O automóvel foi, em muitos aspectos, a mercadoria que definiu o Século XX. Sua importância não veio de sua virtuosidade tecnológica ou da sofisticação da linha de montagem, mas sim de sua capacidade de refletir e moldar a sociedade. As maneiras em que produzimos, consumimos, usamos e regulamos automóveis foram janelas para o Capitalismo do Século XX em si – um vislumbre de como o social, o politico e o econômico entraram em interseção e colidiram.

Hoje, em um período caracterizado por financeirização e globalização, onde “informação” é o rei, a idéia de qualquer mercadoria como definidora de uma era pode parecer um tanto antiquada. Mas as mercadorias não são menos importantes hoje, e as relações das pessoas com elas permanecem centrais para a compreensão da sociedade. Se o automóvel foi fundamental para entender o último século, o Smartphone é a mercadoria que define nossa época.

As pessoas hoje gastam muito tempo com seus celulares. Elas os checam constantemente ao longo do dia e os mantém perto de seus corpos. Elas dormem perto deles, os levam ao banheiro, e os encaram enquanto andam, comem, estudam, trabalham, esperam e dirigem. 20% dos jovens adultos até mesmo admitem checar seus celulares durante o sexo [1].

O que significa que as pessoas pareçam ter um celular em sua mão ou bolso onde quer que vão, o dia inteiro? Para compreender o nosso pretenso vício coletivo pelo celular, devemos seguir o conselho de Harry Braverman [2], e examinar a “máquina por um lado, e as relações sociais por outro, e a maneira em que essas duas se unem na sociedade.”

Máquinas de Mão
Pessoas dentro da Apple se referem à cidade de montagem da FoxConn em Shenzhen como “Mordor” – o inferno na superfície da Terra Média de J. R. R. Tolkien. Como a enchente de suicídios em 2010 tragicamente revelou [3], o apelido é apenas um leve exagero das fábricas em que jovens trabalhadores chineses montam iPhones. A cadeia de suprimentos da Apple liga colônias de engenheiros de software com centenas de fornecedores de componentes na América do Norte, Europa e Leste Asiático – Gorilla Glass do Kentucky, coprocessadores de movimento da Holanda, circuitos de câmeras do Taiwan, e módulos de transmissão da Costa Rica se afunilam para dezenas de plantas de montagem na China.

As tendências simultâneas do Capitalismo para criação e destruição induzem mudanças constantes nas redes globais de produção, e dentro dessas redes, novas configurações de poder corporativo e estatal. Antigamente, cadeias de suprimento orientadas pelo produtor, exemplificadas por indústrias como a do automóvel e do aço, eram dominantes. Pessoas como Lee Iacocca [4] e a lenda da Boeing Bill Allen [5] decidiam o que fazer, onde fazer, e por quanto vender.

Mas conforme as contradições econômicas e políticas do boom do pós-guerra se intensificaram nos anos 60 e 70, mais e mais países no Sul Global adotaram estratégias orientadas à exportação para atingir seus objetivos de desenvolvimento. Um novo tipo de cadeia de suprimento emergiu (particularmente em indústrias leves como vestuário, brinquedos e eletrônicos) em que revendedores, ao invés de fabricantes, mantinham as rédeas. Nestes modelos orientados ao comprador, companhias como Nike, Liz Clairborne e Walmart desenhavam bens, davam seus preços aos fabricantes, e frequentemente detinham pouco mais em matéria de meios de produção que suas marcas lucrativas.

Poder e governança estão localizados em múltiplos pontos na cadeia do Smartphone, e a produção e o design estão profundamente integrados em escala global. Mas as novas configurações de poder tendem a reforçar as hierarquias de riqueza existentes: países pobres e de renda média tentam desesperadamente se mover para posições mais lucrativas através do desenvolvimento de infraestrutura e acordos comerciais, mas as oportunidades de atualização são poucas e distantes entre si, e a natureza global da produção faz a luta dos trabalhadores por melhores condições e salários extremamente difícil.

Os mineiros congoleses de coltan estão separados dos executivos da Nokia por mais do que um oceano – eles estão divididos pela história e pela política, pela relação de seus países com as finanças, e por barreiras ao desenvolvimento com décadas de idade, muitas das quais tiveram sua raiz no Colonialismo.

A cadeia de valor do Smartphone é um mapa eficiente da exploração global, das políticas comerciais, do desenvolvimento desigual,  e da proeza logística, mas o significado mais profundo do dispositivo reside em outro lugar. Para descobrir as mudanças sutis na acumulação que são ilustradas e facilitadas pelo Smartphone, precisamos nos afastar do processo pelo qual pessoas usam máquinas para criar celulares e nos focar no processo pelo qual usamos o celular em si como uma máquina.

Considerar o celular como uma máquina é, em alguns aspectos, imediatamente intuitivo. De fato, a palavra chinesa para telefones celulares é ‘shouji’, ou ‘máquina de mão’. As pessoas frequentemente usam suas máquinas de mão como usariam qualquer outra ferramenta, particularmente no local de trabalho. Demandas neoliberais por trabalhadores flexíveis, móveis e conectados as tornam essenciais.

A extensão dos dias de trabalho através dos smartphones se tornou tão disseminada e perniciosa que grupos de trabalho estão lutando de volta. Na França, sindicatos e empresas de tecnologia assinaram um acordo em abril de 2014 reconhecendo o “direito à desconexão” de 250.000 trabalhadores do setor depois de um dia de trabalho [6], enquanto a Alemanha está no momento avaliando uma legislação que proibiria emails e ligações de trabalho após o expediente. O ministro do trabalho da Alemanha, Andrea Nahles, disse a um jornal alemão que “é inquestionável que existe uma conexão entre a disponibilidade permanente e doenças psicológicas.” [7]

Smartphones também tem facilitado a criação de novos tipos de trabalho e novas formas de acesso para mercados de trabalho. No “mercado para bicos, ” companhias como TaskRabbit [8] e Postmates [9] tem construído seus modelos de negócios ao tocar a “força de trabalho distribuída” através de smartphones.

A TaskRabbit conecta pessoas que preferem evitar a chatice de fazer seus próprios serviços domésticos e pequenas tarefas com pessoas desesperadas o bastante para receber por bicos pagos por tarefa. Aqueles que querem tarefas feitas, como louça lavada ou limpeza depois de uma festa de aniversário infantil, se conectam com “tarefeiros” usando o aplicativo de celular da TaskRabbit.

Se espera que os tarefeiros monitorem seus celulares continuamente atrás de potenciais serviços (o tempo de resposta determina quem fica com o trabalho); consumidores podem solicitar ou cancelar um tarefeiro enquanto fazem outras coisas; e após completar com sucesso sua tarefa, o contratado pode ser pago diretamente através do celular.

Postmates – a queridinha da economia de shows – é uma nova promessa no mundo dos negócios, especialmente depois que a Spark Capital injetou 16 milhões de dólares nela este ano.  A Postmates rastreia seus “mensageiros” em cidades como Boston, São Francisco, Nova Iorque usando um aplicativo de celular em seus iPhones enquanto eles se apressam para entregar tacos artesanais e café com leite e baunilha sem açúcar para casas e escritórios. Quando uma nova entrega aparece, o aplicativo encontra o mensageiro mais próximo, que precisa responder imediatamente e completar a tarefa em uma hora para ser pago.

Os mensageiros, que não são reconhecidos como empregados da Postmates, estão menos entusiasmados que a Spark. Eles recebem $3.75 por entrega mais gorjetas, e por que são classificados como empreiteiros independentes, não são protegidos pelas leis de salário mínimo.

Desse jeito, nossas máquinas de mão se encaixam sem problemas no mundo moderno do trabalho. O smartphone facilita modelos de emprego contingente e auto-exploração ao ligar trabalhadores a capitalistas sem os custos fixos e investimento emocional de relações de emprego mais tradicionais.

Mas smartphones são mais do que uma peça de tecnologia para o trabalho assalariado – eles se tornaram parte de nossa identidade. Quando usamos nossos celulares para enviar mensagens de texto para amigos e amantes, postar comentários no Facebook, ou vagar pelas nossas linhas do tempo no Twitter, não estamos trabalhando – nós estamos relaxando, nos divertindo, estamos criando. Ainda assim, coletivamente, através desses pequenos atos, nós acabamos produzindo algo único e carregado de valor: nossos “eus” [10].

Eus à Venda
Erving Goffman, um influente sociólogo estadunidense, se interessava no Eu e em como os indivíduos produziam e interpretavam seus eus através da interação social [11]. Ele mesmo admitia ser um pouco “Shakespeareano” [12] – para ele “todo o mundo é um palco”. Ele argumentava que as interações sociais podem ser pensadas como performances, e que as performances das pessoas variam dependendo de suas audiências.

Nós encenamos estas performances de “centro do palco” [13] para as pessoas – conhecidos, colegas de trabalho, parentes que adoram julgar – que queremos impressionar. Performances de centro de palco dão a aparência de que nossas ações “mantém e incorporam certos padrões.” Elas convencem a audiência de que realmente somos quem somos: um ser humano moral, inteligente e responsável.

Mas performances de centro de palco podem ser inseguras e são frequentemente minadas por erros – pessoas colocam o pé na boca, lêem errado sinais sociais, tem um pedaço de espinafre à mostra em seus dentes, ou são pegas mentindo. Goffman era fascinado por quão duro nós trabalhamos para aperfeiçoar e manter nossas performances de centro de palco e quão frequentemente falhamos nisso.

Smartphones são um presente de Deus para os aspectos dramatúrgicos da vida. Eles nos permitem gerenciar as impressões que causamos nos outros com precisão obsessiva [14]. Ao invés de falar um com o outro, podemos enviar mensagens de texto, planejando nossos gracejos e estratégias de esquiva antecipadamente. Podemos mostrar nosso gosto impecável no Pinterest, nossas habilidades paternas superiores no CafeMom, e nossos talentos artísticos florescentes no Instagram, tudo em tempo real.

A revista New York recentemente publicou um artigo sobre as quatro pessoas mais desejáveis da cidade de Nova Iorque de acordo com o OkCupid [15]. Esses indivíduos montaram perfis de encontro tão atrativos que agora são bombardeados por cortesias e solicitações picantes – seus celulares vibram continuamente com mensagens de amantes em potencial. Tom, um dos quatro escolhidos, ajusta seu perfil com regularidade, enviando novas fotos e reescrevendo sua auto-descrição. Ele até mesmo tem usado o serviço de otimização de perfil MyBestFace, da OkCupid.

Tom diz que todo esse esforço é necessário em nossa atual “cultura de likes”. Tom considera seu perfil no OkCupid como “uma extensão de si mesmo”: “quero mantê-lo com boa aparência e limpo então, tipo, é como se eu até o fizesse ir ao banheiro [16]”

O incrível alcance da mídia social e a sua rápida adoção pelas pessoas para produzir e encenar os seus eus está engendrando a emergência de novos rituais de interação mediados tecnologicamente. Smartphones são agora centrais para a maneira que “geramos, mantemos, reparamos, e renovamos relacões, assim como … lutamos ou resistimos.”

Pegue os rituais de texto, que com toda a sua complexidade e regras inescritas, agora desempenha um papel de comando nas dinâmicas de relacionamento da maioria dos jovens adultos. Ninguém precisa lidar com uma tóxica nostalgia para admitir que novos rituais mediados tecnologicamente estão deslocando ou alterando radicalmente velhas convenções.

Manter, gerar e terminar relacionamentos digitalmente através de smartphones é um pouco diferente de usar celulares para completar tarefas relacionadas ao trabalho assalariado. Indivíduos não recebem um salário por seus perfis no Tinder ou por subir fotos de suas aventuras do fim de semana no Snapchat, mas os eus e os rituais que eles produzem estão certamente à venda. Independente da intenção, quando uma pessoa usa seu celular para se conectar com pessoas e com a imaginada comunidade digital, o resultado de seu trabalho de amor é cada vez mais provável de ser vendido como uma mercadoria.

Companhias como Facebook são pioneiras no “cercamento” [17] e venda de eus digitais. Em 2013 [18], o Facebook tinha 945 milhões de usuários que acessavam o site através de seus smartphones. 89% de sua receita daquele ano veio de anuncios, metade da qual através de publicidade móvel. Sua arquitetura inteira foi desenhada para guiar a produção móvel de eus através de uma plataforma que faz esses eus vendáveis.

É por isso que eles instituíram a sua política de “nomes verdadeiros”: “fingir que é outra coisa ou outra pessoa não é permitido.” O Facebook precisa que o usuário use nomes legais para que seja fácil de rastrear a correspondência entre os eus corpóreos e os eus digitais, por que os dados produzidos por e conectados a um humano real são mais lucráveis.

Usuários do site de encontros OkCupid concordam com uma troca similar: “dados por um encontro.” Empresas de terceiros permanecem no segundo plano do site, escavando fotos de usuários, visões religiosas e políticas, e mesmo os romances de David Foster Wallace que elas dizem amar. Os dados são então vendidos para anunciantes, que criam anúncios personalizados e dirigidos para os “alvos” específicos.

O grupo de pessoas que tem acesso aos dados do OKCupid é extraordinariamente grande – OKCupid, junto de outras empresas como Match e Tinder, pertencem à IAC/InterActiveCorp, a sexta maior rede online do mundo. Esculpir um eu no OkCupid pode ou não render um amor, mas definitivamente rende lucros corporativos.

Está se espalhando a noção de que nossos eus digitais são agora mercadorias. O professor da New School Laurel Ptak [19] publicou recentemente um manifesto chamado “Salários pelo Facebook” [20] e em março de 2014, Paul Budnitz e Todd Berger criaram a Ello [21], uma alternativa ao Facebook de popularidade fugaz.

A Ello proclama: “Nós acreditamos que uma rede social pode ser uma ferramenta de empoderamento. Não uma ferramenta para iludir, coergir e manipular – mas um lugar para se conectar, criar e celebrar a vida. Você não é um produto.” A Ello promete não vender os seus dados para terceiros, pelo menos por enquanto. Mas ela se reserva o direito de fazer isso no futuro.

Entretanto, discussões sobre a feira de eus digitais por empresas de dados no mercado cinza e gigantes do Vale do Silício estão normalmente separadas de conversas sobre condições de trabalho cada vez mais exploradoras ou o florescente mercado para trabalho precário e degradante. Mas estes não são fenômenos separados – eles estão intricadamente ligados, todos peças no quebra-cabeças do Capitalismo Moderno.

iMercantilização
O Capital precisa se reproduzir e gerar novas fontes de lucro através do tempo e do espaço. Ele precisa constantemente criar e reforçar a separação entre trabalhadores assalariados e proprietários de capital, aumentar o valor que extrai dos trabalhadores, e colonizar novas esferas da vida social para criar mercadorias. O sistema, e as relações que o compõem, estão constantemente em movimento.

A expansão e a reprodução do Capital na vida cotidiana e a colonização de novas esferas da vida social pelo Capital não são sempre óbvios. Pensar sobre o smartphone nos ajuda a juntar as peças por que o dispositivo em si facilita e fortalece novos modelos de acumulação.

A evolução do trabalho nas três últimas décadas tem se caracterizado por um número de tendências – o alongamento do dia e da semana de trabalho, o declínio dos salários reais, a redução ou eliminação de proteções não-salariais contra o Mercado (como pensões fixas, ou regulações de saúde e segurança), a proliferação de trabalho em tempo parcial, e a derrocada dos sindicatos.

Ao mesmo tempo, as normas relativas à organização do trabalho também mudaram. Modelos de trabalho temporário e orientado por projetos estão se proliferando. Não se espera mais do empregador providenciar a garantia do emprego ou horários regulares, e empregados não esperam mais por essas coisas.

Mas a degradação do trabalho não é um fato dado. A exploração cada vez maior e a pauperização são tendências, não resultados fixos ordenados pelas regras do Capitalismo. Elas são o resultado de batalhas perdidas pelos trabalhadores e vencidas pelos capitalistas.

O uso generalizado de smartphones para estender o dia de trabalho e para expandir o Mercado para trabalhos “de merda” é um resultado de uma fraqueza de ambos trabalhadores e movimentos da classe trabalhadora. A compulsão e boa vontade de números crescentes de trabalhadores em se envolver com empregadores através de seus celulares normaliza e justifica o uso de smartphones como uma ferramenta de exploração, e solidifica a disponibilidade constante como um requisito para receber um salário.

Afora a Grande Recessão, as taxas de lucro das corporações tem subido firmemente desde o final dos anos 80, e não apenas como um resultado do Capital (e do Estado) reverter as conquistas do movimento trabalhista. O alcance dos mercados globais tem se alargado e aprofundado, e o desenvolvimento de novas mercadorias tem crescido depressa.

A expansão e reprodução do Capital é dependente do desenvolvimento destas novas mercadorias, muitas das quais emergem do ímpeto incessante do Capital para cercar novas esferas da vida social para lucrar ou, como o economista político Massimo De Angelis diz [22], “colocar [essas esferas] para trabalhar para suas prioridades e impulsos [do Capital].”

O smartphone é central para esse processo. Ele fornece um mecanismo físico para permitir acesso constante aos nossos eus digitais e abre uma fronteira quase inexplorada para a mercantilização.

Indivíduos não recebem salários por criar e manter avatares digitais – eles são pagos através da satisfação de participar em rituais, e o controle proporcionado sobre suas interações sociais. São pagos através do sentimento de flutuar na vasta conectividade virtual, mesmo se suas máquinas de mão mediam seus laços sociais, ajudando as pessoas a se imaginarem unidas enquanto as mantém separadas como entidades produtoras distintas. A natureza voluntária desses novos rituais não faz deles menos importantes, ou menos lucráveis para o Capital.

Braverman disse que “o capitalista encontra no caráter infinitamente maleável do trabalho humano o recurso essencial para a expansão de seu capital.” Os últimos trinta anos de inovação demonstram a verdade dessa afirmação, e o celular tem emergido como um dos mecanismos primários para ativar, acessar, e canalizar a maleabilidade do trabalho humano.

Smartphones garantem que estejamos produzindo por uma parte cada vez maior de nossas vidas acordados. Eles apagam o limite entre trabalho e lazer. Empregadores agora possuem acesso praticamente ilimitado a seus empregados, e cada vez mais, mesmo manter um trabalho precário e mal pago depende da habilidade de estar sempre disponível e preparado para trabalhar. Ao mesmo tempo, smartphones fornecem às pessoas acesso móvel constante aos bens comuns digitais e sua ética nebulosa de conectividade, mas apenas em troca de seus eus digitais.

Smartphones borram a linha entre produção e consumo, entre o social e o econômico, entre o pré-capitalista e o capitalista, garantindo que seja o celular usado para o trabalho ou para o prazer, o resultado é cada vez mais o mesmo – lucro para os capitalistas.

Será que a chegada do smartphone significa o momento Debordiano [23] em que a mercadoria completou sua “colonização da vida social”? Será verdade que não apenas nossa relação com as mercadorias é fácil de se ver, mas que “mercadorias agora são tudo o que existe para se ver?”

Pode parecer que estou pesando a mão. Acessar redes sociais e conectividade digital através de celulares sem dúvida possui elementos liberatórios. Smartphones podem ajudar a combater a anomia e promover um senso de consciência ambiental, enquanto ao mesmo tempo facilitando para pessoas gerar e manter relacionamentos reais.

Uma conexão compartilhada através de eus digitais pode ajudar a nutrir resistência às hierarquias de poder existentes, cujos mecanismos internos isolam e silenciam indivíduos. É impossível imaginar os protestos deflagrados por Ferguson e a brutalidade policial sem smartphones e mídia social. E em última análise, a maioria das pessoas ainda não é compelida a usar smartphones para o trabalho, e certamente não se exige que eles encenem seus eus através da tecnologia. A maioria poderia jogar seus celulares no mar amanhã se quisesse.

Mas eles não vão. As pessoas amam suas máquinas de mão. Se comunicar primariamente através de smartphones está rapidamente se tornando uma norma aceita, e cada vez mais rituais estão se tornando mediados tecnologicamente. Conexão constante às redes e informações que chamamos de cyberespaço está se tornando central para a identidade. Por que isso está acontecendo é uma especulação labiríntica.

Será que é, como o expert em tecnologia e mídia Ken Hillis sugere [24],  apenas outra maneira de “evitar o Vazio e a falta de sentido da existência?” Ou, como a professora e romancista Roxane Gay [25] recentemente ponderou, será que nossa capacidade de manipular nossos avatares digitais fornecem um bálsamo para nosso profundo senso de impotência diante da injustiça e do ódio?

Ou – como imagina a guru tecnológica Amber Case [26] – estamos todos nos tornando ciborgues?

Provavelmente não – mas isso depende de como você define ciborgue. Se um ciborgue é um humano que usa uma peça de tecnologia ou máquina para restaurar funções perdidas ou para aumentar capacidades e conhecimento, então as pessoas tem sido ciborgues faz tempo, e usar um smartphone não é diferente de usar uma prótese de um braço, dirigir um carro, ou trabalhar em uma linha de montagem.

Se você define uma sociedade ciborgue como uma em que as relações humanas são mediadas e moldadas pela tecnologia, então certamente nossa sociedade parece atender esses critérios, e nossos celulares desempenham um papel central nisso. Mas nossos relacionamentos e rituais tem sido mediados pela tecnologia há tempos. A ascensão de centros urbanos massivos – eixos de conectividade e inovação – não teriam sido possíveis sem estradas de ferro e carros.

Máquinas, tecnologia, redes, e informação não dirigem ou organizam a sociedade – pessoas o fazem. Nós fazemos coisas e as usamos de acordo com a rede existente de relações sociais, econômicas, políticas e o equilíbrio de poder.

O smartphone, e a forma como ele molda e reflete as relações sociais existentes, não é mais metafísico que os Ford Rangers que uma vez foram cuspidos pela linha de montagem em Edison, Nova Jersey. O smartphone é tanto uma máquina e uma mercadoria. Sua produção é um mapa de poder, logística, e exploração globais. Seu uso dá forma e reflete o confronto perpétuo entre os impulsos totalizantes do Capital e a resistência do resto de nós.

No presente momento, a necessidade dos capitalistas de explorar e mercantilizar está fortalecida pelas maneiras em que smartphones são produzidos e consumidos, mas as vantagens do Capital nunca são seguras e inatacáveis. Elas precisam ser renovadas e defendidas a cada passo. Nós temos o poder para disputar e negar as vantagens do Capital, e devemos fazer isso. Talvez nossos celulares acabem sendo úteis pelo caminho.

Tradução: Everton Lourenço 

[Nota do Tradutor] Acredito que vale a pena complementar o assunto com a leitura dos dois textos abaixo, que tocam em alguns pontos relacionados que o texto não desenvolveu, como o modelo de investimento em pesquisa, desenvolvimento de produtos e inovação, o ciclo curto de consumo e a questão da Obsolescência Planejada:

Inovação Vermelha

http://diplomatique.org.br/artigo.php?id=1489

Notas:
[1] http://www.huffingtonpost.com/2013/07/12/smartphones-during-sex_n_3586647.html

[2] http://monthlyreview.org/books/pb9401/

[3] https://www.jacobinmag.com/2012/08/china-in-revolt/

[4] http://www.leeiacocca.com/

[5] http://www.boeing.com/history/pioneers/william-m-allen.page

[6] http://www.businessinsider.com/france-bans-after-hours-work-emails-2014-4

[7] http://www.nbcnews.com/news/world/germany-examines-ban-employees-checking-work-emails-home-n262441

[8] https://www.taskrabbit.com/

[9] https://postmates.com/

[10] No original, “selves”.

[11] http://books.google.com/books/about/The_Presentation_of_Self_in_Everyday_Lif.html?id=Sdt-cDkV8pQC

[12] http://cdclv.unlv.edu//ega/

[13] No original, “front-stage”, que parece ser um termo específico no trabalho de Erving Goffman, mas eu não achei rapidamente a tradução usada no Brasil.

[14] No original “control-freak precision”.

[15] http://nymag.com/thecut/2014/02/okcupid-most-desired-people-in-new-york.html

[16] Não consegui traduzir essa parte. No original era “I want it to look good and clean so, like, I make it do crunches and shit.”. Acabei adaptando a partir da sugestão que vi no Urban Dictionary: http://pt.urbandictionary.com/define.php?term=crunches – Qualquer sugestão será bem vinda.

[17] No original, “enclosure”, criação de barreiras artificiais.

[18] http://thenextweb.com/facebook/2014/01/29/facebook-passes-1-23-billion-monthly-active-users-945-million-mobile-users-757-million-daily-users/

[19] http://laurelptak.com/

[20] http://wagesforfacebook.com/

[21] https://ello.co/beta-public-profiles

[22] http://www2.uel.ac.uk/research/profiles/lss/massimodeangelis/

[23] http://www.egs.edu/library/guy-debord/biography/

[24] https://books.google.com.br/books?id=Uu5zUHN_1LoC&pg=PT81&lpg=PT81&dq=stave off the Void and the meaningless of existence? hillis&source=bl&ots=DhPgAtWvnp&sig=pTqQuVT90TBqscQu2DF-z_PruKA&hl=en&sa=X&ei=Z58HVb7rNsPjsATKoYLYDQ&redir_esc=y#v=onepage&q=stave off the Void and the meaningless of existence? hillis&f=false

[25] http://www.roxanegay.com/

[26] http://cyborganthropology.com/Main_Page

Publicado em O Minhocário, originalmente da Revista Jacobin, março de 2015.