superioridade da grande produção capitalista. 

Porém, não significa dizer que essa submissão do campo ao capital esteja completamente realizada. O triunfo da grande produção ocorreu mais velozmente em algumas regiões e em alguns setores e produtos. Houve uma desarmonia entre regiões, setores e produtos da agricultura brasileira. Aqui é o ponto nevrálgico. Exemplo disso, entre outras, há duas estruturas gerais da agricultura moderna no Brasil: as cadeias de grãos e fibras (intensivas em capital, grandes propriedades, uniformidade nos produtos e etc.); e as cadeias de frutas, legumes e verduras (menor relação capital-trabalho, pequenas propriedades, maior valor unitário do produto, diferenciação nos produtos, rastreabilidade, certificação de origem e etc.). Ambas são agronegócios e 99% da gestão agrícola é familiar.

Nas cadeias onde o capital é intensivo (soja e milho), a gestão dos custos produtivos é fundamental, uma vez que produzir mais barato e obter maximização dos lucros é objetivo. Em cadeias de frutas, legumes e verduras, pelo contrário, os produtores precisam fundamentalmente acompanhar as tendências do mercado, porque os preços variam tanto de acordo com a diversidade como a qualidade do produto. Esses agricultores estão muito mais vulneráveis ás externalidades pré e pós-porteira.

O exemplo demonstra ser essencial para a agricultura discutir e absorver as dinâmicas distintas entre os padrões gerais da agricultura moderna, dentro de cada peculiaridade regional e setorial. De modo que seja efetivada tanto as necessidades históricas como as possibilidades reais para o desenvolvimento nacional.  E essa efetivação não se mostra muito simples. A técnica, a ser usada na produção de menor relação capital-trabalho é bem diferente, e geralmente os agricultores não têm bom nível de qualificação. É necessário que o produtor aplique os métodos da agricultura intensiva. Pois os usos de fertilizantes, de defensivos, de irrigação e de muito trabalho manual são inexoráveis. 

Por fim, Rangel assinalava que a expansão do mercado para o capitalismo é obtida com o aprofundamento do parcelamento do processo produtivo e pelo crescimento das cidades ampliando e diversificando a demanda pela produção agrícola. A verdade é que a população urbana vem obtendo novos produtos na sua cesta de alimentação. O que demonstra: as cadeias de frutas, legumes e verduras se tornaram uma oportunidade para criar uma forte classe média rural racionalizada pela produtividade do capital. Em suma, é a cidade que transforma o campo. A direção da causação do desenvolvimento é da cidade para o campo. Ou seja, o problema está na cidade e não no campo. Não adianta dividir a agricultura entre hebreus e cananeus. Mas sim, ter visão de conjunto, de totalidade em uma heterogeneidade produtiva agrícola.

Roberto César Cunha é geógrafo, mestre e doutorando em Geografia Econômica (UFSC)
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