Introdução de Gilberto Freyre à autobiografia de Joaquim Nabuco “Minha formação”
Joaquim Nabuco foi decerto o primeiro homem público brasileiro a descobrir-se com a própria mão de grande escritor; e em autobiografia tão psicológica como sociologicamente valiosa, além de notável pela sua qualidade literária. Uma das expressões mais altas da literatura em língua portuguesa.
Apenas Joaquim Nabuco, escrevendo Minha Formação, descobriu-se somente pela metade. Conservou para si mesmo, ou dentro de si mesmo, a outra metade do todo semi-revelado: aquela que a sagacidade dos biógrafos vem procurando desvendar; e da qual talvez o próprio Nabuco não se apercebesse, senão em parte, ao escrever o mais sugestivo dos seus livros.
Para o Brasil da época em que apareceu, Minha Formação foi livro um tanto escandaloso, por ter sido, para muitos, cheio de louvor em boca própria. Não faltou quem acusasse o autor de deselegante narciso. Nem quem estranhasse em fidalgo tão autêntico o que a vários dos seus críticos pareceu mau gosto: o mau gosto de escrever um homem da responsabilidade de Joaquim Nabuco todo um livro acerca de si mesmo; e de escrevê-lo com mais complacência do que rigor crítico, acerca daquela metade, menos da sua pessoa do que da sua vida, mas capaz de sugestionar a seu favor a elite e o público mais culto do seu País.
Não se compreendia então, sem-cerimônia dessa espécie. Era contra as melhores convenções que regulavam o comportamento quer de homens públicos, quer de escritores ilustres. Repugnava aos melhores mestres brasileiros de bom-tom que um indivíduo elegante escrevesse de si próprio: da sua própria formação. Faziam-no franceses, ingleses e russos, é certo: os últimos indo ao extremo de recordar suas deformações. Mas eram estrangeiros. Se, no Brasil, José de Alencar contara já aos seus leitores como e por que se tornara romancista, fizera-o discretamente em poucas páginas; e quase limitando-se a recordar seus experimentos literários num gênero — o da ficção — que não adquirira ainda, entre os brasileiros, plena dignidade intelectual. Pelo que, era até ato de humildade um homem público da importância do autor de Iracema dizer-se romancista explicando por que vinha escrevendo romances com mais gosto do que proferindo discursos no Parlamento ou redigindo pareceres jurídico-políticos.
A Joaquim Nabuco não faltou a coragem de deixar claro, na sua parcial mas expressiva autobiografia, que nascera fidalgo; que crescera menino de engenho aristocrático, à sombra de uma madrinha um tanto matriarcal, pela imponência de sua figura e pela amplitude do seu prestígio; e, ainda, que se fizera homem público, por vocação apolineamente patrícia para a alta política, já praticada por seu pai “na mais alta hierarquia…” A verdade, porém, é que essa vocação o levara, na mocidade, a atividades antes dionisíacas do que apolí-neas, de “reformador social”, por ele deixados um tanto na sombra ao escrever Minha Formação. Pois mais do que simples abolicionista ele se afoitara a ser, quando jovem, “reformador social”, contra os interesses da própria casta — a nobreza territorial, a aristocracia escravocrática, a elite de brancos e quase brancos do império agrário — a que pertencia. E ao proceder assim, o processo do seu comportamento talvez tivesse sido um processo de deformação, em relação com o que foi, ortodoxamente, antes e depois dos seus dias de abolicionista, norma de formação, no desenvolvimento geral da sua personalidade.
Daí, talvez, deixar de dar demasiado relevo nas suas recordações um tanto renanianas de infância e de mocidade, aos seus excessos dionisíacos — ou assim considerados pelo Nabuco apolíneo que escreveu Minha Formação — de “agitador social”; revolucionário em várias das suas idéias político-sociais; herético em algumas das suas atitudes com relação à Igreja; a negação do intelectual conformado com a ordem estabelecida no seu país em não poucas das inovações que pleiteou, para o Brasil, como homem público de feitio literário, em comícios no Recife e em discursos na Câmara. Ponto a que voltaremos.
“Está aí muito da minha vida”, escreveu o próprio Nabuco ao prefaciar Minha Formação. Muito: mas não a sua vida tanto quanto possível completa. Mesmo assim talvez tenha se exagerado ao escrever “muito da minha vida”. O que consta de Minha Formação é apenas parte de uma grande vida. O que aí se revela é apenas parte de uma complexa personalidade. “As lacunas deste livro”, também as reconhece Nabuco no mesmo prefácio. Mas sem especificá-las. A verdade é que são muitas do ponto de vista autobiográfico.
Confessa, é certo, ter estado por “vinte e tantos anos” afastado do catolicismo — depois de haver entrado na Academia de Direito com “a fé católica ainda virgem”; confessa ter sido invadido, ainda no colégio, “pelo espírito de rebeldia e independência” que se aguçara no estudante de Direito, na Academia; que o faria contrapor, às vezes, o “seu modo de pensar” ao do próprio pai. Confessa, ainda, ter fundado, no seu primeiro ano de estudante de Direito, em São Paulo — e ainda contra a vontade e as ideias do pai — “um pequeno jornal para atacar o Ministério Zacarias”.
Foi, como tantos outros, um filho em revolta contra o pai. Um filho contra o pai, por avidez de “impressões novas”. Também um filho revelado contra a Santa Madre Igreja — talvez pela mesma avidez de ideias novas. Mais: foi um americano libertário revoltado contra o apego — por alguns críticos considerados simples expressão de transoceanismo, de muitos dos brasileiros daqueles dias à Europa materna. Esse apego, à Europa materna, segundo o imaturo Nabuco de vinte anos, deveria ser substituído pela admiração pelos fraternais Estados Unidos: a Europa era “velha”; a “América” [isto é: os Estados Unidos], “jovem”.
Tal desprezo pela “velha Europa” verificou-se por influência, na formação do então jovem brasileiro — formação que às vezes terá sido deformação — de um europeu: certo francês, Laboulaye, que tendo tido a sua voga, breve e até efêmera, entre jovens ou imaturos brasileiros, do tempo do Segundo Reinado, tornou-se escritor ignorado. Medíocre, superficial, raso, não merecia outro destino. Mas a verdade é que chegou a deformar brasileiros do tempo do Império, levando-os a um radicalismo republicano inspirado no exemplo de uns Estados Unidos, para ele Laboulaye, messiânicos. Um desses brasileiros — repita-se — Joaquim Nabuco. Sob essa e outras influências, foi Joaquim Nabuco, na primeira mocidade, um radical para quem o relativo — confessa — não existia. Até que ocorreu-lhe a aventura da primeira viagem à Europa; e com ela a verificação, com os próprios olhos, de que “as paisagens todas do Novo Mundo” não igualavam, para um americano, como ele, em quem o “sentimento” era brasileiro, mas a “imaginação” — sem Nabuco o saber até então — européia, “uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre”.
Marcou-lhe de tal modo a Europa o sentido da vida, da arte, da política, que ao viajar, depois de conhecer vários países europeus, pelos Estados Unidos, verificaria fazê-lo sob “a influência européia”. E contraditório, como quase todo indivíduo ainda em formação, concluía, passando de um exagero a outro, que nenhuma “cultura superior”, para ser “perfeita e completa”, precisava, na “ordem intelectual e moral, compreendendo a arte”, de adquirir qualquer “contingente americano”. Conclusão que ele próprio retificaria no fim da vida: depois de descrita Minha Formação e ao tornar-se entusiasta — segundo Oliveira Lima, excedendo-se nesse entusiasmo — não só do pan-americanismo como dos próprios Estados Unidos. O equilíbrio à custa de compensações por vezes entre extremos.
A formação de Joaquim Nabuco não parou aos cinquenta anos: idade em que deu forma definitiva à Minha Formação. Este livro, Nabuco parece o ter escrito, pensando com Montaigne, que já se dera bastante aos outros; e que tinha o direito e, talvez, o dever de, à base das experiências por ele já vividas, dar-se principalmente a si mesmo, contemplando-se, analisando-se, aperfeiçoando-se no seu modo interior de ser, escrevendo a história da sua própria vida ou da sua própria pessoa sem temer a acusação de narcisismo da parte de críticos mais ou menos levianos. Ele próprio refere-se à época em que a mocidade gasta, num indivíduo, “a sua violência” e lhe permite aquela relação com a vida de que falava Goethe, agradecido a Oesser por ter lhe ensinado que “a beleza” é “repouso”; “de que se segue que nenhum jovem pode tornar-se um mestre”. Isto é, um mestre daquela arte da vida que não exclua, nem da arte nem da vida, a sensibilidade ao que numa e noutra seja sugestão de beleza, tanto sensual como espiritual, já em repouso; ou mais em repouso que em agitação. Foi esta precisamente a espécie de beleza com que se procurou identificar Joaquim Nabuco nos seus últimos dez ou doze anos de vida – os vividos depois de escrita Minha Formação. Viveria, então, mais em contato com valores classicamente europeus e superiormente anglo-americanos de arte, de inteligência, de cultura do que no Rio de Janeiro ou em Pernambuco: sob os coqueiros, as mangueiras, as jaqueiras das paisagens tropicais da sua meninice de brasileiro criado em engenho e da sua mocidade de provinciano, com alguns anos de capital.
Tornou-se naqueles anos, mais do que ao escrever recolhido a si mesmo, Minha Formação, uma espécie de tranqüilo escultor de si mesmo, procurando desenvolver na alma e conservar no corpo formas como que goethianas de expressão humana que nele chegaram a ser, sobretudo na velhice, de homem glorioso, as mais harmoniosamente belas jamais atingidas por um intelectual brasileiro: um intelectual, em certas fases da sua vida, também homem de ação. Homem de ação, por algum tempo, na vida pública do seu país. Homem de ação, nos seus últimos anos, na diplomacia e na política internacional.
Como decidira ser político militante dentro do seu país, o jovem Joaquim Nabuco, tão cedo atraído também pela vida diplomática? Em grande parte, por aquela vocação patrícia para a alta política a que já se fez referência: “Eu representaria assim no Parlamento a quarta geração da mesma família, o que não aconteceu, suponho, a nenhum outro [brasileiro]”. Entre os próprios Andradas, as gerações políticas haviam sido, até então, “apenas três”.
Na Câmara foi um orador flamejante que ocupou com freqüência a tribuna. Mas dos seus muitos discursos, proferidos em 1879 e 1880, diz, arrependido, talvez, da sua retórica de anticlerical e dos seus ímpetos de quase demagogo, a contrastarem com a sua vocação apolineamente patrícia para a alta política — vocação nele prolongada na de diplomata a serviço suprapartidário do Brasil — que “não quisera salvar nada senão a nota íntima, pessoal, a parte de mim mesmo que se encontre em algum”. Na década seguinte é que se definiria nele o “reformador social”, substituída, em sua atividade de homem público, a feição política pela “identificação humana com os escravos”; mas sem que tivesse se libertado de todo da retórica dos seus primeiros anos de deputado.
Trazia da infância de menino de engenho, criado, pela madrinha pernambucana quase matriarcal, mais como filho do que como afilhado, mais como neto do que como filho, mais como menina do que como menino — tanto que em Maçangana não aprendera a montar a cavalo — “o interesse pelo escravo”. Um interesse com alguma coisa de docemente feminino no seu modo humanitário, sentimental, terno, de ser interesse. O que, sendo certo, antes engrandece do que diminui a figura, na verdade, quase apostólica de abolicionista em que se extremou Joaquim Nabuco. Deixando a políticos convencionalmente masculinóides a visão apenas política ou somente econômica do problema brasileiro da escravidão, ele a todos excedeu na amplitude social, humana, suprapartidária, que deu ao seu apostolado a favor dos escravos. E foi esse apostolado que fez dele um radical, com alguma coisa de socialista — socialista ético — em sua crítica ao sistema de trabalho e de propriedade dominante no Brasil Império: homens donos de homens; terras imensas, dominadas feudalmente por umas poucas e privilegiadas famílias; escravidão; latifúndio. “Acabar com a escravidão não basta”, disse Joaquim Nabuco em discurso da sua fase de “reformador social”; aquela que em Minha Formação é recordada, embora de modo um tanto abstrato, em dois capítulos: o XXI e o XXII. E acrescentava: “É preciso destruir a obra da escravidão”. Referia-se à expressão nefasta, ao sobejo pernicioso, de um sistema que, de resto, produzira o próprio Joaquim Nabuco e consolidara o próprio Brasil como nação a um tempo aristocrática e democrática. Para ele, a substituição de escravos por “artistas e operários” só aparentemente livres, a continuação do “monopólio territorial”, a sobrevivência de “instituições auxiliares da escravidão” — constituem aspectos daquela expressão nefasta que poderiam estender-se, além da Abolição, prejudicando o desenvolvimento brasileiro ou o futuro nacional.
A abolição da escravidão, no Brasil, considerou-a ele, na sua fase de “reformador social” apenas o primeiro passo para “a organização do trabalho nacional”. Para a consolidação da “civilização brasileira” sobre bases democráticas. Por enxergar na Abolição um aspecto, apenas, da revolução social necessitada pelo seu e nosso país, é que Joaquim Nabuco, desenganado das “reformas políticas”, abandonou, “no Parlamento, a atitude propriamente política para tomar a atitude de reformador social”. E repetindo palavras, por ele próprio consideradas “revolucionárias”, dizia, em 1884, num dos seus discursos mais enfáticos: “O que é o operário? Nada. O que virá ele a ser? Tudo”. Pois na gente de trabalho estava “o futuro, a expansão, o crescimento do Brasil”. Era o trabalho — ou o trabalhador — que, segundo ele, precisava de ser libertado, levantado e protegido “em toda a extensão do país, sem diferença de raças nem de ofícios”.
De modo que não há exagero em considerar-se esse Nabuco enfático na sua apologia do trabalhador — um Nabuco inconformado com a ordem social de então que o autor apolíneo de Minha Formação deixa um tanto na sombra, talvez mais pelo pudor da ênfase em que por vezes se extremara o “reformador social” daqueles dias do que por qualquer sentimento de total repúdio às “reformas sociais” defendidas pela sua voz de moço em comícios célebres — o verdadeiro precursor do moderno movimento brasileiro de valorização do trabalho e da gente de trabalho.
Não deixa, porém, Joaquim Nabuco, na sua autobiografia, de procurar justificar o que a Campanha da Abolição teve de enfaticamente demagógico, um tanto em desarmonia com temperamentos como o seu: “O espírito revolucionário” — explica ele — tivera que “executar em poucos anos uma tarefa que havia sido desprezada durante um século”. Agindo revolucionariamente, ele próprio se exagerara um tanto na sua extroversão de ator — “a ambição, a popularidade, a emoção da cena, o esforço e a recompensa da luta” — para vir a corrigir-se desses excessos dionisíacos, contrários aos seus pendores mais íntimos, entregando-se por algum tempo — à época em que escreveu Minha Formação — à “nostalgia do passado”, à “sedução crescente da natureza”, ao “retraimento do mundo”, à “doçura do lar”. Período a que se seguiria outro — o de Ministro em Roma, o de Embaixador em Washington, o de internacionalista — do qual é pena não nos ter deixado, em páginas autobiográficas, o livro de recordações que completasse Minha Formação. Faltoulhe, para tanto, novo e último período de “nostalgia do passado” e de “retraimento do mundo” — essa nostalgia do passado e esse retraimento do mundo que criam o ambiente favorável à elaboração das grandes autobiografias do tipo da de Newman e das profundas confissões do gênero das de Santo Agostinho.
Arthur Ponsomby, que se especializou na análise da literatura introspectiva da sua gente — a inglesa — é de opinião que essa espécie de literatura — especialmente a que se baseia em diários: e foram diários que serviram de base à elaboração de Minha Formação — tem por principal estímulo o egoísmo. Mas adverte: “egotism except in excess ough not to be regarded as a fault”. O egoísta que se exprime em auto-análise é, segundo ele, “self-conscious” e às vezes “self-absorbed”. Mais: “the autobiographer is a notorius egoist…”
Joaquim Nabuco, sem ter sido um “notorius egoist”, foi evidentemente um “self-conscious” e é possível que, retratado na fase da vida em que escreveu Minha Formação, possa ser considerado um “self-absorbed”. Ao ter sido forçado pelas circunstâncias brasileiras a abandonar a atividade política para recolher-se à solidão de Paquetá, voltou-se para o passado, tanto pessoal como nacional, primeiro vicariamente analisando a figura do pai: depois diretamente, analisando a própria pessoa. A biografia do pai traçou-a sentindo, decerto, no insigne estadista do Império que foi Nabuco de Araújo, o político realizado, quase completo, que ele, Joaquim Aurélio, com a queda do Império, não conseguira ser. A autobiografia, escreveu-a, contemplando-se, por vezes, com não pouca satisfação; mas evitando aprofundar-se naquilo que um ilustre inglês, seu contemporâneo, Gladstone, chamou, ao autobiografar-se, “interior matters”. O que fez sem ter deixado de ser introspectivo: apenas guardando-se de revelar o que pudesse fazê-lo parecer ridículo aos olhos dos leitores. Esta, a grande deficiência de Minha Formação: ao anglicizado Nabuco falta nestas suas páginas o sal daquele anglicíssimo “sense of humour” que leva o indivíduo, mesmo quando homem público, a sorrir de si próprio; a admitir, na sua vida ou na sua pessoa, fraquezas que o tornem ridículo e até cômico aos olhos dos outros. Falta-lhe também — excetuada a evocação da infância em Maçangana — maior presença, nas reconstituições do seu passado e do passado brasileiro ou estrangeiro, do cotidiano ou de trivial: aquelas “casual notes” que nos bons livros de autobiografia, como nos de biografia, dão às evocações a realidade, a vida que, segundo Posomby, “the more artistic and skilful compositions of fiction cannot produce in quite the same way”. De onde haver leitores de tal gênero de literatura — biografias, autobiografias, memórias, confissões, diários — de todo afeiçoados ao que, nesses livros e nos de história íntima, se encontra do que os Goncourt consideravam “roman vrai”. Assim afeiçoados à literatura biográfica, não conseguem interessar-se, senão mediocremente, por ficção ou sequer por teatro puro: fantasia ou abstração.
O que é preciso, para a literatura desse difícil feitio empolgar leitores pouco inclinados à apreciação da pura ficção, é que nela se encontre, como se encontra no que há de biográfico em Dom Quixote ou em Ulysses, e de história íntima em Guerra e Paz, aquele cotidiano aparentemente desprezível, aquele trivial aparentemente sem importância; e nas autobiografias como nas biografias de grandes homens, o registro de alguma de suas explosões de cólera, de alguma das suas brigas de família, de algum dos seus jantares íntimos, de algum dos seus pecadilhos de sexo, de algum de seus resfriados: pormenores que façam o leitor regozijar-se — como nota Moore — com a descoberta “so consoling to human pride that even the mightiest in these moments of ease and weakness resemble ourselves”.
É o que parece evitar quase sempre Joaquim Nabuco em Minha Formação: o trivial, o cotidiano, a recordação de episódios que pudessem fazê-lo parecer senão ridículo, trivial, aos olhos do público. De modo que é por informação de contemporâneos indiscretos que se sabe não ter ele, menino de engenho, em Maçangana, aprendido a montar a cavalo; que os seus dias de interno de colégio foram dias de sofrimento para o adolescente, afilhado daquela Dona Ana Rosa Falcão, que o criara com ternura quase de avó por neto, tendo até pretendido (quem o descobriu vasculhando papéis velhos, foi o advogado Luís Cedro) mudar o nome do filho do Senador Nabuco para outro, que continuasse o da família do defunto marido da mesma Dona Ana Rosa, absorvente e um tanto autoritária; e que talvez por ter sido assim mimado na infância, se tivesse tornado meninote dengoso aos olhos dos rapazes do internato mais sacudidos, mais sarados e menos criados do que ele por madrinhas ricas; que no Teatro Santa Isabel chegou, no seu tempo de “reformador social”, a ser vaiado por multidão recifense, açulada contra “Quincas o Belo” por agitadores de rua do feitio do aliás seu amigo José Mariano; que, nos seus dias do Recife, foi visto, umas tantas vezes, para os lados da então chamada “Linha Principal”, dizendo as más línguas da época que namoricava a mais bela inglesa moradora daquela mesma “Linha”: tão bela como mulher — aliás casada — quanto ele, Quincas o Belo, — naqueles dias, solteiro — como homem. O “belo Quincas”, homem de quarenta anos, que também encantara, antes de casar-se com D. Evelina, a filha de opulento fazendeiro de Vassouras, dono de muitos escravos; o qual por isto mesmo teria dito asperamente “não” às pretensões do flamboyant abolicionista de tornar-se genro de escravocrata tão ostensivo. É um fracasso este, no amor, que Joaquim Nabuco talvez pudesse ter recordado, de modo velado e, sobretudo, sem amargura, em Minha Formação. Não o recorda. É um livro pelo qual não passa nem de leve saia de sinhá-moça com seu ruge-ruge de seda fina: a seda fina das saias de certas elegantes da época, das quais se chegou a dizer, a propósito de outro brasileiro ilustre de Pernambuco (de quem Joaquim Nabuco pensou em escrever a biografia: Maciel Monteiro, Barão de Itamaracá), que fizeram calos nas pontas dos dedos do barão galanteador, tantas foram as que levantou com volúpias de Casanova mulato.
Nenhuma trivialidade desse sabor perturba, em Minha Formação, o ritmo apolíneo de uma narrativa autobiográfica cujo “autor” ao mesmo tempo que “actor”, ao tornar-se, segundo ele próprio, apenas “espectador” de si mesmo, não parece esquecer-se nunca do fato de se ter tornado também, na história de seu país, homem imortal. “Lembra-te de que és mortal”, dizia o pregoeiro que acompanhava na antiga Roma o carro do triunfador que fosse acolhido pela capital do grande Império com os seus melhores louros. Joaquim Nabuco parece ter ouvido, ao escrever a maior parte de Minha Formação, pregão bem diferente vindo de dentro de si próprio: “Lembra-te de que és imortal!” Imortal na história de seu país e imortal, pura e simplesmente, como alma, de acordo com sua fé de católico. De onde terminar “a história da minha formação política e mesmo de toda a minha formação” escrevendo que reservava o saldo dos seus dias “para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quisera levar na alma”.
Da paisagem que Minha Formação evoca não há exagero em dizer-se que é a mais brasileira das paisagens: a do canavial; a do trópico úmido, onde, com o canavial, desenvolveu-se a primeira civilização que deu expressão mundial ao Brasil; e que foi a civilização do açúcar, a do engenho; a da casa-grande; a da senzala; a da capela de engenho; a do rio ao serviço dos engenhos. É a paisagem das pinturas do holandês abrasileirado Franz Post e dos óleos um tanto aflamengados do Telles Júnior; das marinhas de Rosalvo Ribeiro e das vistas panorâmicas de Lassally.
Outras paisagens vêm se acrescentando a esta, como características de um Brasil ainda agreste ou europeizado através de outras técnicas de produção: a das fazendas de criar; a das minas; a das estâncias; a das fazendas de café; a das fazendas de cacau; a dos seringais. Mas foi principalmente dentro da paisagem em que se formou Joaquim Nabuco que o Brasil adquiriu suas primeiras formas de sociedade nacional que foram as de uma sociedade familial, patriarcal; e as suas primeiras formas de sistema econômico de repercussão internacional, que foram as de uma economia de plantação à base da lavoura da cana e do fabrico do mascavo.
Igual a Maçangana foram vários dos engenhos, das fazendas, das estâncias, que concorreram para a formação de outros Brasis, quer agrários, quer pastoris, no seu modo de ser patriarcais; e também para a formação de outros Joaquins Nabuco. Escrevendo sua autobiografia, “nhô Quim” de Maçangana não escreveu um livro apenas pessoal: escreveu uma parte da história da formação nacional do Brasil. É pena que livros semelhantes à Minha Formação não tenham sido escritos, um por um dos Andradas mais antigos, que foram os de São Paulo; outro, por um Antônio Vieira que não fosse impedido de autobiografar-se pela sua condição de padre da Companhia; ainda outro, por um dos poetas mineiros da Inconfidência.
Sob este ponto de vista — o de um depoimento de interesse nacional, especificamente nacional, dentro do humano — é obra que se inclui entre os mais expressivos livros escritos no Brasil. É o Education of Henry Adams brasileiro. O equivalente de Apologia pro vita sua em língua portuguesa. Inclui-se entre aqueles livros com que Nabuco brasileiros mais ou menos autobiográficos em alguns dos seus modos de ser historiadores sociais ou nos seus métodos de tratar — como fez o um tanto subeuropeu Nina Rodrigues — temas sociológicos para eles, demasiadamente antieuropeus mas irresistivelmente brasileiros, têm revelado o Brasil aos seus compatriotas: Os Sertões, decerto; porém, antes de Os Sertões, O Selvagem, de Couto de Magalhães; as páginas de Taunay sobre si mesmo e sobre o Brasil Central; as de Capistrano, sobre assuntos coloniais; as de Nina Rodrigues, sobre os negros da Bahia; as de Machado de Assis sobre o Rio de Janeiro; as de Sílvio Romero, em obra monumental, sobre a formação das letras nacionais; as de Tobias, sobre nova filosofia de Direito aplicada ao Brasil; as de Rui Barbosa sobre “suas contradições”; o Dom João VI no Brasil, de Oliveira Lima; e menos remotamente, a Língua Nacional, de João Ribeiro; o Pelo Sertão, de Afonso Arinos; Canaã, de Graça Aranha; Cenas da Vida Amazônica, de José Veríssimo; o Negrinho do Pastoreio, de Simões Lopes Neto; a História do Direito Nacional, de Martins Júnior; o autobiográfico O Ateneu, de Raul Pompéia; Sous la Croix du Sud, de Dom Luís de Orleans e Bragança; Rondônia, de Roquete-Pinto; Terra de Sol, de Gustavo Barroso; Gonzaga de Sá, de Lima Barreto; O Problema Nacional, de Alberto Torres; Populações Meridionais, de Oliveira Viana; Bagaceira, de José Américo de Almeida; o também autobiográfico Menino de Engenho, de José Lins do Rego; as memórias de Oliveira Lima; as de Gilberto Amado – grande acontecimento nas letras autobiográficas em língua portuguesa; mas acontecimento já dos nossos dias. O que é certo também da autobiografia de Helena Morley e das Confissões de Carlos Drummond de Andrade. A quase todos excede Minha Formação em importância sociológica, em interesse humano, em graça literária. Por nenhum excedido nesse conjunto de virtudes, características, quando reunidas, de tão poucos grandes livros.
Os Sertões destacam-se pela ênfase com que seu autor — como Nabuco, também autor — requinta-se não só em apresentar um Brasil asperamente sertanejo, como em representá-lo ele próprio, nas suas expressões mais exóticas: árido, hirto, angustiado, com suas formas angulosamente dramáticas de gente e de paisagem a contrastarem com as dos Brasis mais adoçados pelo açúcar e pelo negro; pelo café, pelo italiano. Cria Euclides, em Os Sertões, em torno da gente sertaneja e da interpretação por vezes teatral que nos oferece dessa gente, uma sugestão ostensivamente épica de tema social e de obra literária. A verdade, porém, é que o Brasil evocado por Nabuco em Minha Formação não é menos épico, em sua essência, que o retratado por Euclides. O que se verifica é ter havido por parte de um ator-autor maior ênfase oratória, que da parte do outro, no aspecto épico do seu tema e dos seus personagens.
Visto de perto, o Brasil de que Joaquim Nabuco nos dá, em Minha Formação, uma síntese em que autobiografia e história nacional se confundem, em vários pontos, foi um Brasil por vezes épico, na sua nem sempre melíflua formação patriarcal. Épico na resistência da gente dos seus engenhos a franceses e holandeses. Épico nas revoltas de alguns dos seus escravos contra alguns dos seus senhores. Épico em revoluções como a dos Alfaiates, na Bahia; como a dos padres de 1817, no Nordeste; como as insurreições fluminenses contra reinóis. Épico com Frei Caneca, com Nunes Machado, com a “Praia”, com Pedro Ivo. Movimentos, todos esses, de gentes das terras de cana e até dos arredores mais que úmidos, líquidos, do Recife: principal ponto de ligação, durante anos, da cultura brasileira em desenvolvimento com artes, letras, ciências, técnicas europeias e anglo-americanas de vanguarda. De onde terem aparecido não em qualquer dos Brasis tropicalmente áridos mas num dos mais intensamente úmidos em sua condição de tropical — o de Joaquim Nabuco, por excelência — renovadores políticos, agitadores sociais, intelectuais, revolucionários, alguns deles com um sentido épico de ação, como foram A. P. de Figueiredo — o primeiro crítico social profundo do sistema latifundiário e escravocrático dominante no Brasil colonial e imperial; como Teixeira de Freitas; como Castro Alves; como Gonçalves Dias; como Tobias; como os três médicos, fixados na Bahia, do século XIX, na hoje chamada Escola Tropicalista de Medicina; como Sílvio Romero; como Dom Vital.
Sinhás, mães de família, iaiazinhas, mucamas, sinhás-moças não foram, no Brasil tropicalmente úmido, gente de vida o tempo todo fácil e rotineiro. Viveram muitas delas dias terríveis dentro de casas-grandes em que a resistência a invasores e a doenças — doenças de meninos, sobretudo — foi esforço duro para muitas e martírio para algumas. Só quem quiser ser estreitamente convencional no seu sentido do que seja épico, deixará de reconhecer o que houve de epopeia na formação da família patriarcal em terras de massapé do Brasil; aquelas em que se formou Joaquim Nabuco, tendo quase alcançado as sangrentas lutas de “praieiros” com senhores-de-engenho. Foram lutas as da “Praia”, que culminaram no ano de 1849: precisamente aquele em que Joaquim Nabuco nasceu num sobrado patriarcal do Recife. Num sobrado perto do rio e não muito longe do mar ao mesmo tempo que voltado para o interior: para os canaviais, as terras, o mato do interior.
Íntegra do livro de Joaquim Nabuco Minha Formação aqui