Godiva
Eu esperava o trem na estação de Coventry.
Entre guardas e grooms, debruçado na ponte
pus-me de longe a olhar as três antigas torres
e imaginei assim a lenda da cidade.
Oh! Não somente nós, homens de nosso tempo,
da nova geração que, no giro da roda,
o passado ao lembrar falamos largamente
sobre erros cruéis e cruéis injustiças!
Oh! Não somente nós amamos bem o povo
e lamentamos vê-lo assim amargurado
sobre o guante feroz de pesados impostos!
Ela, porém, fez mais, há mil verões passados,
sofreu para vencer, sem medir sacrifícios,
Godiva, esposa fiel do senhor de Coventry,
do poderoso Conde altivo e sem entranhas
que um dia, por ganância, exigiu novo imposto
da cidade faminta. As mães desesperadas
os seus filhos trazendo exclamavam chorando:
— Se pagarmos o imposto oh! morreremos todos! —
Ela foi encontrar em seu salão o Conde
cercado pelos cães, indo de lado a lado.
A barba ondeada e vasta, os cabelos ao vento.
Comovida falou do pranto das mulheres.
E ao Conde suplicou: — Suprimi este imposto
ou todas morrerão com seus filhos nos braços
levados pela fome! — O Conde surpreendido
olhando-a interrogou: — Por causa desta gente,
vós seríes capaz de vos expor ao risco
de sofrer uma dor em vosso dedo mínimo? —
Godiva retrucou: — Por ela morreria!
Êle calmo e sorrindo invocou Pedro e Paulo,
e acariciou-lhe então os brincos de diamante.
— Vós falais por falar, ah! ah! eu compreendo! —
Godiva resistiu serena e resoluta:
— Mas dizei-me, senhor, o que é que eu não faria? —
O implacável senhor com o coração tão duro
como as mãos de Esaú, retrucou a Godiva:
— Se este imposto quereis que do povo retire
eis minha condição: por toda esta cidade
deveis atravessar inteiramente nua! —
Sem mais uma palavra, olhando-a com desprezo,
seguido pelos cães, o Conde retirou-se.
Assim ao ficar só, as paixões e as ideias
como ventos que vão entre eles se chocando
num conflito tenaz durante uma hora inteira,
deixaram-na indecisa até que a piedade
finalmente a venceu. Ordenou que um arauto
ao som de uma trombeta anunciasse a todos
a dura condição que aceitara do Conde.
O tributo, porém, não mais seria pago.
Para que olhos nenhuns a vissem na passagem,
ela a todos pediu que até ao meio dia
não saísse ninguém de sua própria casa
nem abrisse também as portas das janelas.
Encaminhou-se então ao íntimo aposento
e desprendeu ali as águias de seu cinto,
um presente do Conde. Agora parecia
a lua de verão meio encoberta em nuvens.
Sacudiu a cabeça e os cabelos caíram
em farta ondulação atingindo seus joelhos.
Depois com rapidez despiu-se inteiramente.
As escadas desceu e foi atravessando,
como um raio de sol de coluna em coluna,
alcançando em silêncio a porta do castelo.
Encontrou seu cavalo em púrpura ajaezado
com as armas dos brasões em ouro desenhadas.
E a cavalo partiu, vestida de pureza.
O ar parecia ouvir tudo que ali havia.
O vento mal soprava humilde e receioso.
Dos repuxos de prata as pequenas cabeças
tinham olhos febris erguidos para vê-la.
Com os latidos dos cães ficava enrubescida.
Das patas do cavalo o regular barulho
de horror incendiava o sangue de seus pulsos.
E fendas pressentia em todas as paredes,
e nos telhados via olhares que a seguiam.
Tudo isto suportou até que finalmente
pode ver, através das góticas arcadas,
alvejando no campo a flor da madressilva.
Então ela voltou, vestida de pureza.
Mas um baixo vilão, feito de terra ingrata,
que maldito ficou para todos os tempos,
em sua casa abriu um pequeno buraco
e com medo espiou. Mas seus olhos maldosos,
antes de poder ver, caíram diante dele,
mergulhando o vilão na escuridão eterna.
Assim quem nos preserva os nobres sentimentos
apagou um sentido usado infamemente.
E sem nada saber, Godiva prosseguia.
Foi então que ela ouviu as doze badaladas
da hora do meio-dia. Um logo após os outros,
puseram-se a bater os sinos de cem torres.
Penetrou no seu quarto. E saiu em seguida
vestida e coroada a fim de ver o Conde.
Assim ela evitou que fosse pago o imposto.
E ganhou para si um nome imperecível.
Uma Antologia Poética de Dante a Brecht
(Edmundo Moniz – Poemas da Liberdade)
I WAITED for the train at Coventry;
I hung with grooms and porters on the bridge,
To watch the three tall spires: and there I shaped
The city’s ancient legend into this:—
Not only we, the latest seed of Time, 5
New men, that in the flying of a wheel
Cry down the past; not only we, that prate
Of rights and wrongs, have loved the people well
And loathed to see them overtaxed; but she
Did more, and underwent, and overcame, 10
The woman of a thousand summers back,
Godiva, wife to that grim earl who ruled
In Coventry: for when he laid a tax
Upon his town, and all the mothers brought
Their children, clamoring, “If we pay, we starve!” 15
She sought her lord, and found him, where he strode
About the hall, among his dogs, alone,
His beard a foot before him, and his hair
A yard behind. She told him of their tears,
And prayed him, “If they pay this tax, they starve.” 20
Whereat he stared, replying, half amazed,
“You would not let your little finger ache
For such as these?”—“But I would die,” said she.
He laughed, and swore by Peter and by Paul;
Then filliped at the diamond in her ear, 25
“O, ay, ay, ay, you talk!”—“Alas!” she said,
“But prove me what it is I would not do.”
And from a heart as rough as Esau’s hand,
He answered, “Ride you naked through the town,
And I repeal it”; and nodding as in scorn, 30
He parted, with great strides, among his dogs!
So left alone, the passions of her mind,
As winds from all the compass shift and blow,
Made war upon each other for an hour,
Till pity won. She sent a herald forth, 35
And bade him cry, with sound of trumpet, all
The hard condition, but that she would loose
The people; therefore, as they loved her well,
From then till noon no foot should pace the street,
No eye look down, she passing, but that all 40
Should keep within, door shut and window barred.
Then fled she to her inmost bower, and there
Unclasped the wedded eagles of her belt,
The grim earl’s gift; but ever at a breath
She lingered, looking like a summer moon 45
Half-dipt in cloud: anon she shook her head,
And showered the rippled ringlets to her knee;
Unclad herself in haste; adown the stair
Stole on; and, like a creeping sunbeam, slid
From pillar unto pillar, until she reached 50
The gateway; there she found her palfrey trapt
In purple blazoned with armorial gold.
Then she rode forth, clothed on with chastity:
The deep air listened round her as she rode,
And all the low wind hardly breathed for fear. 55
The little wide-mouthed heads upon the spout
Had cunning eyes to see; the barking cur
Made her cheek flame; her palfrey’s footfall shot
Light horrors through her pulses; the blind walls
Were full of chinks and holes; and overhead 60
Fantastic gables, crowding, stared: but she
Not less through all bore up, till, last, she saw
The white-flowered elder-thicket from the field
Gleam through the Gothic archways in the wall.
Then she rode back, clothed on with chastity: 65
And one low churl, compact of thankless earth,
The fatal byword of all years to come,
Boring a little auger-hole in fear,
Peeped: but his eyes, before they had their will,
Were shrivelled into darkness in his head, 70
And dropt before him. So the Powers, who wait
On noble deeds, cancelled a sense misused;
And she, that knew not, passed: and all at once,
With twelve great shocks of sound, the shameless noon
Was clashed and hammered from a hundred towers, 75
One after one: but even then she gained
Her bower; whence re-issuing, robed and crowned,
To meet her lord, she took the tax away,
And built herself an everlasting name.