Há muitos Gianfrancesco Guarnieri. Um, talvez o mais conhecido, por ser o mais recente, foi o personagem de novelas globais. O outro, que fundamentou toda sua história, foi o ator de teatro. Há ainda o Guarnieri dramaturgo, poeta, cronista, músico… Por isso, falar sobre ele é, de saída, um desafio. Há algo, porém, indissociável a sua figura em todos os momentos de sua trajetória: a atuação política. Uma atuação pouco baseada na política institucional-partidária ou ligada a movimentos organizados, e muito mais na educação, na transmissão de valores. Não à toa, esse é um dos eixos do documentário Guarnieri, que está circulando por diferentes salas de cinema como parte da mostra Histórias Que Ficam, e que é dirigido pelo neto do ator, Francisco Guarnieri.

Para Gianfrancesco Guarnieri, antes do artista deveria haver o homem e seu posicionamento político. Assim, a posição do ator, que morreu aos 71 anos, em 2006, era muito clara e esteve presente em toda sua carreira – em que a questão social sempre teve peso central. “Existe esquerda e existe direita. Não é uma questão de intenção, mas de ação”, disse em uma entrevista da década de 1980, durante o período de reabertura política no Brasil. “Aqueles que querem manter o status quo, que admitem que a exploração do homem pelo homem é necessária, são os de direita. Os de esquerda são os que lutam contra isso. Sem maniqueísmo, sem bem contra o mal”, completou no trecho exibido no documentário.

Nascido na Itália, filho de músicos antifascistas fugidos do ditador Benito Mussolini, Guarnieri chegou ao Brasil em 1936, com apenas dois anos. Antes de sair da adolescência já tinha entrado para o movimento estudantil secundarista e, na década de 1950, dava seus primeiros passos rumo aos palcos. Como músico, foi letrista de uma série de canções engajadas, como Vidas Rasas, parceria com Sérgio Ricardo – “Quantos caminhos/ Quantas vidas rasas/ Que será do mundo/ No calor das casas/ Se meus carneirinhos/ Não criam asas?”. Como cronista do jornal Última Hora, que tinha posição claramente contrária ao golpe de 1964, escreveu crônicas sobre a vida do trabalhador comum. “Na televisão entrei porque não entrar seria se afastar da grande massa”, diz em outro trecho do filme dirigido por Francisco.

Contudo, foi mesmo no teatro que Guarnieri deixou sua principal marca. Em 1956, aos 22 anos, escreveu a peça Eles Não Usam Black-tie, que seria encenada dois anos depois no Teatro Arena, um dos grupos teatrais mais importantes do Brasil, do qual o ator fazia parte. O texto, talvez o mais importante de sua carreira, conta a história de Tião e Otávio, pai e filho que ficam de lados opostos durante uma paralisação de operários. Enquanto Tião, preocupado com o casamento e temendo perder o emprego, fura uma greve da fábrica em que trabalham, Otávio é uma das lideranças do movimento sindical. Ao longo dos anos, a peça seria encenada centenas de vezes, além de ser adaptada para o cinema por Leon Hirzsman, em 1980, ano em que o sindicalismo estava em eclosão no Brasil.

Trechos de Eles Não Usam Black-tie acabaram ressurgindo nas redes sociais nas últimas semanas por ocasião da greve geral do último dia 28. “É engraçado notar que muito do que meu avô falava, e que está representado no Black-tie, voltou a ser assunto ainda que de modos diferentes. De novo, depois de tantos anos, estamos falando de greve geral, golpe, movimento secundarista, manifestações…”, diz Francisco em entrevista ao EL PAÍS, fazendo um paralelo com as movimentações políticas atuais.

Contudo, em Guarnieri, apesar do forte cunho político – “deixei de fora do filme quase tudo que não estivesse, de certa forma, relacionado a isso”, diz Francisco –, há também um retrato pessoal familiar que opõe gerações, assunto que também era fonte de preocupação constante do ator. Por isso mesmo, o filme é construído intercalando imagens de arquivos com duas entrevistas recentes feitas com os filhos de Guarnieri, Flavio e Paulo – tio e pai do diretor do documentário.“Durante a pesquisa para o filme me dei conta de que Eles Não Usam Black-tie era também a história da minha família, na medida em que mostra a ausência de um pai [Otávio], envolvido com ‘questões maiores’, e a diferença dele para seu filho [Tião]”, diz Francisco.

“Meu avô era de uma geração em que as coisas estavam muito quentes, todo mundo estava escrevendo e querendo contribuir de alguma forma”, completa. Havia, em suma, uma preocupação com a construção cultural e de identidade do Brasil. O ator estava no meio dessas questões e os caminhos que tinha a sua frente eram muito claros. “O teatro foi a forma de expressão que eu descobri. É a maneira de falar e formular politicamente o que eu não posso dizer de outro jeito”, diz Guarnieri em outro trecho do documentário.

 

Em oposição às certezas do ator, que a certa altura do documentário diz que gostaria de ser lembrado como um “cara da geração de 1950, um artista que escolheu o teatro como sua expressão política”, seu filho Flavio, que também era ator e morreu de leucemia em 2016, diz que se alguém lhe perguntasse o que ele poderia fazer artisticamente – como o pai havia feito em peças como Eles Não Usam Black-tie e Ponto de Partida – ele “não saberia dizer”. “A geração do meu pai e do meu tio pegou terra arrasada no Brasil depois de um período sombrio de ditadura militar. Antes do golpe, as coisas eram muito mais claras”, diz Francisco. “O Brasil ainda não tem noção do que a ditadura representou para o país, ela acabou com uma movimentação cultural impressionante e esterilizou o terreno”.

No fim, o filme, definido por Francisco como uma forma de entender seu avô, sempre atribulado com projetos, desaguou em um documentário biográfico, familiar e geracional em que questões emergem, submergem e depois voltam à toca mais uma vez. “O meu avô foi o mesmo avô do Lucas Silva e Silva e não um avô real, presente”, diz Francisco se referindo ao avô perfeito interpretado por Guarnieri na série infantil Mundo da Lua, que foi transmitida pela TV Cultura e marcou uma geração. Em outras palavras, não havia muita convivência entre os dois. “Fazer o filme foi uma forma de preencher esse espaço”, a voz de Francisco anuncia em off logo no início do documentário.

 

Primeira atuação de Guarnieri no cinema, no filme “Grande Momento”

PRÓXIMAS EXIBIÇÕES
Rio de Janeiro

Quando: 10 de maio, às 19h
Onde: Oi Futuro Flamengo (Rua Dois de Dezembro, 107)
Capacidade: 63 lugares
Entrada gratuita – meia hora antes haverá distribuição de senha por ordem de chegada, sujeita à lotação
Haverá debate após a exibição, com o diretor Francisco Guarnieri, a psicanalista Cecília Boal e Julian Boal

Santo André

Quando: 13 de maio, às 19h
Onde: Auditório Heleny Guariba (Praça IV Centenário s/n, Paço Municipal)
Capacidade: 150 lugares
Entrada: gratuita, sujeita à lotação

São Paulo

Quando: 15 de maio, às 19h
Onde: Tapera Taperá (A. São Luís, 187, 2º andar, loja 29, República)
Capacidade: 35 lugares
Entrada: gratuita
O diretor, Francisco Guarnieri, vai participar da sessão

Mais informações sobre a mostra Histórias Que Ficam

Publicado em El País Brasil