Antes de tudo

Uma conjunção de forças dominantes em nosso país tramou e consumou o golpe de Estado em 2016 na ânsia e no ímpeto de capturar o poder central e implantar uma ordem conservadora e retrógrada divorciada da soberania popular, de costas à voz das urnas. No grito, juntou para fazer parte da ação decisiva no processo de impeachment gente inescrupulosa e comprometida com os baixios da política. Foi preciso fraudar provas para “justificar” o impedimento da presidenta recém-eleita. O assalto ao poder foi conduzido por um caminho marcado pela aventura. Por isso, as contradições inevitavelmente produzidas pela trama em curso desnudariam — mais dia menos dia –os reais propósitos da causa de exceção.

Ao completar um ano de governo intruso

Só que o estrondo se projetou antes do esperado. A visão de poder absoluto cegou-os levando a cometer crimes nas barbas dos sujeitos dos poderes que os blindavam. Só que desta feita o flagrante comprovado não dava mais para ser encoberto, sendo de fato uma implosão por dentro. O traidor que ocupou o papel central, Michel Temer, agora declara ser chantageado por uma “conspiração”, e o promotor originário da conjuração golpista, desde a posse da presidenta Dilma, Aécio Neves, foram eles precisamente os que voltaram ao local do crime, para cometer ilícitos em série. Os crimes perpetrados por eles mesmos aconteceram em plena vigência do próprio mandato presidencial de Temer, demonstrando como se sentiam imunes a qualquer ação judicial e policial e à vontade para estancarem ações desse tipo, por serem portadores de alto poder, decorrente do pacto golpista.

O presidente imposto foi guindado ao centro do poder político por um pacto da maioria da classe dominante nativa, com o patrocínio dos potentados financeiros internacionalizados, e estava preservado por poderosa blindagem midiática, principalmente das Organizações Globo. Ele atuava de forma desenvolta, para atender a esses poderosos interesses, em regime de grandes negociatas acerca de projetos estratégicos, vide o fracionamento da Petrobras e os acordos lesivos em varias áreas estruturais do país, a venda desimpedida de terras a estrangeiros já em plena marcha. Temer estava bem aboletado, fazendo até troça da sua estupenda impopularidade, se vangloriando da sua grande base de apoio no Congresso, permitindo assim mudanças constitucionais, de fato uma viragem de grande regressão feita pelo Congresso em tempo inédito. Esse o “novo normal” brasileiro no bojo de uma grande crise devastadora, de imposição autoritária ultraliberal e entreguista.

Mas no bojo dessa aventura sistêmica imposta à Nação e ao povo, bastou uma centelha – a delação comprovada in loco dos irmãos Batista – para começar a incendiar a armação erguida pelo atalho institucional dos donos dos poderes. E agora? É finita qualquer possibilidade de Temer permanecer? Sua primeira atitude em fala encenada, expressando resolutividade de que não renuncia, é uma mostra de que resistirá, ou em busca de tentativa de uma rendição negociada para maior sobrevida. Temer em meio ao desastre, estimulado por seu núcleo de confiança no governo, correu para conter a debandada. Ele por meio de instrumentos diretos de seu gabinete montou desde o inicio de seu governo um sistema de operação para sustentar larga base parlamentar, distribuindo cargos, promovendo isenções e benefícios. Neste momento impele essa base a perceber que têm muito a perder com a sua saída, valorizando o custo, para ela, da remoção do cargo.

As Organizações Globo, até bem pouco procurava blindar Michel Temer, sua principal “madrinha”, concentrando seu ataque em Lula. Mas foi a primeira a correr para se livrar de Temer — o incêndio não dava mais para ser debelado, o tucano Aécio seu protegido, já jazia queimando. No entanto, para esse oligopólio da comunicação, é preciso desesperadamente não desmoralizar o impeachment e a ordem que veio sendo implantada fulminantemente por seus amos e badalada sonoramente pela TV Globo, para aproveitar o assalto institucional incomum, pela via de exceção.

Mas a vida é a vida, a realidade é a realidade

O escarcéu produzido pela coalizão golpista prometia — com a destituição da presidenta Dilma — a volta da confiança dos agentes econômicos, a reposição da estabilidade, favorecendo a previsibilidade, e que o crescimento econômico e o emprego seriam rapidamente retomados, a moralidade pública seria regenerada pelo novo governo; os direitos sociais e trabalhistas seriam preservados. Tudo já vinha se revelando em um espetacular embuste. Parcelas crescentes da população estavam percebendo que foram peremptoriamente enganadas. Menos de 10% já não confiam no presidente imposto.

Agora com o desmascaramento da cúpula do governo ilegítimo é mais vasto o impacto sobre a população: verdadeiramente o impeachment e o que prometeram revela-se como um grande ardil. Crescem as manifestações pela renúncia ou saída de Temer. A trepidação sacode a base parlamentar do Governo, as fendas começam a se abrir, não obstante a âncora de interesses que ainda a amarra ao governo. As tais reformas negociadas a alto preço no Congresso paralisam sua tramitação e podem se desfazer. Os sinais da esfera financeira é de que a economia pode afundar em depressão, “abortando a tênue recuperação”.  Daí o desespero dos principais agentes do golpe, e de setores da classe dominante que manobram para garantir a continuidade do seu desiderato, que vinha sendo viabilizado por meio do golpe de Estado.

Paira um vazio político na Nação, permeado de entroncamentos complexos

De um lado e outro, a convergência, aparentemente, se dá pela necessidade de se encontrar uma rápida solução política. Em um primeiro momento prevalece a perplexidade, mas semelhantes correntezas marítimas profundas, que não são aparentes à superfície, se movimentam os atores principais. Usam os vetores para dominância da ação golpista, para pactuar uma solução, através da eleição indireta, apoiados na Constituição. Esta ação, neste momento, é consagrada ao objetivo de garantir a essência da continuidade do que vem sendo entregue pelo impopular governo Temer. E, sobretudo, para manter a blindagem dos componentes da área econômica e financeira, no sentido de preservar o trabalho que vem sendo executado. Essa é a linha e a saída dos comprometidos com o empreendimento golpista e seus afins. Entre eles além das disputas que crescem em situação como a atual, é ainda mais complicada uma convergência em torno dos nomes (presidente e vice-presidente) a serem indicados para eleição indireta nessa circunstância.

Por outro lado, em conseqüência da dimensão da situação em curso, já vinha se destacando uma tendência objetiva, de maior significação, que perfaz e cresce em toda a sociedade: a crise profunda, institucional e incessante fertiliza o anseio e a consciência, de que a esta altura, consciente ou espontaneamente, a única saída do impasse dá-se pelo resgate da soberania popular, cuja solução institucional que ganha urgência, à altura de uma resolução da grande crise, é a convocação de eleição direta para presidência da República, forma e caminho tradicional, que no Brasil, preservado os princípios democráticos básicos, ainda se pode defender e comparar programas de alcance nacional. Então essa é a medida em torno da qual a Nação é chamada a se pronunciar, que pode começar a superar a crise e legitimar um novo governo nacional e torná-lo confiável. Mais de 80% da população se inclina por essa saída. Mesmo os defensores do golpe, como Armínio Fraga, reconhece e chega a afirmar agora que o “investimento só vem forte” após a “definição eleitoral” de 2018, quando então se possa ter um cenário de “maior visibilidade”. Essa é a linha e a posição defendida pela oposição, a qual depende da aprovação de uma Emenda constitucional antecipando a eleição presidencial de 2018, para este ano. Ou ainda, que podia ser facilitada, através de outra via, que seu desfecho varia conforme as circunstâncias: o Processo de cassação da chapa Dilma-Temer, em curso no TSE.

Epilogo

Diante desta situação singular um fator decisivo não pode ser subestimado. Começa a ganhar maior força as massivas mobilizações populares desde abril, contra a ordem golpista instaurada, notadamente a ampla Greve Geral de 28 de abril passado (depois de duas décadas) e a concorrida manifestação pró-Lula em Curitiba, com participação de contingentes de todo país. Esses acontecimentos abrem caminho para amplas mobilizações políticas, unindo todos os trabalhadores e grandes parcelas do povo, superando o âmbito das lutas meramente corporativistas. Essa é a dinâmica de fundo que pode reforçar a oposição a fazer frente à transição dominante via eleição indireta, e poder mesmo construir um acordo democrático, que perpasse o campo oposicionista, relativo à aprovação de uma Emenda constitucional pela aprovação da antecipação da eleição direta para este ano.