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A propriedade de Abramtsevo, dos Mamontov, até hoje bem conservada |
Reunidos na casa de Abramtsevo, esses agrupamentos de artistas passaram a ser conhecidos como “O círculo de Mamontov”. Eles eram motivados por uma “determinação comum de criar uma nova cultura russa”.
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O compositor Modest Mussorgsky, estudo em óleo pintado por mim com base no original de Ilya Repin |
Em 1863, dois anos após a emancipação dos servos russos, um grupo de 13 artistas, liderados por Ivan Kramskoi, anunciou seu desligamento da Academia de Artes de São Petersburgo, inspirados pelo desejo de levar a arte para o povo e pela vontade de voltarem suas pinturas para a realidade. Esse grupo se auto intitulava “Os Errantes”, pois sua ideia era a de fazer exposições itinerantes em todos os cantos do país, em especial para os camponeses.
Junto com Dostoievsky, Tolstoi, Turgeniev (escritores), Mussorgsky, Borodin e Rimsky-Korsakov (compositores) eles queriam tornar sua arte “útil” para a sociedade. Repudiavam o conceito da “arte pela arte”, pregado na academia, que se inspirava nos padrões neoclássicos do Ocidente e no romantismo alemão. “Os Errantes” defendiam a ideia de que a arte deveria em primeiro lugar se preocupar com a realidade e se subordinar a ela. É nesta direção onde podemos encontrar todo o realismo da pintura de Ilya Repin, por exemplo.
O grande inspirador destes artistas era o pensador Nicolai Chernichevsky, socialista, filósofo materialista e crítico de arte. “A realidade é mais bela que sua representação em arte”, dizia e, por isso, “A verdadeira função da arte é explicar a vida e comentá-la”. Ele era uma espécie de “propagandista estético” dos anos 1860, observa Camilla Gray.
Nesta linha de pensamento, os artistas de “Os Errantes” consideravam que a arte seria uma força ativa “em prol da reforma social” e este deveria ser sempre o motivo para a escolha dos temas de suas obras. “Só o conteúdo é capaz de refutar a acusação de que a arte é uma diversão vazia”, apontava Chernichevsky. Neste sentido, os escritores buscaram – “de maneira muito literal e literária”, diz Gray – descrever a vida do camponês, com sua inocência e austeridade, como a de verdadeiros heróis. Junto com eles, os pintores pretendiam “despertar a compaixão e a simpatia pelo homem comum”. Essas figuras do povo jamais haviam sido tema para a arte em nenhum período da Rússia.
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Garota com os pêssegos, pintura a óleo de Valentin Serov, 1887 |
Esta era também uma forma de defender a tradição cultural, o modo de vida do povo, em contraponto à europeização do país que havia começado desde Pedro o Grande. Desde então, “tudo o que era russo era descartado como bárbaro, rude” e até mesmo a palavra “cultura” significava algo essencialmente estrangeiro. Neste aspecto, isso não lembra o nosso próprio país, o Brasil, cuja elite – historicamente e até hoje, 2017 – ainda carrega a “síndrome de vira-latas” em relação à Europa?
Aqueles eram tempos de grandes contendas intelectuais entre dois movimentos teóricos: os “Eslavófilos” e os “Ocidentalistas”. O primeiro rejeitava a cultura ocidental, o segundo a defendia. “Os Errantes” não participavam diretamente do movimento eslavófilo, mas buscavam criar uma “cultura nacional nova que fosse baseada no camponês russo e nas tradições artísticas nacionais de há muito negligenciadas”, observa Camilla. Os eslavófilos também defendiam um modelo de desenvolvimento nacional, sem se espelhar no Ocidente, que se inspirasse na “primitiva glória de Moscóvia” e nos direcionamentos do cristianismo ortodoxo primordial. Além de tudo, tinha que se recuperar o poder de Moscou e diminuir o de São Petersburgo, cidade mais aristocrata.
Camilla Gray afirma: “Essa guinada para Moscou foi significativa para a arte”.
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“Eles não o esperavam”, pintura a óleo de Ilya Repin, 1888 |
Moscou se transformou no centro principal do movimento nacionalista, que foi importante para o movimento moderno da arte naquele país. Repudiando o neoclassicismo da arte internacional, que era liderado pela academia francesa e tinha penetrado no campo artístico russo desde o final do século XVIII, os artistas se puseram a redescobrir sua tradição artística nacional. Esse movimento em direção à sua cultura original foi “o ponto de partida de uma escola moderna na Rússia”.
Neste sentido, como a aristocracia apoiava a arte acadêmica, foi a burguesia nascente que apoiou esses novos artistas. Comerciantes ricos e industriais como Savva Mamontov passaram a patrocinar o movimento. De imediato, “Os Errantes” foram apoiados por outro empresário rico, P. M. Tretyakov, que comprou pinturas desses artistas durante 30 anos. Depois, doou sua coleção para a cidade de Moscou, em 1892, o que deu origem à famosa Galeria Tretyakov, hoje uma das coleções de arte mais visitadas em todo mundo. Foi o primeiro museu russo a se dedicar inteiramente à arte russa.
Outros burgueses também fizeram contribuições significantes para a cultura russa do século XIX: Soldatenkov, que também ajudou na publicação de muitos trabalhos científicos, educacionais e culturais; Bakhrushin, colecionador de arte teatral; Belyayev, mecenas dos cinco compositores nacionalistas como Rimsky-Korsakov, Balakiev, Moussorgsky e Borodin. Nos primeiros anos do século XX, continua Camilla Gray, os empresários Sergei Shchukin e Ivan Morosov continuaram esse costume de colecionar obras de arte e de apoiar artistas. Shchukin colecionava também arte oriental, arte folclórica russa e pintura impressionista e pós-impressionista francesa. Essas obras estão hoje em museus de Moscou e São Petersburgo.
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Savva Mamontov |
Mas o maior benfeitor da arte moderna russa foi mesmo Savva Mamontov, enfatiza Camilla Gray. Sendo artista também, foi ele quem fundou a primeira companhia privada de ópera russa. Como mecenas, ele foi absolutamente generoso com os pintores de “três gerações sucessivas”.
Ele e sua esposa Elizabeth, ambos amantes das artes, começaram a viajar para a Itália, sempre no inverno, por causa da saúde do filho Andrei e porque tinham negócios em Roma. Foi lá que o casal ficou sabendo de um grupo de pintores russos ligado aos “Os Errantes”. Um deles era o escultor Antokolsky (1843-1902), além do pintor Vassily Polenov (1844-1927) e do historiador de arte Adrian Prakhov. Tinham ido estudar arte em Roma como bolsistas da Academia e da Universidade de São Petersburgo.
Rapidamente se tornaram amigos e passaram a frequentar espaços artísticos em Roma, como museus, ruínas, igrejas. Mas também se reuniam nos ateliês dos artistas para pintar e esculpir juntos. Antokolsky deu aula de escultura a Mamontov, atividade à qual este se dedicou durante toda a vida. “Todas as noites o grupo se encontrava e falava dos seus planos para a criação de uma nova cultura russa”, diz Camilla. Os Mamontov, assim como os artistas, não se preocupavam só com a cultura, queriam ver melhorar a vida do povo.
Em 1870, o casal Mamontov comprou a propriedade de Ambramtsevo, e prometeu ser fiel à tradição do antigo dono da moradia, o escritor Sergei Aksakov, amigo íntimo do também escritor Nicolai Gogol. Abramtsevo se tornou uma espécie de comunidade onde até mesmo esses artistas passaram a morar. E os que não viviam lá, também se sentiam em casa.
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Pintura a óleo de Vassily Polenov |
Em 1871, após uma epidemia de cólera, Mamontov iniciou a construção de um hospital em sua propriedade. Mais tarde, uma escola também foi instalada na parte mais vazia do hospital, depois se transferindo para uma casa de madeira de modelo camponês, que havia sido inteiramente transportada de Bibinok, uma aldeia vizinha. Esta foi a primeira escola da região, para os filhos dos camponeses. Em seguida, o casal construiu um ateliê de escultura, que depois se tornou uma espécie de oficina onde os artesãos locais ensinavam sua arte. Também se tornou oficina de restauração de objetos antigos, dentro da ideia de valorizar a cultura do passado.
Na primavera de 1874, o casal Mamontov voltou da Itália com alguns de seus amigos que estudavam em Roma. Antes, passaram por Paris, onde se encontraram com Ilya Repin, que estudava lá. Ansioso por voltar à sua terra, Repin acompanhou os amigos, pois “pouca coisa lhe interessava em Paris”. Juntou-se a eles a viúva do compositor Serov e seu filho de 9 anos, Valentin Serov. Foram todos para Abramtsevo e foi assim que começou a história do “Circulo de Mamontov”. Em 1879 juntaram-se a eles, os pintores Vasnetsov, Victor e Apollinarius. Viviam nessa comunidade, mas também se reuniam na mansão confortável de Savva Mamontov em Moscou, “onde organizavam leituras e sessões de desenho e montavam produções teatrais para as quais a intelligentsia de Moscou afluía com ansiedade e prazer”.
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“Os rebocadores do Volga”, pintura a óleo de Ilya Repin, 1870-73 |
Ilya Repin (1844-1930) morou durante muitos anos com sua família na propriedade dos Mamontov em Abramtsevo. Assim como Valentin Serov, e outros.
Repin pertencia à segunda geração dos pintores nacionalistas, mas seguia a filosofia e o trabalho da primeira geração. Dos 13 que abandonaram a Academia de Belas-Artes era o mais culto e o mais respeitado. Sua pintura “Eles não o esperavam” foi feita em Abramtsevo. Esta é uma das poucas pinturas de grande formato deste artista, pois passava muito tempo “trabalhando em estudos, antes de executar uma pintura no seu tamanho final”.
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“A avó”, pintura a óleo de Polenov |
Vasily Polenov, o grande amigo de Ilya Repin, Tolstoi e Turgeniev, foi um pintor de paisagens que retratou a zona rural russa. A pintura de paisagem na Rússia, se dava especialmente em Moscou, especialmente após a fundação, em 1840, da Faculdade de Pintura e Escultura de Moscou, que incentivava a prática da pintura ao ar livre. A Faculdade de Moscou também incentivava o estudo da natureza, o que quase não se fazia na Academia de São Petersburgo. Também recebia mais verba privada do que pública naqueles tempos de czarismo. Após os primeiros estudantes se formarem, se tornavam professores da Faculdade. Entre eles, Alexei Savrasov (1830-1897), que ficou conhecido como o “pai da escola russa de pintura de paisagem”. Mas foi Isaac Levitan (1860-1900) o que mais se destacou como mestre paisagista, criativo e expressivo.
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A pequena igreja de Ambramtsevo |
Na primavera de 1880 uma grave enchente isolou a propriedade de Abramtsevo, impedindo o povo de ir à igreja naquela páscoa. Os artistas resolveram então construir uma igreja, com a colaboração e acompanhamento direto de Elizabeth Mamontov. Todos se envolveram, com desenhos, esboços, ideias. A construção deveria imitar uma igreja de Novgorod, igreja histórica da tradição ortodoxa. Mas até mesmo as pinturas de ícones em seu estado original eram desconhecidas, após tantas camadas de repintura e o escurecimento das tintas. Os ícones foram descobertos como obras de arte no processo de restauração de suas cores brilhantes e a pureza origina de suas linhas. Mas isso se dava de forma muito lenta e esse trabalho somente foi sistematizado após a Revolução de 1917. O trabalho de pesquisa sobre a história da pintura de ícones tinha começado no princípio do século XIX, pela família Stroganov.
Todo o conhecimento adquirido nas pesquisas feitas tanto pelos historiadores como pelos artistas foi aplicado na igrejinha de Abramtsevo, cuja construção se completou em 1882. Toda a comunidade se envolveu na construção, de artistas a moradores locais. Ilya Repin e os outros pintores pintaram o Iconostasis e os murais da igreja. E todos ajudaram fisicamente na construção.
Quando ficou pronta, a igrejinha foi palco da primeira cerimônia de casamento, entre Polenov e a pintora Maria Yakunchikova, prima de Savva Mamontov. Ela foi uma das primeiras artistas do sexo feminino na Rússia, diz Camilla Gray. Assim como Elena Polenova, irmã de Vasily Polenov, que também era historiadora.
Com tudo isto acima, podemos refletir tentando tirar certas lições que extrapolam um pouco o mundo da arte. Quando se trata de uma burguesia culta e de visão ampla, como aconteceu naquele final de século XIX na Rússia, o resultado é a defesa dos valores nacionais, do desenvolvimento do país, da prosperidade econômica e cultural de seu povo. Infelizmente não é o que assistimos hoje, pelo menos em nosso país, onde a elite age absurdamente ao contrário da nossa cultura, da nossa economia, do nosso país…
Savva Mamontov, o grande mecenas das artes russas daquele século, foi o fundador e construtor da maior ferrovia da Rússia. Também lançou as bases da maior fábrica de vagões do subúrbio de Mytishchi, nos arredores de Moscou. Quase metade das ferrovias da parte europeia da Rússia são o resultado de seus esforços. Mas ele também tinha interesses na extração de minério de ferro e nas indústrias de fundição. A bacia de carvão de Donetsk no sul da Ucrânia moderna, onde seus projetos de longo alcance também chegaram, ficou conhecido como o “Panamá de Mamontov.” Ele também abriu cinco faculdades voltadas a preparar os estudantes para o mundo do comércio e da indústria, em diferentes partes do Império Russo.
Mamontov preparava o caminho para a modernização econômica de seu país, enquanto incentivava os artistas russos que, no século XX, ofereceram ao mundo um dos períodos mais férteis de criação artística jamais visto desde o Renascimento… ………………………………………….. Referência bibliográfica: Gray, Camilla. O grande experimento. Arte russa. 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda, 2004
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Procissão religiosa na província de Kursk, pintura a óleo de Ilya Repin |
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Lago, pintura a óleo de Vassily Polenov |
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Cristo e o pecador, pintura a óleo de Vassily Polenov |
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Arredores de Moscou, pintura a óleo de Vassily Polenov |
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Tolstoi arando, pintura a óleo de Ilya Repin |
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Eterna paz, pintura a óleo de Isaac Levitan, 1894 |
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Lago, pintura a óleo de Isaac Levitan |
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Savvinskaya próximo a Zvenigorod, pintura a óleo de Isaac Levitan, 1884 |
Publicado originalmente no blog da Mazé