DEPOIMENTO: Gilse Maria Westin Cosenza
Gilse Maria Westin Cosenza nasceu em 1943 na cidade de Paraguaçu, Minas Gerais. No movimento estudantil, foi militante da Juventude Estudantil Católica (JEC), da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Ação Popular (AP). Na prisão, sofreu torturas físicas, psicológicas e sexuais. Com a integração da AP ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), passou a militar no partido e foi uma das responsáveis pela sua reconstrução no Ceará. Transferindo-se para São Paulo, assumiu a presidência da União Brasileira de Mulheres (UBM) e dirigiu a Comissão Nacional de Mulheres do PCdoB. De volta a Minas Gerais, foi presidente do PCdoB em Belo Horizonte. Atualmente é membro do Comitê Estadual do PCdoB-MG.
Família conservadora
Meu pai, José Nicodemo Cosenza, era um comerciante extremamente católico, conservador e patriarcal. Para ele, suas filhas deveriam fazer o ginásio e depois o magistério – isso era o máximo que ele admitia. Dar aula para crianças seria, segundo ele, a única profissão aceitável para uma mulher, até se casar e se tornar uma respeitável esposa e mãe.
O fato de não haver ginásio para mulheres em Paraguaçu, minha cidade natal, fez com que eu fosse para o internato no Colégio das Irmãs dos Santos Anjos, em Varginha. O internato era rígido e nos deixava muito presas. E eu sentia que era preciso movimentar as coisas e ir mais adiante.
Minha mãe, Simone Westin Cosenza, professora primária, era o modelo de esposa e mãe tradicional, totalmente submissa ao marido e com 11 filhos. Estava sempre grávida e com uma criança agarrada a ela. Vivia preocupada em não desagradar a meu pai. Eu dizia desde menina que não queria casar nunca. Incomodava-me tremendamente a diferença entre o tratamento dado a meus irmãos mais velhos e a mim, as amarras que me eram impostas.
Iniciando a militância estudantil
Quando eu já estava com 13 anos de idade, surgiu a ideia de se criar a Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas) de Varginha. Foi a primeira vez que ouvi o nome de uma entidade estudantil.
As freiras permitiram que dois candidatos apresentassem suas propostas no nosso internato. Achei aquilo entusiasmante. Os estudantes já estavam reivindicando o direito de opinar sobre as aulas, a disciplina no colégio e a criação de canais de diálogo com a direção. Apoiei Clodoaldo, que era o candidato mais avançado. Fiz campanha e até jingle.
Terminado o ginásio, meu pai queria que eu continuasse interna. Aprontei o maior escândalo e consegui o apoio de minha avó materna que morava em Belo Horizonte. Fui para lá, passei no concurso de seleção do Instituto de Educação e continuei vivendo com minha avó.
Ao entrar no Instituto de Educação, achei tudo maravilhoso e comecei a me mexer. Conheci imediatamente Helena Paixão, que era dirigente da JEC naquela escola e me convidou para entrar na organização. Eu desconfiei: achava que aquilo era para ser freira, ser “filha de Maria”. Mas ela me convenceu que não. Disse que a JEC era para cuidar das pessoas, para brigar pelas questões sociais. Helena dizia que Cristo não queria justiça só para depois da morte, mas para ser usufruída em vida e que a organização queria mobilizar os estudantes com esse objetivo. Então, entrei para a JEC e imediatamente criamos o grêmio estudantil, do qual fui diretora. Isso tudo aconteceu nos primeiros anos da década de 1960. Naquele momento, começava a luta pelas reformas de base.
A crise da legalidade, quando os militares tentaram impedir a posse de Jango em 1961, nem chegou até nós no colégio. A primeira luta mesmo foi pelo acesso à educação. A partir disso, as discussões foram se ampliando. Começamos a perceber a ligação da questão da educação com a luta pela reforma agrária, contra o imperialismo, pela independência do Brasil, pelos direitos sociais dos trabalhadores. Criamos um grupo para dar aulas de alfabetização nas favelas pelo método Paulo Freire. Aí nosso contato com os problemas sociais aumentou. Percebemos que a luta era maior e envolvia também a urbanização, a saúde, a questão da moradia. Ou seja, passamos pouco a pouco a ter uma visão mais ampla dos problemas de nossa sociedade.
A universidade e o golpe
Terminado o terceiro ano no Instituto de Educação, decidi que faria um curso superior que me colocasse em contato com as questões sociais. Resolvi cursar Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC), assim como outras companheiras da JEC, e fazer da minha profissão um instrumento de luta em benefício do povo.
Meu pai, que então morava em Belo Horizonte, disse que não tinha condições financeiras e que faculdade não era lugar de moça de família. Então, fiz concurso para professora do ensino público e trabalhei por um ano nessa profissão. Ao término desse período, fui falar com ele. “Agora vou fazer vestibular. E se o senhor não quiser que eu faça estando aqui na sua casa, pode deixar que eu vou embora”. Ele finalmente concordou. Comecei a aprender que, para a mulher, era preciso em primeiro lugar libertar o bolso para depois ter liberdade de cabeça.
As aulas começaram em fevereiro de 1964. A essas alturas eu estava absolutamente enfronhada em tudo o que estava acontecendo no país. Nesse período, já havia ingressado na JUC.
Desde a madrugada do dia 1º de abril de 1964, as rádios anunciavam a “revolução redentora”, ou seja, o golpe militar. Havia tanques nas ruas, aquela confusão toda. Chegamos de manhã à faculdade e começamos a discutir o assunto. Não queríamos assistir às aulas, mas ir para as ruas. Fizemos uma passeata em direção à Praça Sete, achando que lá poderia haver gente para nos dar armas, o que nos possibilitaria fazer frente aos militares. Estudantes de outros cursos e escolas também se dirigiram ao local pensando a mesma coisa. Mas ali só encontramos o Exército e ninguém para nos dar armas, nem para nos organizar. Então, frustrados, nos perguntamos: “E agora?”.
Resistência organizada
Decidi que era preciso resistir de alguma forma e que a JUC já não me bastava. Enquanto a Ação Popular foi legal, eu não entrei. Na hora em que se tornou clandestina com o golpe, no dia 1º de abril, passei a integrá-la. E novamente Helena Paixão é que me recrutou.
A AP já era hegemônica no movimento estudantil. Existia o partidão, o PCB, e tinha surgido a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (Polop), que já considerava o partidão como reformista.
Fazíamos a luta do movimento estudantil da maneira que era possível. Começamos por arranjar mimeógrafos, e organizávamos panfletagens-relâmpago nas feiras livres, nas portas das fábricas e nas escolas. Conseguimos o apoio dos frades dominicanos. Um deles nos levava e ficava com o carro ligado nos esperando. Estudávamos tudo antes e agíamos cronometradamente.
Um “monge” na clausura
Um dia fomos panfletar numa tecelagem e a polícia chegou. O frade dirigiu como um louco para tentar escapar. Depois de rodar um bocado sem que a polícia o perdesse de vista, ele acabou indo para o convento dos dominicanos, na Serra.
O prior dos dominicanos, frei Eliseu, arranjou um jeito de o pessoal pular o muro. Mas a polícia estava chegando. Ele jogou um hábito de monge por cima de mim e disse para eu me deitar numa cama na clausura, ficar quieta e em hipótese nenhuma levantar a cabeça.
A polícia chegou procurando por estudantes e o frade disse: “Pode revistar, não tem estudante nenhum aqui”. Quando chegaram à clausura, onde havia uma cortina, perguntaram quem estava ali. Ele disse: “Temos um frade doente e por ordem do papa ninguém pode entrar”. Eles viram que realmente tinha alguém deitado. Eu tremia de medo. Mas, eles desistiram porque frei Eliseu os ameaçou de excomunhão.
Tentativas de desmobilizar os estudantes
Ao mesmo tempo em que fazíamos o movimento legalmente, através dos diretórios acadêmicos, diretórios centrais de estudantes e da União Estadual dos Estudantes (UEE), atuávamos também na luta clandestina. Foi quando se instituiu a Lei Suplicy, que extinguiu a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as uniões estaduais. Os militares tentaram acabar com a estrutura do movimento estudantil e criar uma nova, controlada por eles: o Departamento Nacional dos Estudantes. Não aceitamos. Naquele momento, eu já tinha sido eleita vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da PUC-MG pela AP, que lançou o Movimento Contra a Ditadura (MCD).
Em 1967 eu estava no último ano da faculdade, e meu plano era continuar a militância, e já tinha sido convidada para lecionar na PUC. Aceitei, até porque seria bom para influenciar os estudantes. Queria fazer da carreira acadêmica um instrumento político. Mas, no final de 1967, começaram a prender pessoas em Belo Horizonte. Nós nos sentíamos vigiados. Então, os meninos me avisaram, pouco antes da formatura, que era para eu sumir. Um dos estudantes de Direito foi informado, através de um advogado que tinha contatos no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), de que lideranças seriam presas. E eu seria uma delas.
Casar para sumir
Diante dessa informação, sumi da casa de meu pai. Só participava das atividades clandestinas e deixei de ir aos lugares onde era esperado que eu fosse. E, evidentemente, não colei grau. Fui até a Faculdade de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para avisar Abel Rodrigues, meu namorado e companheiro da AP. Ele ficou preocupado que eu sumisse e não nos víssemos mais. Decidimos avisar nossas famílias que desapareceríamos por uns tempos, e o motivo dessa atitude.
Meu pai teve um ataque de asma, dizia que ia morrer de tantos problemas que eu provocava. Ele dizia: “Comunista e foragida da polícia? Não dá, eu não aguento”. De repente, perguntou: “E o namorado?”. Respondi que ele ia comigo. “Juntos? Não, além de comunista, perseguida pela polícia e amasiada, não dá, eu morro! Sempre fui católico, eu sou temente a Deus”. Bom, foi aquela confusão e resolvemos nos casar rapidinho. As famílias não aceitavam casamento só no civil, tinha que ser no religioso também.
Marcamos o casamento com um padre progressista na igreja de Santo Antônio. Quando comunicamos isto a minha irmã Gilda e a seu namorado, o Henfil (Henrique de Sousa Filho), ele disse: “Gente, se é para limpar a barra moral de vocês com a família, vamos nos casar todos juntos. Assim, limpa logo a barra de todo mundo de uma vez”.
Eu queria casar de minissaia vermelha e Gilda de minissaia azul e foi mais uma confusão. Meu pai resolveu que, se era para casar as duas filhas, alugaria vestidos de renda com caudas e véus enormes. Pronto, começou outra briga. “Tem que casar de branco. Vão pensar que você não é virgem”, disse meu pai. Respondi: “Não sou mesmo”. E ele insistia: “Você é louca! Fala isso e é capaz de alguém acreditar”. Eu dizia a verdade – que estava tomando pílula, estava transando com Rodrigues –, mas ele não acreditava de jeito nenhum. Houve uma longa negociação, minha avó entrou, até que chegamos a um acordo: meu pai abriria mão do comprimento – desde que não fosse micro – e nós abriríamos mão da cor e casaríamos de branco.
Integração na produção
Logo depois do casamento, alugamos um barracão de fundos no bairro Floresta e fomos morar lá. Eu já não estava mais na faculdade e arranjei um trabalho na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem). Rodrigues continuava a ir à faculdade. Mas já não aparecíamos em eventos e manifestações públicas.
Até que um dia eu estava chegando à Febem para trabalhar e lá estava um companheiro da Escola de Direito, que me avisou: “Suma daqui. Decretaram a prisão preventiva de 17 estudantes e você está entre eles”. Na hora em que comuniquei isso a meu pai, ele disse: “Que vergonha. Da lista dos procurados pela polícia tem 16 homens e uma mulher, justamente a minha filha”. Para ele, ser procurado pela polícia era coisa de marginal.
Imediatamente desmontamos o nosso barracão e saímos. Como eu tinha feito estágio de serviço social na periferia e ajudado a organizar a associação de moradores, entramos em contato com eles e explicamos que estávamos sendo procurados e precisávamos nos esconder. Um dos moradores ofereceu um puxadinho de dois cômodos. “Se vocês quiserem vir para cá, podem vir que nós os protegemos”.
Naquele lugar não tinha água encanada, não tinha nada. E seu João, o morador que nos ajudou, chamou alguns vizinhos de confiança, explicou a nossa situação e sugeriu que fosse criado um mecanismo para nos proteger. Eles criaram um esquema pelo qual as mulheres, caso vissem entrar alguma pessoa estranha na vizinhança, mandassem uma criança correndo avisar seu João.
Passamos a morar lá, no bairro Gorete, e fomos procurar emprego. Fui à tecelagem Renascença, que estava admitindo aprendizes. Entrei com o meu primeiro nome frio, Márcia, para ser aprendiz de tecelagem. Lá, passei a lutar com as operárias por melhores condições de trabalho. Isso já fazia parte da política de integração à produção. Depois de um tempo, fui admitida e passei a trabalhar na bobinadeira. E então fiquei grávida. Naquela situação, eu me perguntava se era possível ter um filho, mas resolvemos que o teríamos.
Num determinado momento, o chefe da tecelagem começou a me assediar. Chegou num ponto em que ele me disse: “Você vai ter o seu emprego garantido e mais: coloco-te como chefe na bobinadeira. Mas, para isso você tem que ser boazinha”.
Naquele mesmo período, a repressão descobriu que os estudantes que ela não tinha conseguido pegar tinham ido para as fábricas. Os meninos iam para as indústrias metalúrgicas e as moças para as duas maiores tecelagens. A polícia começou a aparecer nas portas das fábricas com nossas fotos. Então, juntou o assédio sexual do chefe com a repressão e vimos que era preciso sumir novamente.
Vivendo como camponeses
Achamos que a saída era seguir para o campo. Conversamos com o pessoal da direção da AP, especialmente com Luis Marcos Magalhães Gomes e com Carlos Melgaço. A AP estava começando a organizar o trabalho camponês; tinha áreas de trabalho em parceria e outras com posseiros que precisavam ser organizadas. Um companheiro que atuava na construção civil e era de origem camponesa se dispôs a voltar para o campo, no município de Coronel Fabriciano.
Ele nos apresentou aos meeiros da parceria e começamos a organizar um trabalho com eles. Eu estava com dois meses de gravidez. Arrumamos uma terrinha, mas nem sabíamos o que era uma enxada. Compadre Zé e Comadre Eva nos ajudaram e nos deram uma noção de como deveríamos agir para não chamar a atenção.
Fiquei indignada: no campo, a mulher não podia andar ao lado do marido nas trilhas. Ele ia à frente e a mulher tinha de ir atrás. Apesar disso, tive de aprender a viver como elas e lavar roupa no rio, carregar lata na cabeça, cozinhar no fogão de lenha. À noite, nas rodas de cantoria, os homens ficavam sentados em torno da fogueira, conversando, bebendo uma cachacinha e comendo tira-gosto. As mulheres tinham de ficar na cozinha, fazendo a comida, sem participar das conversas. Aos poucos conseguimos pequenos avanços. Por exemplo: as mulheres passaram a ficar na roda e participar das conversas.
Era necessário fazer amizade com as pessoas e entender como elas eram e como viviam. Rodrigues trabalhava na roça e eu tinha de ir longe levar o almoço dele. Quando eu voltava, depois de ter levado a marmita de Rodrigues, chegava perto de uma casa, entrava, me apresentava e começava a conversar.
Numa dessas casas havia uma criança de poucos meses que era uma ferida só, da cabeça aos pés. Tinha febre e estava cheia de moscas em cima. Eu tinha levado para o campo um livrinho de plantas medicinais, remédios e curativos. Afinal, na roça não havia farmácia nem médico. Cuidei dessa criança, dei banho com pano limpo, fiz curativo com Hipoglós. Fazia isso todos os dias e a criança foi melhorando. Então, os pais da criança passaram a me chamar de comadre Ceci, nome então usado por mim. E espalharam que a “comadre Ceci curava”. Cada vez que alguém melhorava depois que eu atendia, ganhávamos uma galinha, um porco… Passamos a ter um galinheiro e animais para comer. E Rodrigues tinha começado a organizar os camponeses para trabalhar em mutirão, porque assim rendia muito mais. Até então trabalhava cada um sozinho em seu pedacinho de terra. Nosso trabalho fez com que aumentassem o respeito, a amizade e a proteção dos moradores locais em relação a nós.
Gravidez em meio ao AI-5
Estava indo tudo bem até que surgiu o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. Em janeiro, recebemos, pelo rádio, um recado codificado para irmos a uma reunião, em Belo Horizonte no mês de fevereiro, que analisaria a nova situação e discutiria como continuar a luta sem sermos presos ou assassinados.
A mensagem codificada funcionava assim: combinávamos em Belo Horizonte, antes de viajar, um código que tinha três partes (nomes de pessoas que ofereciam a música, as músicas e nomes de pessoas a quem eram oferecidas). Usávamos aqueles programas de rádio em que uma pessoa oferece uma música para outra.
Combinávamos uma série de músicas e nomes que mudavam as três partes, com aqueles recados básicos: “Venha para a reunião”, “Saia da área”, “Vai chegar alguém” etc. O local do encontro, dia, horário, senha e identificação já eram também preestabelecidos. Ouvíamos esses programas diariamente, e, num deles, estava o recado.
Em fevereiro de 1969, portanto, fomos até a capital mineira; eu estava com sete meses de gravidez e entrei em trabalho de parto durante a reunião. A bolsa arrebentou e eu corria para o banheiro toda hora. Somente no fim da manhã um companheiro, Carlos Melgaço, estudante de Medicina, achou estranho alguém urinar tanto e percebeu que a bolsa tinha rompido.
A reunião foi interrompida, Loreta Valadares e Solange Nóbrega ficaram cuidando de mim e os meninos foram procurar um médico progressista, aliado, para fazer o parto depressa porque eu estava com a prisão preventiva decretada.
Quando chegamos ao hospital, constatou-se que eu estava grávida de gêmeos. Voltei para o aparelho da organização, pois naquele hospital não tinha vaga e, então, arrumaram um hospital na Lagoinha, e o médico era aliado da AP. As duas crianças nasceram muito pequenas, com 1,2 kg e foram para a incubadora. Saímos do hospital rapidinho, mas eu ia visitá-las todos os dias.
Uma das crianças sobreviveu apenas 15 dias. Estava muito fraca e acabou morrendo nos meus braços. Juliana também estava muito frágil e ficou um mês na incubadora. Tivemos de arrumar um casal de amigos para me esconder com ela: Ana Tereza e José Afonso. Rodrigues voltou para a roça. Juliana era hospitalizada a todo momento por causa de pneumonia, gastroenterite, hepatite. Por motivo de segurança, mudei para a casa de outro casal de amigos: Corina e Júlio César.
Perseguição e prisão
O dia 17 de junho era aniversário da minha irmã mais nova, Gilvânia, de quem eu era madrinha. Pedi à Corina que ficasse com Juliana para que eu fosse à casa de meus pais dar notícias sobre a neta e parabenizar minha irmãzinha.
Quando eu já estava na casa da minha família, tocou a campainha. Minha mãe tinha uma daquelas portas com grade de ferro e uma parte de vidro. Ela abriu e eram dois agentes do Dops. “Viemos revistar a casa porque acabamos de prender o seu filho, Gildásio, e ele nos deu este endereço”. A reação de minha mãe foi impressionante: “Gildásio não mora aqui e vocês não vão entrar. Eu não os conheço. Na minha casa não entra nenhum homem desconhecido, só quando o meu marido estiver”. E os milicos diziam: “Mas nós somos do Dops, da polícia”. Minha mãe respondeu: “Então, tragam uma autorização do juiz, senão não entra”. Em seguida, ela bateu a porta de vidro, trancou tudo e ficou vigiando.
Eu estava lá dentro, escutando. Coloquei um lenço na cabeça para esconder o sinal que tenho no pescoço e que era conhecido. Peguei o documento da minha irmã, muito parecida comigo, e falei: “Mãe, vá ao quarto, reviste tudo e veja se tem qualquer coisa de política. Se tiver, queime, rasgue, jogue na privada e dê descarga. Eu vou embora”. Escapuli pulando muros e fui rápido para a casa de Corina. Pedi que ela ficasse um pouco mais com Juliana porque eu precisava avisar o pessoal da AP. Afinal, se Gildásio tinha sido preso o aparelho onde ele estava tinha caído. Fui para a casa de Loreta e Melgaço.
Aparentemente estava tudo bem; parecia que eles estavam cozinhando. Quando entrei, a repressão estava lá. Nosso pessoal tinha caído. Os agentes haviam feito uma operação pente-fino e pegaram mais de 100 pessoas da AP e da igreja. Levaram-me e eu dizia que não sabia de nada; para disfarçar, perguntei se queriam dinheiro. Eles queriam saber o que eu tinha ido fazer lá. Respondi: “Soube que aqui morava uma moça chamada Celeste, que faz roupinha de tricô para neném, e eu tenho um neném, quero encomendar roupinha”. Foi aquela confusão; os caras começaram a me dar tapas e o lenço acabou caindo. Um dos milicos viu a mancha no meu pescoço e disse: “Essa é a subversiva de pinta, pode levar. Nós a conhecemos, está no arquivo”.
Prisão, humilhações e dor
Levaram-me para uma sala de aula da Polícia Militar, onde havia um monte de gente sentada nas cadeiras. Na hora em que cheguei à porta, a primeira pessoa que vi foi meu irmão Gildásio, passando frio. Ele estava com um agasalho de tricô todo puído. Quando ele me viu, se abaixou na cadeira e fez um sinal perguntando de minha filha. Fiz outro sinal respondendo que não estava comigo.
Ficamos presos um bocado de tempo. Havia mais de 100 pessoas ali. Eles nos vigiavam até para ir ao banheiro. Tínhamos de usar de porta aberta. Todas as mulheres que estavam presas menstruaram, e tivemos de pedir a eles que comprassem absorventes. Pegaram o dinheiro das bolsas dos presos e mandaram comprar uma porção de absorventes. Mesmo nessa situação, tínhamos de ir ao banheiro de porta aberta, na frente dos caras de arma na mão. Isso é uma humilhação terrível.
Um dia, pegaram Gildásio e eu e nos levaram ao Colégio Militar. Procuraram nos confrontar, mas a única coisa que admitíamos é que éramos irmãos. E mais nada. Depois eles mandaram os homens para a Penitenciária de Neves e nós para a Penitenciária de Mulheres. Os agentes colocaram Delcy Gonçalves – a Sissi –, Loreta Valadares, Laudelina Carneiro, Maria do Rosário e eu na solitária.
Instauraram um Inquérito Policial Militar (IPM) e aí a tortura começou para valer. O chefe era o tenente coronel Valdir Teixeira Góes, e o segundo no comando era o capitão Jofre Lacerda, ambos do Exército. Em seguida, chegaram o capitão Jésus, cujo sobrenome não sei, e o sargento Léo Rodrigues, os dois da Polícia Militar. Os quatro eram do nosso IPM.
Logo aprendemos a usar o alfabeto por meio de batidinhas nas paredes das celas e assim procurávamos nos comunicar. A cada hora, eles levavam uma e a outra voltava. Começaram a usar o choque elétrico, a “latinha”, o “telefone” e muitas pancadas. Lembro-me de que levaram Rosário e ela voltou arrasada para a cela, ao lado da minha, chorando e falando trêmula: “Eu não aguento mais levar choque”.
Tentava me comunicar com a batidinha para ver se conseguia levantar a moral, mas ela não respondia e eu não sabia o que fazer. Então, resolvi cantar para ver se assim ela escutava. Cantava uma musiquinha da resistência que usávamos e comecei a fazer versos: “Minha vizinha de cela, não tenha medo da dor. Mais vale ser um defunto, que estar vivo e ser traidor”.
Torturas físicas e psicológicas
Um dia me levaram para a penitenciária de Neves e me fizeram desfilar pelo pátio. De canto de olho vi, lá em cima, os agentes da repressão com um companheiro da AP. Percebi que o colocaram lá para me identificar. Até então, eu só admitira para a polícia minhas posições políticas pela independência do Brasil, pela democracia, pelos direitos do povo, contra a ditadura. E mais nada. Toda essa conversa foi desmontada porque o companheiro confirmou que eu era da AP e que tinha participado comigo de uma reunião de preparação do trabalho camponês.
A partir daí, os agentes vieram com maior violência para cima de mim. Eles já tinham me espancado, usado a latinha, o telefone, o choque elétrico e eu não dizia nada. Eles sabiam que eu tinha um bebê e começaram a usar isso para me forçar a falar. Às vezes, me tiravam da solitária, me levavam para o interrogatório e passavam o tempo todo me descrevendo em detalhes o que iam fazer com minha filha. Assim quase me enlouqueciam. Preferia mil vezes estar no choque elétrico ou qualquer outra coisa do que ouvir aquilo. Eu chegava à cela, vomitava de nervoso e chorava como louca por medo de que eles pegassem Juliana.
Um dia me tiraram da cela e me levaram para uma sala na área administrativa, onde tinha uma mesa, uma banheirinha de plástico cor de rosa, dessas de dar banho em neném, cheia de gelo, um cavalete para pau-de-arara e a maquineta de choque. Algemaram-me numa cadeira, sentada, olhando para aquilo. Depois, disseram: “Pegamos a sua menina e ela já está chegando”. E ficavam repetindo coisas horríveis para mim: “Sabe o que nós vamos fazer? Vamos botar ela na banheirinha. Quanto tempo ela demora a virar um picolé? Mas você acha que nós vamos deixá-la morrer assim? Não. É muito fácil para uma mãe degenerada, uma puta comunista como você. Nós vamos tirá-la viva. E a gente vai dar choque nos ouvidos dela. Será que derrete ou torra os miolos? E o pau-de-arara? E o cacetete? Não vamos matar, não, isso é pouco. Nós vamos quebrar todos os ossinhos dela, vamos transformá-la num monstrinho e vamos entregá-la na sua mão. Seu castigo por ser uma puta comunista é ficar o resto da vida olhando um monstrinho que ficou assim por culpa sua”.
Eu estava desesperada; não podia deixar que fizessem isso com minha filha. Pensei: “Quem sabe se eu falasse só uma coisinha?”. Mas depois vi que se fizesse isso eles iam querer mais. Concluí que teria que aguentar. Se eles quiserem matar, vão matar; se quiserem aleijar, vão aleijar. Até porque se eu disser algo, eles vão fazer o mesmo com outras mães e outros filhos. “Se for para morrer, que seja só a minha”, pensava.
No final das contas, comecei a perceber que estava demorando muito para eles fazerem o que diziam. Raciocinei: “Esses caras têm carro, helicópteros… Por que minha filha não chegou ainda?”. Comecei a ter esperanças de que aquilo fosse um blefe, tortura psicológica.
Até que uma hora – não sei quanto tempo eu já tinha passado ali – um deles entrou e começou a falar de novo. Eu gritei: “Ela não chegou nada. Vocês não pegaram coisa nenhuma. Se tivessem pegado, já tinham trazido de carro ou de helicóptero. É mentira de vocês. Não pegaram e não vão pegar. E tem mais: podem me matar. Quando ela tiver 15 anos, ela vai continuar minha luta”.
E então, ele me espancou, arrebentou minha blusa, me chutou, me derrubou da cadeira algemada. E com o ódio dele, eu percebi que estava certa. Nossa, acho que a maior felicidade que eu tive na cadeia foi nessa hora.
Sadismo sem limites
A rotina de torturas continuou. Já havia passado muito tempo desde a minha prisão e eles ainda não tinham conseguido montar o tal do IPM. Por isso, estavam sendo cobrados. Soubemos que o general tinha dado um pito neles, dizendo que eram incompetentes, que estavam sendo vencidos e enrolados por cinco mulherzinhas. Então, tiraram-me de lá e me levaram para o Colégio Militar. Capitão Lacerda falou: “Gilse, sinto muito”. Ele tentava se fazer de bonzinho. Léo espancava, Lacerda dizia que lembrava a filha que tinha perdido e que não queria que fizessem nada disso comigo, os caras é que eram ruins. E Lacerda continuou: “Olha, Gilse, o coronel já perdeu a paciência com você e eu estou sofrendo muito porque não queria que eles fizessem nada com você. Vão te entregar para o Léo. E o Léo é sádico, é doente. Ele gosta de ver mulher sofrer e se excita com isso”. Quando eu estava saindo, passei devagar pela Loreta e ela disse: “Caiu a Bahia. Presta depoimento”. Até então eu não tinha dado nenhum depoimento. “Dê o seu depoimento, admita alguma coisinha para ver se a gente para com isso tudo”. Então, me levaram.
Léo, Jésus e um desconhecido me vendaram, me levaram para longe e quando me tiraram a venda percebi que estava num posto policial de estrada. Isso era por volta das 7h da noite. E então começou nova sessão de tortura. Jésus e Léo me mostraram um papel assinado por Góes onde se lia: “Extrair depoimento de Gilse a qualquer custo”. E disseram: “Ordem do coronel”.
Começou então uma sessão ininterrupta de tortura. Latinha, espancamento, pau-de-arara. No pau-de-arara, o cacetete com pontinha nas nádegas e no pé. Choque elétrico na vagina, nos dedos da mão e do pé e por aí afora. Fui ficando arrebentada e pensava: “Não posso perder a consciência, a noção do que eu estou fazendo”. Então, disse que falaria. Eles me tiraram do pau-de-arara. Exigi: “Mas primeiro, quero minha roupa toda”. E vesti. “Agora quero ir ao banheiro”. “E agora quero um cafezinho e um cigarro, senão não falo”.
Depois de ter tudo isso, comecei a dizer as mesmas coisas que já tinha falado desde o início. “Sou uma democrata, luto pela independência nacional” e tal. Perguntaram quem eu conhecia e eu disse que não conhecia ninguém. Perceberam a minha enrolação, tiraram minha roupa toda de novo, rasgaram, me colocaram de novo no pau-de-arara e começaram tudo novamente.
De cabeça para baixo no pau-de-arara, percebi que havia um basculante que dava para a estrada. No início da noite, tinha barulho de carro passando, depois ficava tudo quieto. Pensei: “Vai começar a clarear e eu tenho que aguentar até lá porque aí começa a passar carro e gente e alguém vai escutar os gritos”. Minha esperança era o sol.
Quando ouvi o primeiro barulho de um carro passando, disse a eles que falaria. Léo me tirou do pau-de-arara e eu nem conseguia parar de pé. Jogou-me no chão de cimento; eu estava muito arrebentada e mesmo assim ele me violentou. Veio feito louco para cima de mim.
Fiquei lá jogada um bocado de tempo e depois eles mandaram que eu me vestisse e prestasse o depoimento. De acordo com o que Loreta tinha dito, admiti que tinha sido da AP quando era estudante, que tinha participado de uma reunião, mas não sabia o endereço, e que quando deixei de ser estudante não participei mais. E eles me perguntavam quem eu conhecia e eu continuava dizendo não conhecer ninguém. Então, disseram: “Mas você não conhece ninguém? Você é maluca?”. Respondi: “Conheço o meu pai, José Nicodemo Cosenza, minha mãe, Simone Westin Cosenza e meus irmãos”. Então, falava o nome dos dez irmãos. Eles ficavam furiosos.
Prestei o depoimento exatamente como quis: pequenininho, admitindo apenas que eu já tinha sido da AP. Eles começaram a me pressionar, ameaçando me colocar de novo no pau-de-arara se eu não falasse das outras pessoas que estavam na reunião. Respondi: “Podem me colocar, podem me matar, podem fazer o que quiser. Eu falo de mim, mas me recuso a dizer qualquer nome para não comprometer outras pessoas”. Isso está lá no depoimento.
Nesse momento, já tinha clareado e eles não podiam me colocar de volta no pau-de- arara ali. Eu tinha calculado isso. Eles acabaram aceitando esse depoimento e me levaram embora. Então, foram tomando depoimento das outras quatro, também sob tortura.
Presídio de Linhares
Quando chegou setembro, eles nos tiraram da solitária e juntaram as presas políticas das várias organizações – da Corrente Revolucionária de Minas Gerais (Corrente), do Comando de Libertação Nacional (Colina), da AP – num lugar da penitenciária. Um dia parou um ônibus com cortinas fechadas, e nos prenderam a todas, uma na outra, com algemas que apertam se puxar. Colocaram todas dentro do veículo e ameaçaram que poderiam nos matar e desovar nossos corpos sem que ninguém pudesse achá-los.
Fomos levadas para a Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, onde a situação era outra. Góes ficou bravo porque o processo nosso era completamente inconsistente. E voltaram para nos reinquirir no presídio, mas ali era sem tortura.
Os presos políticos estavam nesse lugar, divididos em duas alas, masculina e feminina. Havia mais de 100 homens e cerca de 30 mulheres. Ali já conseguíamos receber visitas da família e dos advogados. Então, começamos a escrever as denúncias de tortura. Pedimos para nossas famílias levarem cigarros Hollywood e que todo mundo que nos visitasse fosse fumando um cigarro da mesma marca. Na hora do encontro com o advogado ou com a família, sentávamos num banco e perto ficava um soldado com uma arma na mão olhando para nós. Escrevíamos as denúncias, enrolávamos, tirávamos o fumo e botávamos o lenço de papel dentro do cigarro. Então, no maço tinha alguns cigarros recheados e quando sentávamos com advogado ou com algum familiar, acendíamos o cigarro e colocávamos o maço em cima do banco. No momento em que o guarda se distraía, trocávamos os maços. Assim começaram a sair da cadeia as denúncias de tortura.
Na prisão, fiquei sabendo por meio de uma visita de meus pais, que minha filha estava bem. Corina havia levado Juliana para Henriquinho (Henfil) e Gilda no Rio de Janeiro. Foi um alívio.
Na prisão a única luta que podíamos fazer era greve de fome, então fizemos uma para assinar o Jornal do Brasil. Quando ele finalmente chegou, foi uma confusão: todo mundo disputando os cadernos. Eu queria o caderno dos cartoons para ver se Henriquinho ainda desenhava para o jornal. Quando olhei, os quadrinhos estavam lá, não lembro se a Graúna ou o Fradinho estava desenhado, junto com uma menina de cabelo encaracolado. E um deles dizia assim: “Juliana, chega de tomar tanto morango com sorvete que você vai ter uma caganeira”. Na hora que vi aquilo, saí pulando pelo corredor. Henriquinho fazia isso: mandava mensagens para mim e para Gildásio por meio de charges.
Julgamento e soltura
No fim do primeiro semestre de 1970 aconteceu o julgamento do meu primeiro processo sobre o movimento estudantil, no qual me acusavam de ser “estudante profissional”, que agitava e organizava o pessoal para a subversão. Fui levada para a auditoria de Juiz de Fora para julgamento militar. Alegaram que eu era duplamente perigosa por ser inteligente, em função de minhas notas no histórico da faculdade. Meu advogado Afonso Cruz foi extremamente ousado em minha defesa, pegou um depoimento a meu favor de dom Serafim – que sempre foi conservador – e usou o que os próprios militares tinham falado contra mim. Ele disse o seguinte: “Como é que uma estudante profissional, que foi para a universidade para afrontar o governo, só para fazer agitação, tem essas notas? Senhores juízes militares, eu tenho certeza de que os senhores são muito inteligentes, senão não estariam aqui, não teriam a patente que têm. Senhores, a minha constituinte está sendo acusada do crime de ser inteligente. Isso é crime? Se for, senhores, sejam coerentes. Ou absolvem a minha constituinte ou por inteligência e coerência são obrigados a se condenarem”. Fui absolvida, mas ainda havia outros dois processos.
Minha saída da prisão foi uma mistura de esperteza e sorte. Meus advogados, Afonso Cruz e Carlos Cateb, foram aos milicos pedir minha soltura com base em minha absolvição. O comandante, que controlava tudo o que dizia respeito aos presos políticos, tinha viajado para uma reunião. Estava um substituto, que não controlava absolutamente nada. Os advogados chegaram com tudo certinho, os carimbos dos coronéis, dos generais, mostrando que eu tinha sido absolvida e foi dada a ordem de soltura.
Cateb foi me buscar e me advertiu que no dia seguinte o engano seria descoberto e os militares estariam atrás de mim para me prender novamente. Então, eu precisava “esquecer” de Minas Gerais.
Vivendo escondida em São Paulo
Afonso conseguiu localizar Rodrigues em São Paulo, avisamos à família e fui para lá. Minha mãe me acompanhou até que eu me encontrasse com ele.
Arrumamos uma identidade, um barraco para morar e começamos a trabalhar na periferia de São Paulo. Imediatamente me colocaram para atuar na Comissão de Segurança da direção nacional da AP, ligada diretamente a Aldo Arantes e Péricles de Souza. Rodrigues já estava na Comissão de Segurança. Eu cuidava dos contatos clandestinos, correspondências, e avaliação de pessoas saídas da prisão, ponto de chegada para militantes do Brasil todo, com códigos, escrita invisível, essas coisas. Quando tinha reunião, Rodrigues ia junto para montar a segurança do local e viajava com os dirigentes.
Depois, entramos em contato com Gilda e Henriquinho e eles nos levaram Juliana com quase dois anos de idade. Era para termos tido só Juliana, mas, mesmo usando pílula, engravidei novamente. Naquelas condições de sobrevivência e com riscos de segurança, havia uma pressão para abortar. Cheguei a ir à clínica, mas desisti. Decidimos ter a criança e nasceu Gildinha (nome em agradecimento a Gilda e Henriquinho).
Então, um companheiro da AP nos ensinou a trabalhar com fotografia, nos deu uma aparelhagem de cópia de fotografia e nos ensinou a fazer documentos falsificados para os companheiros. Fazíamos isso em casa. E assim íamos sobrevivendo, trabalhando como fotógrafos, militando e cuidando das crianças.
Nova missão: reconstruir o PCdoB no Ceará
Até que em 1975 – quando já tínhamos entrado no PCdoB junto com o contingente da AP –, Pedro Pomar e Péricles foram conversar conosco sobre a questão da segurança. A repressão estava chegando perto e nós quase fomos presos algumas vezes; tivemos que mudar de casa e de identidade duas vezes. Eles nos propuseram ir para o Ceará, onde o partido inteiro tinha caído. Lá a repressão não nos conhecia, podíamos criar uma vida legalizada e procurar reconstruir e reorganizar o partido.
A primeira obrigação nossa era não cair. Fomos para o Ceará no fim de 1975, usando a identidade de Cecília Auxiliadora de Aguiar e Rodrigo Pereira de Souza, fotógrafos. Em São Paulo recebemos três contatos, e um deles era Benedito Bizerril. Foi com ele que começamos a reorganizar o PCdoB. Pomar ficou de voltar ao Ceará assim que pudesse, para nos atualizar sobre a realidade do Nordeste e a história do partido na região. Quando estávamos lá, ainda esperando esta visita durante um ano, eu tinha ido ao centro de Fortaleza, comprei um jornal na banca e lá estava a notícia da Queda da Lapa. Caí sentada: “Nossa senhora. O Pomar foi assassinado pela ditadura!”.
No início, ouvíamos a rádio Pequim e depois passamos para a rádio Tirana. Gravávamos o que era veiculado, transcrevíamos, datilografávamos e rodávamos no mimeógrafo a álcool. Colocávamos as informações do partido em envelopes (endereços tirados da lista telefônica) e circulávamos pela cidade colocando o material nas caixas de correio. Ao mesmo tempo em que procurávamos contatos.
A reorganização do PCdoB no Ceará, então, se deu assim: Bené era advogado trabalhista e levou Gomes, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, e Guerreiro, liderança metalúrgica que se tornou o próximo presidente. Bené também trabalhava com o jornal Mutirão, de onde saíram Messias Pontes, Luiz Carlos Antero e Angélica Monteiro, atuante no Movimento pela Anistia e no movimento comunitário. Conseguimos contato com Lula, estudante de Medicina (hoje deputado estadual), através de quem iniciamos a ação na universidade federal. O contato com Terezinha Braga Monte abriu o caminho para a inserção entre os médicos. Passamos, portanto, a ter presença no movimento democrático, operário, estudantil, de saúde e comunitário. Mais à frente, fundamos o Centro Popular da Mulher, instrumento de luta pelos direitos das mulheres.
Levada por Messias Pontes fui conhecer Inácio Arruda, hoje senador, numa escadinha, à noite, no escuro, na periferia de Dias Macedo, bairro onde ele morava. Inácio tinha criado uma biblioteca comunitária. Fui conversar com ele dizendo que era preciso criar associações de morador e ampliar o movimento para a cidade e para todo o país, porque precisávamos mudar o Brasil e o caminho era por meio do PCdoB. Assim foi recrutado Inácio Arruda.
Depois da Anistia, Carlos Augusto Diógenes, o Patinhas, voltou para o Ceará e o PCdoB já tinha crescido. Ele foi incorporado à direção do PCdoB do estado. Fizemos conferência, elegemos direção, mas tudo superclandestino. Em 1983 aconteceu o 6º Congresso do PCdoB, separado por regiões. O do Nordeste aconteceu no Ceará e fui eleita para o Comitê Central. O partido continuou crescendo, avançando mesmo clandestino. Criamos o Comissão pela Legalidade do PCdoB e comecei a aparecer publicamente como coordenadora, já participando das lutas pelas Diretas Já, pela Constituinte e da campanha de Tancredo Neves. Finalmente, em 1985 chegou a festa da legalização do PCdoB, marcando um novo capítulo de nossa história.