O livrinho vermelho para crianças
A ensaísta política, ativista de esquerda e artista alemã Bini Adamczak esperava alguma polêmica quando lançou nos EUA, há dois meses, a versão em inglês de um livro que escrevera havia 13 anos. Mas não previa a onda de críticas de sites e jornais conservadores do país, a maioria assumindo que sequer leu o livro, como é comum na era dos comentaristas de redes sociais.
Adamczak, de 38 anos, é autora de Comunismo para Crianças, publicado nos Estados Unidos pela prestigiosa MIT Press (editora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Apesar do título, o livro, que explica as origens e a história do comunismo – e apresenta a visão da autora de como a ideologia ainda poderia servir de modelo político – não foi escrito para o público infantil. A edição alemã original foi chamada de “Comunismo: uma pequena história sobre como tudo pode ser diferente”. Um livro escrito para todos em um idioma que, em sua maior parte, as crianças também podem entender.
“Ao escrever o livro, percebi que a linguagem acadêmica eliminava toda afetividade”, contou ela à BBC Brasil. “Por isso, tive a ideia de escrevê-lo em linguagem infantil, que é mais simples e todo mundo entende.”
O livro explica conceitos como capitalismo, mercado e comunismo em ritmo de fábula infantil, com histórias ilustradas de princesas invejosas, camponesas desalojadas, patroas malvadas e trabalhadoras cansadas.
A obra causou grande irritação e uma chuva de críticas de políticos e da mídia conservadora americana, muitas a chamando de livro “que ensina comunismo a crianças”.
O blog Economic Policy Journal, por exemplo, descreveu o trabalho como “o livro mais perigoso sobre economia escrito para crianças”, e o político republicano Garry R. Smith, deputado no Estado da Carolina do Sul, escreveu no Twitter que a publicação “transforma uma ideologia mortífera em conto de fadas”.
Publicações como The American Conservative e The National Review, alguns dos principais jornais conservadores dos EUA, também repudiaram o texto por “ignorar atrocidades cometidas por regimes comunistas”. A escritora foi criticada também por escrever sem experiência própria, já que nunca morou em um país comunista.
Em artigo publicado no jornal The New York Times, o tradutor do livro para o inglês, Jacob Blumenfeld, diz que “100% das críticas são baseadas numa má compreensão do título”.
“Qualquer um que ler mais do que o título escandaloso reconhecerá imediatamente que o livro é uma crítica da história do comunismo”, diz Blumenfeld. “A idéia por trás do livro é que se pode falar com sinceridade e pungência sobre a filosofia política e a história econômica do capitalismo e do comunismo em linguagem muito mais simples do que a dos economistas, cientistas políticos e especialistas em políticas.”
Para fazer isso, diz ele, a Sra. Adamczak conta um conto de camponeses que sobrevivem à transição do feudalismo para o capitalismo, uma história sobre os trabalhadores que se adaptam às demandas do mercado de produtividade capitalista e uma parábola sobre tentativas diferentes e fracassadas por proletários e desempregados para melhorar suas condições econômicas através da organização coletiva. “Embora a narrativa esteja cheia de sofrimento, derrota e fracasso, o verdadeiro escândalo do livro reside no seu otimismo, e espera que outro mundo ainda seja possível no útero do antigo. Mais escandalosa, essa esperança não pode ser decretada do alto por políticos, líderes ou empresários, mas apenas criada a partir de baixo por pessoas que lutam por um modo de vida justo, digno e livre”
O tradutor faz uma observação interessante sobre a histeria em torno desse tipo de material, ao identificar na palavra “comunismo” o motivo. Na América, o medo da palavra “comunismo” está vinculado ao medo da palavra “capitalismo”, outra não-palavra ausente no discurso educado. “É fácil conversar sobre os mercados, a indústria, a classe média, os criadores de emprego, as empresas start-ups, a globalização e a economia global; menos identificar a nossa sociedade como capitalista e denominar o nosso sistema econômico como capitalismo, pois sugere a possibilidade de uma organização alternativa da vida. E isso é perigoso, não americano, talvez até comunista”, ironiza.
De acordo com Blumenfeld, a única maneira de compreender verdadeiramente as falhas do comunismo é levar a sério as motivações, desejos e ideais daqueles que o defendiam. Mas, para fazer isso, primeiro devemos entender o capitalismo, tarefa a que Karl Marx se propôs.
“É aqui que fica muito confuso para a maioria dos críticos do comunismo, porque o próprio Karl Marx elogiou a produtividade, a eficiência e o poder da economia de mercado. Se pudermos aproveitar a energia do capitalismo sem seus efeitos de exploração, muitos ponderados ponderaram, então certamente podemos criar uma sociedade melhor para todos. Ou: se apenas os trabalhadores pudessem possuir as próprias fábricas, certamente poderíamos desencadear a força produtiva da sociedade. Ou melhor: se ao menos tivéssemos especialistas econômicos para gerenciar melhor o mercado, certamente poderíamos satisfazer as necessidades de todos. Ou mesmo: se apenas mais máquinas cuidassem do nosso trabalho, certamente todos os nossos problemas seriam resolvidos.”
“O ‘comunismo para crianças’ não é uma mensagem em uma garrafa para algum público futuro imaginado; É mais uma coleção de fragmentos quebrados de futuros perdidos ainda presos no presente. É um grito de trás da cortina da história para corrigir as injustiças do passado atendendo ao sofrimento do presente. Sugiro que prestemos atenção”, diz Blumenfel.
À BBC Brasil, Adamczak afirmou que o livro faz uma crítica ao que chama de “comunismo autoritário”.
“O stalinismo (período de 1924 a 1953 em que a União Soviética foi comandada por Joseph Stálin) prejudicou muito a possibilidade do futuro do comunismo. Essa herança do comunismo autoritário é um problema real para as pessoas que lutam por um mundo diferente”, opina a autora.
Ela acha que o uso da expressão “para crianças” no título e a publicação pela MIT Press, editora universitária de elite e com prestígio entre conservadores americanos, são fatores que pesaram nas críticas, mas que “a principal crítica é política, pois o comunismo continua sendo uma fonte de irritação”.
O livro tem duas partes. Na primeira, explica, a partir de exemplos simples, termos como mercado, trabalho e capitalismo, para depois expor a história dos regimes comunistas.
Na segunda parte, mais teórica, Adamczak apresenta o comunismo como uma utopia em processo de desenvolvimento e que, na sua visão, poderia, um dia, ser uma alternativa mais igualitária ao modelo capitalista.
A polêmica levou a MIT Press a sair em defesa da publicação.
Em texto no site da editora, o editor Marc Lowenthal diz que Comunismo para Crianças é um livro do tipo que “sintetiza conhecimento – tornando-o acessível – para um público mais amplo”, escrito com “humor e charme”.
“O propósito do livro é entender o que foi, o que é e o que poderia ser o comunismo, e qual modelo (sendo que houve vários comunismos através da história) seria o melhor ou se o comunismo precisa ser reinventado. Para isso, o livro oferece inicialmente uma explicação sobre capitalismo e como ele trouxe sofrimento a algumas pessoas”, afirma Lowenthal.
O livro ainda não tem versão em português, mas uma editora brasileira já manifestou interesse em publicá-lo. Como as conversas estão no início, a editora alemã preferiu não dar detalhes sobre a negociação.