O jornal Valor Econômico divulgou, nesta terça-feira (9), a denúncia de cientistas brasileiros do alarmante desmonte do processo de inovação tecnológica e científica do Brasil do Governo Temer. É unânime a percepçao de que nunca houve um desmonte desse porte. São os melhores pesquisadores de áreas de ponta sendo obrigados a abandonar o país para continuar seu trabalho em países com um mínimo de estrutura e condições adequadas para não interromperem seus resultados.

Desde o ano passado, segundo a reportagem, o professor titular do instituto de biofísica e bioquímica médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sérgio Ferreira, já perdeu cinco dos 50 pesquisadores de graduação a pós-doutorado que integram sua equipe, dedicada a entender as causas e apontar novos tratamentos contra o Alzheimer.

Duas cientistas foram trabalhar em um laboratório no Canadá; outros três estão indo embora para Nova York. Ferreira, PhD em física e professor da UFRJ desde 1999, lamentou a saída dos colegas, mas não tentou demovê-los: sabe que, se ficarem no Brasil, não conseguirão concluir suas pesquisas. Sem recursos para pagar itens básicos, como a compra de reagentes químicos, manutenção de equipamentos ou ratos de laboratório, grande parte dos trabalhos que ele orienta há anos será perdida sem que tenham respondido às perguntas a que se propuseram.

A reportagem revela que o colapso está apenas se anunciando, pois, o orçamento federal para o ciência, que já vinha encolhendo desde 2014, caiu mais 44% na programação para 2017, passando de R$ 6 bilhões para apenas R$ 3,4 bilhões. “Não vão conseguir pagar nem os projetos já aprovados. Não sei como as migalhas vão ser distribuídas”, afirma o físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “Não me lembro de ter testemunhado uma situação tão ruim quanto agora”, diz Davidovich.

O corte foi anunciado pelo governo em março como parte do plano de contingenciamento para equilibrar as contas públicas. Para a comunidade científica e para o próprio MCTIC, o atual volume de recursos inviabiliza até projetos que já estão em andamento e coloca em xeque os importantes avanços conquistados pelo Brasil na área de pós-graduação nas últimas duas décadas. Em 2014, o Brasil formou 50,2 mil mestres e 16,7 mil doutores, bem mais que os 39,5 mil mestres e 11,3 mil doutores titulados em 2010. Na comparação com 1996, a formação de mestres e doutores cresceu respectivamente, 379% e 486%.

“Esse corte ameaça toda uma geração de pesquisadores”, afirma Davidovich.

De acordo com a apuração da reportagem, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que no ano passado foi fundido à pasta de Comunicações, diz que ainda tenta reverter o encolhimento dos recursos e que atua nos ministérios da Fazenda e Planejamento pelo descontingenciamento.

“O Ministério trabalha pela recuperação do orçamento total previsto para este ano”, afirmou a assessoria de imprensa da pasta ao Valor, por e-mail.

Ferreira, da UFRJ, destaca que tampouco a estratégia de desestimular a ciência faz sentido sob a ótica econômica. “O Brasil está dando um tiro no pé ao fechar a porta do cofre para a inovação”, diz. “Daqui a dez anos nós estaremos mais atrasados do que nós já estamos em relação ao novo conhecimento, à inovação, ao desenvolvimento. Ninguém faz tecnologia sem ter ciência “, diz Ferreira, destacando que o “dinheiro” está nas empresas de tecnologia, mas o Brasil continua sendo um especialista em commodities. “Temos no Brasil a sorte de que a natureza foi muito gentil conosco. Essa política do governo é a de que vamos continuar sendo colônia. Não de Portugal, mas de quem quiser comprar o nosso produto agrícola, o nosso petróleo. Vamos vender baratinho e ficar felizes com isso. Esse não é o futuro que eu queria para os meus filhos e netos”, diz.

Os pesquisadores ouvidos pela reportagem destacam que o investimento público em ciência foi a base do sucesso da pós-graduação brasileira, e das próprias carreiras bem-sucedidas dos cientistas brasileiros. Desde a década de 60, o Brasil vem investindo na “formação de massa crítica” financiando a formação de mestres e doutores no exterior, afirma o pesquisador Elibio Rech, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, com sede em Brasília. “A grande maioria dos cientistas da minha idade, da minha geração foram formados nessa época. Todos nós saímos do país, fizemos mestrado e doutorado nas melhores instituições para nossas áreas de pesquisa, pagos com dinheiro público”, afirma Rech. Em 2015 ele coordenou pesquisa que foi publicada pela revista científica “Science” na qual a equipe conseguiu extrair e purificar a cianovirina, cultivada em soja transgênica, uma proteína presente em algas que é capaz de impedir a multiplicação do vírus HIV no corpo humano. “Retornamos e conseguimos estabelecer cursos de pós-graduação fortes no país. Por isso temos hoje cursos de pós-graduação muito fortes que não devem nada à ciência de fronteira”, diz Rech.

Além do corte federal, as fundações estaduais de amparo à pesquisa também sofrem com a queda da arrecadação nos Estados. Especialmente ruim é a situação no Rio de Janeiro, símbolo da crise fiscal. Desde 2014, Ferreira, da UFRJ, não recebe nenhum centavo nem para os projetos já aprovados da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), que, cinco anos atrás, respondia por 80% dos recursos de seus projetos. “Eu tenho várias contas no banco abertas em que a gerente fica ligando e pergunta: escuta professor, essa conta o senhor vai manter aberta? Está aberta há dois anos. Eu digo o que eu posso fazer, estou esperando a Faperj depositar. É uma situação ridícula, desde 2014”, afirma.

O Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) diz que a situação do Rio é mais grave que dos outros Estados, mas o cenário geral preocupa, já que as fundações são mantidas com percentuais da receita de cada Estado. Está marcada para 17 e 18 de maio uma reunião com as 26 fundações representadas pela Confap, para mapear os problemas regionais. “Não temos notícia de não pagamento de bolsas, temos menos lançamentos de editais. Muitos Estados têm buscado também parcerias externas”, diz.

Um dos pioneiros no estudo de células-tronco no Brasil, o neurocientista Stevens Rehen, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador de pesquisa do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), prevê um desmantelamento da capacidade instalada da ciência brasileira para responder a questões rapidamente. “A carreira de pesquisador está sendo contestada como uma opção profissional viável. E isso é completamente contra qualquer tipo de estratégia de país”, afirma o neurocientista. “Tem pessoas indo embora do país, fechando laboratório, parando com linha de pesquisa”, afirma Rehen.

No ano passado, a equipe coordenada por Rehen foi a primeira do mundo a explicar como se dava a conexão entre o vírus zika e a microcefalia. A pesquisa, publicada em 2016 na conceituada revista científica “Science”, mostrava que o vírus ataca células de neurônios. “Desde então, já propusemos dois medicamentos para mulheres grávidas. Em número de citações [indicador que mostra a relevância da pesquisa], o Brasil só perdeu para os Estados Unidos”, diz. “Uma pesquisa toda feita no Brasil, e definiu até a própria maneira da Organização Mundial da Saúde lidar com o zika.” Com base na pesquisa de Rehen, a OMS mudou seu discurso e declarou que havia “forte consenso científico” de que o zika causa a microcefalia, dois meses depois de considerar que havia uma “possível associação” do vírus com esses problemas. A brilhante resposta da ciência brasileira ao zika, alerta Rehen, pode não se repetir em crises futuras. O avanço só foi possível porque, desde 2009, a equipe de Rehen, antes que o zika fosse sequer imaginado, o grupo já criava a partir de células tronco tecidos que reproduzem as características do cérebro e, na pesquisa, serviam como “minicérebros” que permitiam entender o funcionamento do órgão. “Isso mostra claramente que tem uma comunidade científica preparada para enfrentar desafios”.

“A ciência no mundo, não só no Brasil, é financiada por financiamento público, inclusive nos Estados Unidos”, defende. “Outro ponto que vale destacar é o total desconhecimento da classe política sobre a ciência. Não sabem sobre como é a ciência é feita ou para quê serve a ciência”, afirma Rehen.

Atualmente, a maior parte do orçamento da ciência brasileira é destinada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financia hoje 90 mil bolsistas e outras 24 mil bolsas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic). Em 2016, dos R$ 7,1 bilhões do orçamento da pasta, quase R$ 2 bilhões foram para o Cnpq.

Davidovich critica a linearidade dos cortes entre os ministérios e destaca que, com o contingenciamento, o orçamento da ciência brasileira voltou a patamares de 2005. “Corte de gastos linear significa a ausência de política para o país. Temos política de estabilização econômica e ajuste no curto prazo, mas não um projeto de país”, afirma Davidovich.

Helena Nader, professora titular de biologia molecular da Unifesp e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, diz que o corte contraria o que vinha sendo sinalizado pelo governo federal, com quem representantes da comunidade científica, incluindo Helena, negociavam as medidas desde o ano passado. “Em 2016, tivemos várias reuniões com vários ministros. O sinal mais importante foi que o ministro [Henrique] Meirelles disse que estava reservando R$ 1,5 bilhão da repatriação pra destinar ao planejamento estratégico da ciência”, diz Helena. “Isso havia nos dado uma esperança: pensamos que a ciência estava na pauta como área relevante para o sair da crise. Não estava”, diz Helena. Diante dos rumores de contingenciamento, a pesquisadora enviou duas cartas à equipe do presidente Temer, expressando as preocupações da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências com o efeito negativo dos possíveis cortes. As cartas foram enviadas por e-mail ao presidente Michel Temer, com cópia para os ministros Eliseu Padilha, da Casa Civil; Henrique Meirelles, da Fazenda; Dyogo Oliveira, do Planejamento; e Gilberto Kassab, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. O retorno, diz Helena, veio em respostas sucintas. “Recebi um ‘recebemos, vamos tomar conhecimento’, por parte do próprio presidente. Mas não tomaram”, critica a pesquisadora.

Helena diz que segue tentando agendar reuniões para argumentar com o governo que o investimento em ciência é fundamental para elevar a produtividade da economia e ajudar o país a sair definitivamente das repetidas crises financeiras. “Porque o Brasil não é uma Coreia? Porque não quer ser. A Coreia em 1998 teve uma crise financeira parecida com a nossa, mas investiu em ciência, tecnologia e inovação. Não se vai sair de uma crise sem ciência e tecnologia.”