O escritor colombiano Gabriel García Márquez faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na Cidade do México. Os relatórios médicos apontaram como causa da morte um quadro infeccioso decorrente de uma pneumonia. Na realidade, o autor lutava já há alguns anos contra um câncer persistente que atingia os seus pulmões, os gânglios e o fígado. E, ao que tudo indica, desde 2012, sua memória parecia falhar e evoluir para um quadro geral de demência. Era a crônica de uma morte anunciada, por uma espécie de dor improvável e escorregadia, da mesma natureza daquela que atingira o presidente do conto “Boa viagem, senhor presidente”. Aos poucos, o escritor colombiano transformava-se em um dos seus muitos personagens: uma espécie de patriarca carcomido pelo tempo, cujos “anos de glória e poder haviam ficado para trás sem remédio” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 20). Tal qual um dos moradores da pequena Macondo, Gabo começava a apagar da memória “o nome e a noção das coisas”, “a identidade das pessoas e a consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2009, p. 85-86).

Felipe de Paula Góis Vieira. atualmente desenvolve seu trabalho de doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp
No México, nem mesmo Mamãe Grande teria funeral semelhante. Da mesma forma que a famosa matriarca de Os funerais da Mamãe Grande, o escritor de Aracataca morria “com cheiro de santidade” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p. 147). O Sumo Pontífice não compareceu à cerimônia como ocorre no conto, mas em compensação dezenas de milhares de pessoas desfilaram diante da urna que continha as cinzas do autor de Cem anos de solidão. Dentro do Palácio de Belas Artes da capital mexicana ressoavam diferentes melodias: músicas do compositor e pianista húngaro Bela Bartók e também cumbias e vallenatos de todo o Caribe. Do lado de fora do edifício, uma nuvem de trezentas e oitenta mil mariposas amarelas de papel, trazidas da Colômbia, reverberava no ar.

Segundo o historiador mexicano Enrique Krauze, que compareceu ao evento, um ancião portava um letreiro que continha os seguintes dizeres: “Gabo, te veré en el cielo”. Um pouco mais adiante, um garoto comentava: “Vengo a ver al rey de Macondo”.  De fato, García Márquez era o rei de Macondo e um dos escritores mais importantes e influentes da América Latina. Mas, não apenas isso. Era um dos autores mais populares, queridos e requisitados do continente. Nos anos em que ainda vivia a plenitude do ofício literário chegou a ser comparado com Cervantes; e não foram poucos os escritores, jornalistas e críticos literários que atribuíram à sua obra uma estatura bíblica e universal.

O povoado fictício de Macondo, presente na obra do escritor colombiano desde a sua estreia literária em A revoada (1955), universalizou-se com a publicação, em 1967, de Cem anos de solidão. Em 2007, por ocasião do IV Congresso Internacional de Língua Espanhola, ocorrido na cidade de Cartagena de Índias, García Márquez afirmou categoricamente: “los lectores de Cien años de soledad son hoy una comunidad que si viviera en un mismo pedazo de tierra, sería uno de los veinte países más poblados del mundo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2007). Às vésperas de completar cinco décadas de existência, a saga da família Buendía atingiu a cifra impressionante de 150 milhões de exemplares vendidos, em aproximadamente 36 idiomas diferentes. Os números confirmam a onipresença do romance e a singularidade do seu autor: poucos escritores alcançaram a circulação, a fama e o reconhecimento de Gabriel García Márquez. Como isso foi possível? De que forma o autor alcançou o estatuto de voz privilegiada para falar e escrever sobre os problemas e vicissitudes da América?

As respostas para essas perguntas não são tão fáceis de captar. Quando pensamos a trajetória de Gabriel García Márquez, o esforço de reconstrução biográfica se torna extremamente melindroso. Como lembra o jornalista chileno Héctor Soto (p. 204), apesar de ter uma vida exaustivamente biografada e meticulosamente documentada, o escritor colombiano não é uma figura fácil de capturar. Sua trajetória pertence ao melhor das letras hispano-americanas, mas também ao mundo da fábula, no qual os dados aparentemente mais puros se mesclam à invencionice e ao embuste. [2] Gabo, apesar da obviedade do adjetivo, possui uma vida absolutamente literária e, tal qual a narrativa que o consagrou, mesclou o cotidiano ao insólito, o real ao fantástico, a história ao mito.[3] Sua biografia sempre esconderá um transfundo de polêmica e mistério irredutível.

Em mais de um sentido, Gabo se fez. Trabalhou com muito afinco para se converter em um grande narrador; com a perícia e a paciência de um artesão envelhecido no ofício, burilou a sua escrita e deu acabamento aos seus textos. Transformou-se, por assim dizer, em um grande escritor. Mas, apenas isso não era suficiente. Apesar do tom de quase desprezo com que falava da fama e do sucesso alcançados, o escritor queria ter repercussão massiva e sempre escolheu com muita precisão e cuidado as amizades, as inimizades e as redes intelectuais que lhe levariam a esse objetivo. [4]

García Márquez flertou a todo o momento com o poder, que o fascinava e seduzia não apenas como motivo literário. Com simpatia, humor e certa leviandade, desejou como poucos de sua geração ter livre acesso aos bastidores da política latino-americana. E, teve. Foi considerado por muitos de seus pares, e não sem certo tom de reprovação, como o escritor “amigo de ditadores”. No entanto, suas incursões ao ambiente político da época nunca o converteram em um intelectual estritamente político, nunca o fizeram refletir de forma mais séria e apaixonada sobre as contingências da vida pública. Dos grandes temas políticos da segunda metade do século XX – a igualdade, a liberdade, a democracia, o socialismo, a revolução, a globalização, a governabilidade, o desenvolvimento –, o autor nunca ditou cátedra ou foi referência de reflexão (SOTO, 2014, p. 229-230). Apesar da clara sensibilidade de esquerda e da forte consciência anti-imperialista que possuía, manteve-se, na maior parte do tempo, apartado desse debate que tanto empolgou os intelectuais que por aquela época atuavam no contexto latino-americano. Talvez, tanto quanto a reflexão sobre o poder, interessava-lhe o exercício do poder. [5]

Apesar da ausência de uma reflexão ensaística mais consistente sobre o tema, essa familiaridade cortejada e alcançada junto aos poderosos do continente o converteu no grande agente mediador dos assuntos e problemas políticos da América Latina. O escritor esteve presente, por exemplo, na devolução do Canal do Panamá, na libertação de presos nos cárceres cubanos, nos contatos do governo colombiano com a guerrilha, nas medidas administrativas para suavizar o embargo feito pelos Estados Unidos a Cuba, sem mencionar as grandes campanhas internacionais em favor dos direitos humanos e das causas emblemáticas da esquerda mundial (SOTO, 2014, p. 229).  Na mesma velocidade que todos esses temas pipocavam pela imprensa e grandes veículos de comunicação da época, também milhares de exemplares dos seus livros eram vendidos no mundo todo. Quais relações podemos estabelecer entre esses fatos?

García Márquez faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na Cidade do México, depois de lutar por alguns anos contra o câncer nos pulmões, gânglios e fígado.
Podemos afirmar, de forma muito direta, que García Márquez construiu a si mesmo e buscou obstinadamente esse lugar de importância na história do continente. Essa intenção deliberada de “fazer-se” nasceu, sobretudo, da enorme capacidade que o autor possuía de ler o contexto histórico em que atuava e converter os assuntos aparentemente mais importantes e também mais triviais em relatos e anedotas. Tudo isso, obviamente, sempre acompanhado de uma cota bastante calculada de astúcia e projeção. Em entrevista concedida ao biógrafo inglês Gerald Martin, autor de Gabriel García Márquez: uma vida, o escritor colombiano confessou que todos nós temos três vidas: uma pública, uma privada e outra secreta. E quando esses três elementos se associam para criar uma personalidade altissonante e onipresente na história da América?

Ao ler as inúmeras entrevistas que García Márquez concedeu antes e após a fama, temos a impressão de que ele é o homem certo, no momento e local exatos. O acaso ou o senso bastante aguçado para notícias e acontecimentos de grande impacto o fizeram assistir de camarote a queda de inúmeros ditadores, bem como as grandes agitações políticas e sociais que comoveram o continente na segunda metade do século XX. Quase que por obra do destino, suas memórias e também biografias o colocam como uma espécie de observador privilegiado da história latino-americana. Sempre no olho do furacão, o autor buscou incessantemente entrelaçar a sua vida privada e familiar aos grandes acontecimentos históricos da América. Realidade, exagero ou invenção deliberada, qual efeito isso produziu sobre a repercussão e circulação de suas obras?

 

As primeiras capas de Cem Anos de Solidão produzidas pela Sudamericana, a capa da edição brasileira pela Editora Sabiá e o autógrafo de García Márquez
 

Ao leitor mais desatento, ficará, no mínimo, a sensação de que a vida de Gabriel García Márquez está intimamente associada ao mundo latino-americano e que, uma vez tão profundamente mergulhada nele, o autor seria de fato a voz amplamente autorizada a falar e escrever sobre a América.

A publicação de Cem anos de solidão, em 1967, converteu toda a obra anterior de Gabriel García Márquez em bons ensaios e esplêndidos rascunhos. O sucesso fulminante do livro direcionou o olhar da crítica para esses textos, identificando neles a cozinha na qual se foram elaborando a fogo lento os temas da violência, do despotismo, das famílias, dos clãs dinásticos, da guerra civil e seus coronéis, do matriarcado, da política e suas perversões, da solidão e da idade dourada e suas nostalgias; temas que, seguindo essa lógica, encontraram sua máxima expressão nesta obra definitiva e maior que foi Cem anos de solidão (SOTO, 2014, p.217).

No final da década de 1960, o romance se transformou em símbolo de um fenômeno editorial, o chamado boom da literatura hispano-americana. Em certo sentido, entregou à América Latina uma carta de identidade que até aquele momento pouquíssimos livros haviam conseguido impor com tanto consenso. O êxito do romance, como não podia deixar de ser, colocou García Márquez em outra galáxia, tirando-o dos locais por onde sempre havia transitado – a boemia literária, a picaresca da marginalidade e a eterna necessidade de se preocupar com as contas do final do mês – e instalou-o nos circuitos da fama e do poder. Era exatamente ali onde sempre quisera estar (SOTO, 2014, p. 221-222).

Uma metáfora da condição latino-americana

Cem anos de solidão narra a história da fictícia cidade de Macondo e a ascensão e queda de seus fundadores, a família Buendía. Os seis personagens centrais, que dão início ao romance e dominam a primeira parte, são: José Arcádio Buendía, o entusiasmado fundador da vila de Macondo; a esposa dele, Úrsula Iguarán, espinha dorsal não só da família, mas também do romance inteiro; os filhos, José Arcádio e Aureliano – o último, coronel Aureliano Buendía, considerado em geral o principal personagem do livro; a filha, Amaranta, atormentada quando criança e amargurada como mulher; e o cigano Melquíades, que traz as notícias do mundo exterior e, por fim, estabelece-se em Macondo.  A história da Colômbia é dramatizada por intermédio de dois eventos principais: a Guerra dos Mil Dias e o massacre dos trabalhadores bananeiros em Ciénaga, no ano de 1928. Essas eram, segundo Gerald Martin (2008, p.368), as principais referências históricas que formavam o contexto da própria infância de Gabriel García Márquez.

?A verdade é que ninguém – nem o próprio García Márquez – parece capaz de lembrar o dia, a semana ou mês em que foi escrita a primeira frase de Cem anos de solidão. Segundo Eric Nepomuceno (2009, p. 15), tudo o que se sabe é que foi numa terça-feira de 1965. E que o mais provável é que tenha acontecido entre o final de junho e começo de agosto. É certo, porém, que aconteceu na Cidade do México, na Rua Loma, número 19, em San Angel Inn, um bairro classe média da capital mexicana. Quando escreveu a famosa primeira frase, o escritor colombiano estava com 37 anos de idade e havia chegado à Cidade do México quatro anos antes, depois de uma agitada temporada em Nova York como correspondente da agência cubana de notícias Prensa Latina. Levava pouco mais de duzentos dólares no bolso, nenhum vislumbre de emprego ou trabalho e a determinação de se transformar em roteirista de cinema e se estabelecer de vez como escritor (NEPOMUCENO, 2009, p. 15).

Entre o dia da sua chegada ao México e o amanhecer da véspera em que se sentou diante da máquina de escrever e começou a primeira frase do livro que mudaria a sua vida, a trajetória de García Márquez navegou “ao sabor de ventos variados” (NEPOMUCENO, 2009, p. 16). Em 1961, o escritor colombiano era, na verdade, um quase desconhecido. Tinha escrito quatro livros e apenas um deles fora publicado na Colômbia, sem maiores glórias que algumas resenhas elogiosas. Trechos desses livros e alguns contos haviam sido editados em publicações de prestígio no México, seu nome circulava com relativo sucesso entre artistas e intelectuais, mas ele estava longe de ser um nome conhecido fora desse ambiente restrito.

Sua vida tomou um rumo diferente apenas em 1965. Após quatro anos vivendo no México, García Márquez se tornou um roteirista muito bem cotado e um escritor cada vez mais reconhecido e requisitado por editores de vários países latino-americanos. Com as profissões de publicitário e roteirista ganhava um bom dinheiro, morava numa casa confortável, pertencia a círculos importantes da vida cultural mexicana e era dono de uma boa coleção de amigos influentes. Mas, apesar do rumo promissor, García Márquez não estava feliz. Nos últimos cinco anos não havia escrito um conto, não havia começado nenhum romance, nem voltara, para valer, a algum projeto abandonado. Queixava-se, aos amigos mais íntimos, de aridez total (NEPOMUCENO, 2009, p. 21).

Foi nesse clima de incerteza que o escritor colombiano decidiu levar a família para umas curtas férias em Acapulco. Segundo o biógrafo Gerald Martin, foi na estrada, pilotando um Opel branco, que brotou a primeira sentença de todo o romance.

Naquele dia, ainda não havia dirigido por um longo percurso quando, “de lugar nenhum”, a primeira sentença de um romance lhe flutuou na mente. Por trás dela, invisível mas palpável, estava o romance inteiro, como se tivesse sido ditado – baixado – do além. Era tão poderoso e irresistível quanto um feitiço, um encantamento mágico. A fórmula secreta da sentença estava no ponto de vista e, acima de tudo, no tom: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento […]”. Como se estivesse em transe, García Márquez parou, deu meia-volta no Opel e voltou para a Cidade do México. E então… (MARTIN, 2010, p. 366)

Essa versão clássica da história segue com García Márquez virando o carro na mesma hora em que escuta a frase na cabeça e cancelando peremptoriamente as férias da família. Anos mais tarde García Márquez diria que, após ter chegado a sua casa, sentara-se à máquina de escrever no dia seguinte, como fazia todos os dias, exceto que “desta vez não levantaria nos próximos 18 meses”. A maneira como o romance foi concebido é descrita na maior parte das biografias e também nas entrevistas concedidas pelo autor como uma espécie de epifania. No entanto, como grande parte das histórias que envolvem o escritor colombiano, essa também não apresenta uma única versão. Nas entrevistas que realizou, Martin (2010, p. 366) identificou pelo menos uma segunda possibilidade: nela, García Márquez não teria retornado sumariamente à Cidade do México. Ele teria passado o fim de semana em Acapulco, dando voltas, ansioso, totalmente embebido pelo livro, e só na manhã de uma incerta terça-feira, já de regresso à capital mexicana, teria se sentado para começar a escrever o romance, não aos borbotões como sugere a sua vasta mitologia, mas incluindo vários momentos de interrupção e revisão.

E essa não é a única peripécia vinculada à produção de Cem anos de solidão. Com a decisão de dedicar-se integralmente à escritura do romance, García Márquez pediu demissão dos empregos que possuía, reuniu aproximadamente cinco mil dólares e colocou todo o dinheiro nas mãos de sua esposa, Mercedes. Desse momento em diante, ela deveria encarregar-se de tudo, pois nos próximos seis meses – período de tempo em que planejava escrever o livro – o autor não voltaria à vida cotidiana. Segundo Nepomuceno (2009, p. 21-22), ele refugiou-se num canto da sala de jantar, separado do resto da casa por uma divisória de madeira e uma placa na qual se lia “La Cueva de la Mafia”, e ali permaneceu pelos próximos meses. No entanto, os seis meses previstos transformaram-se em catorze e, no meio do caminho, todo o dinheiro da família acabou. O carro foi penhorado, e depois vendido, assim como as joias de Mercedes e vários utensílios domésticos. Amigos emprestaram dinheiro, e quando finalmente o livro acabou García Márquez e Mercedes deviam nove meses de aluguel, quatro meses de açougue, sabe-se lá quantos meses de quitanda e padaria. Não tinham mais nada para empenhar ou vender (NEPOMUCENO, 2009, p, 23). O golpe final veio na hora de despachar os originais para Buenos Aires, onde a poderosa editora Sudamericana esperava por eles.

O funcionário do correio pesou o pacote, e disse: “São 82 pesos”. Mercedes contou as notas e moedas, e disse ao marido: “Só temos 53”. Os dois dividiram o pacote pela metade e despacharam. Era uma sexta-feira, teriam até a segunda para tentar descobrir de onde tirariam dinheiro para mandar a outra metade.
Quando enfim conseguiram empenhar o secador de cabelos de Mercedes, o aquecedor elétrico da Cueva de la Mafia e uma batedeira de bolo que tinham ganho como presente de casamento, mandaram o que faltava. E só então perceberam que no pacote despachado antes estava, na realidade, a segunda parte do livro. Quer dizer: o editor recebeu primeiro a parte final. Pouco depois, o mesmo correio trouxe o cheque de adiantamento sobre direitos autorais do livro. Com esse dinheiro o aluguel de quase um ano foi pago e a vida recomeçou, à procura do ritmo de antes. (NEPOMUCENO, 2009, p. 23)

Essas peripécias, associadas à versão de um escritor atormentado por um bloqueio criativo – que encontra em um momento de revelação a obra de uma vida –, começaram a ser divulgadas após a publicação do romance. Essas histórias de bastidor, reveladas em entrevistas concedidas após 1967, acrescentaram um colorido a mais ao livro que, segundo o próprio autor, vendeu nos anos seguintes como “cachorro quente”. A história apenas reforçou o arrebatamento que a obra causou dentro de um vasto e variado público leitor. A tiragem inicial de oito mil exemplares esgotou-se em quinze dias. Veio, como afirma Nepomuceno (2009, p. 24), uma segunda, de dez mil, que teve o mesmo destino. Em três anos foram 600 mil exemplares em castelhano, e em oito, as vendas chegaram a dois milhões. Em 1982, quando García Márquez foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, só em castelhano, 25 milhões de exemplares de Cem anos de solidão tinham sido vendidos.

O sucesso imediato da obra transformou García Márquez em um dos intelectuais mais reconhecidos e requisitados do continente. Além disso, difundiu-se uma ideia amplamente aceita e promovida pelos literatos do período de que Macondo, a cidade fictícia do romance, seria reflexo direto – ou, até mesmo, o perfeito retrato – da América Latina. Isso significa que Cem anos de solidão se consolidou, ao longo dos anos, como o romance “latino-americano” por excelência e, por consequência, Macondo como uma representação possível – e, por vezes, considerada fidedigna – da Colômbia e da América.

Obviamente, esse sucesso estrondoso trouxe à tona alguns problemas. Para Emil Volek, doutor em Letras Hispânicas e professor do Departamento de Línguas e Literatura da State University, Tempe, Estados Unidos, a realidade de Macondo fora tão graciosa e hilariante que “fascinó al público extranjero, que tomó todo esto por la realidad latinoamericana, y pidió más”. A força arquetípica de Macondo tem sido tal, que o sociólogo chileno José Joaquín Bruner tem escrito e falado contra o “macondismo”. O termo indica a forma como a obra de García Márquez, em especial Cem anos de solidão, tem sido recebida e usada em determinados círculos intelectuais. Para Brunner, macondismo seria certa atitude de interpretar a América Latina através “de las bellas letras” ou, mais exatamente, como produto exato dos relatos que se contam a partir de sua literatura. Segundo ele, a crença de que estes relatos, em especial aqueles produzidos pelo boom da década de 1960 – sobretudo quando são aclamados pela crítica estrangeira –, são constitutivos da realidade latino-americana ou a expressam literalmente é um efeito real desta atitude.

Esta constatação prova que Macondo se tornou um território incorporado definitivamente ao mapa da literatura ocidental, ou pelo menos, latino-americana. Mais do que isso, virou uma espécie de sinônimo do realismo mágico, representando, mesmo que idilicamente, o desejo de unidade da América Latina.

Como lembra a pesquisadora Karla Pereira Cunha (2007, p.64), na interpretação do romance podemos observar basicamente dois caminhos divergentes. Há críticos literários e historiadores que veem a obra como a representação do local: do Caribe, da Colômbia e por extensão da América Latina; ou seja, o romance é visto como espaço de representação da história, uma espécie de metáfora da situação latino-americana entrelaçada com a história da Colômbia. Outros buscam pensar a obra dentro do cruzamento entre história e mito. Nessa interpretação, o romance é visto como criação e síntese do mundo, uma metáfora da condição humana revelada através dos membros da família Buendía. Para Cristo Figueroa (1998, p.113), não é estranho que a extensa bibliografia crítica sobre o romance manifeste uma contraposição de leituras, entre aqueles que a interpretam fundamentalmente como uma grande metáfora da condição humana – Julio Ortega, Carmen Arnau ou José Miguel Oviedo – e aqueles que a veem, sobretudo, como uma chave de acesso ao contexto histórico do continente – Ángel Rama, Emmanuel Carballo ou Isaías Lernes. Enquanto os primeiros apoiam seus argumentos na circularidade do tempo, no inexorável determinismo que rege a vida dos Buendía, na solidão que pesa sobre seus personagens, na impotência ante as forças indomáveis da natureza e dos instintos dos homens, para os últimos, o que importa na obra é a denúncia dos problemas sociopolíticos locais, a matança dos trabalhadores, a violência imposta pelo poder, o roubo de terras e a opressão ostensiva sobre os excluídos e fracos. Outro setor crítico prefere, ainda, referir-se a uma dupla significação de Macondo (Palencia Roth ou Lucila Inés Mena), segundo a qual o dito espaço literário, ao mesmo tempo em que se conecta com realidades históricas determinadas, possui suficiente autonomia para plasmar simbolismos de ressonância universal. [6]

Lido como uma grande metáfora da condição latino-americana, o que é possível perceber é que das páginas de Cem anos de solidão vislumbra-se a perspectiva de uma América Latina marcada por lutas internas pelo poder, pela corrupção, pela violência gerada por obscuras guerras civis entre liberais e conservadores, pela exploração descontrolada do capital estrangeiro através da “febre da banana”, pela greve dos trabalhadores e a repressão do exército. Mais do que isso, vislumbra-se uma América possivelmente redimida pela figura do herói redentor, na figura do caudilho, e da revolução. Essas representações da História contidas em Cem anos de solidão, lidas e interpretadas como metáforas da condição latino-americana, solidificaram-se como explicações plausíveis e possíveis da realidade do continente. O sucesso do romance habituou leitores do mundo todo a perceber a América como espaço da utopia, da revolução, do intelectual de esquerda e das lutas pelo poder.

Para Selma Calasans Rodrigues (1993, p.10), não podemos esquecer que a geração do boom foi, por certo, a geração das utopias, das grandes construções, crenças e questionamentos. Segundo Figueroa (1998, p.119-120), apesar do final apocalíptico do romance, em Cem anos de solidão não há uma condenação total. A obra, como os grandes textos, prolonga-se em seus leitores e em outros textos de seu autor. É preciso lê-la prolongada e transformada no discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, quando García Márquez, depois de mostrar o tamanho da nossa solidão histórica e depois de explicitar as implicações profundas da busca do ser latino- americano, termina cantando a vida e a esperança, anunciando, então, a boa nova que estava ausente na novela. E, ao final desse canto, anuncia a segunda oportunidade, a possibilidade iluminada de outra utopia:

Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 28)

Com a publicação de Cem anos de solidão, García Márquez terminou uma vida. A outra, exposta, como diria Borges, “a la violenta luz de la gloria”, abunda em chamadas de jornais e em flashes de fotografia, em chefes de Estado, celebridades e tiragens milionárias (OSPINA, 2014, p. 18). A explosão massiva que representou Cem anos de solidão desnudou os complexos da Colômbia. Seu herói cultural inventou uma mitologia doméstica e manteve uma distância estratégica ante esses mesmos complexos. Macondo era o Caribe, mas também os mapas percorridos por García Márquez para compreender o livro que ao fim pôde escrever quando vivia no México.

García Márquez faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na Cidade do México, depois de lutar por alguns anos contra o câncer nos pulmões, gânglios e fígado.
 

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1 – Felipe de Paula Góis Vieira possui mestrado e graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atuando principalmente nos seguintes temas: História da América Latina, História Intelectual, literatura hispano-americana, realismo mágico, identidade latino-americana. Atualmente desenvolve seu trabalho de doutorado no programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, na área de concentração “Política, Memória e Cidade”. E-mail:[email protected]

2 – Gerald Martin, autor de Gabriel García Márquez: uma vida, passou aproximadamente duas décadas pesquisando a trajetória do escritor colombiano. Sobre os desafios dessa pesquisa, ele comentou: “não foi fácil descobrir o fio da meada através das múltiplas versões que García Márquez deu a quase todos os momentos importantes de sua vida. Assim como Mark Twain, a quem García Márquez pode ser bem-comparado, ele adora uma boa invencionice, sem falar de um bom exagero, e gosta também que uma história seja satisfatoriamente bem-acabada, sem esquecer os incidentes formativos que construíram a história de sua vida. Ao mesmo tempo, também é brincalhão, antiacadêmico e fortemente a favor de mistificações, fuxicos e inequívocas intrigas quando se trata de despistar jornalistas ou professores. Isso é parte do que ele chama de seu mamagalismo […] pode ser traduzido discretamente como seu lado provocador, espirituoso. Mesmo quando se pode ter certeza de que qualquer anedota, ou um caso específico, é baseado em algo que ‘realmente’ aconteceu, ainda assim não se pode defini-lo de uma única maneira, porque logo se descobre que ele contou a maioria das histórias bem conhecidas de sua vida em várias versões diferentes, e todas possuem pelo menos um elemento de verdade” IN: MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010. p. 22-23.

3 – Gabriel García Márquez é considerado um dos grandes expoentes do chamado “realismo mágico”, um dos muitos sintagmas utilizados pelos críticos para se referir a um determinado tipo de literatura que congrega a descrição realista a um senso de “mistério” e “adivinhação poética da realidade”. Em outras palavras, a literatura enquadrada dentro desse selo analítico costuma inserir em seu enredo e no desenvolvimento de seus personagens elementos “fantásticos” ou “maravilhosos”, percebidos na trama como parte constituinte da realidade ou da “normalidade”. A expressão foi utilizada pela primeira vez, para se referir à literatura hispano-americana do século XX, nos textos Letras y hombres de Venezuela (1948), de Uslar Pietri, e Magical Realism in Spanish American (1954), do crítico mexicano Angel Flores. Com o tempo, o debate sobre a funcionalidade do conceito se expandiu e outros termos foram utilizados para se referir a esse tipo de narrativa (o real maravilhoso americano, a literatura fantástica, o barraco e o neobarroco).

4 – Para Adriane Vidal Costa, estudiosa do tema e professora de História da América na Universidade Federal de Minas Gerais, a consagração e o sucesso editorial de Cem anos de solidão ocorreu, em grande parte, devido à rede intelectual latino-americana de esquerda que se formou na década de 1960. Costa afirma que o romance era ansiosamente esperado pelo público e crítica especializada, antes mesmo de ser publicado pela editora argentina Sudamericana em 1967. Esse clima de espera foi fruto da promoção e divulgação realizada por intelectuais importantes e consagrados do período. A atuação de Carlos Fuentes, idealizador da publicação parcial do romance em inúmeras revistas e suplementos literários do México, foi fundamental nesse sentido. Além dele, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, futuro desafeto de García Márquez, foi um dos grandes responsáveis por fazer circular a ideia de que o romance era a novela definitiva do continente. Posto dessa forma, não apenas a qualidade literária do escritor colombiano, mas também as suas amizades e redes intelectuais foram fundamentais para o êxito que suas obras alcançaram. Para maiores informações, consultar: COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais, política e literatura na América Latina: o debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa. São Paulo: Alameda, 2013.

5 – É bastante famosa a crítica feita pelo escritor chileno Roberto Bolaño, que o acusa de ser “um homem encantado de ter conhecido tantos presidentes e arcebispos”. Além da amizade inabalável com Fidel Castro, García Márquez notabilizou-se por sua proximidade com figuras como o ditador panamenho Omar Torrijos e os ex-presidentes Felipe González (Espanha), Bill Clinton (Estados Unidos) e François Mitterrand (França). Na sua lista de amizades poderosas também se encontra a maior parte dos últimos presidentes da Colômbia.

6 – A respeito das linhas interpretativas que assimilam Cem anos de solidão como uma grande metáfora da condição humana, ver: ORTEGA, Julio. La contemplación y la fiesta. Ensayos sobre la nueva novela latinoamericana. Lima: Editorial Universitaria, 1968. p. 45-58; ARNAU, Carmen. El mundo mítico de Gabriel García Márquez. Barcelona: Ediciones Penísula, 1975; OVIEDO. Com relação a uma leitura que privilegia a perspectiva da história latino-americana, ver: RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. Bogotá: Siglo XXI, 1988; CARBALLO, Emmanuel. “Un gran novelista latinoamericano” IN: García Márquez, colección el escritor y la crítica. Madrid: Taurus, 1982. p. 22-37; LERNES, Isaías. “A propósito de Cien años de soledad” IN: Cuadernos americanos, México, n.1, p.186-200, jan-fev de 1969. A dupla significação de Macondo é objeto de estudo dos livros: MENA, Lucila Inés.  La función de la historia en Cien años de soledad. Barcelona: Plaza y Janés, 1979 e ROTH, Michael Palencia. Gabriel García Márquez: la línea, el círculo y las metamorfosis del mito. Madrid: Gredos, 1983.

Publicado no Jornal da Unicamp