A trajetória daquele que seria uma das mais contundentes vozes da luta contra o latifúndio e em defesa das liberdades púbicas teve inicio quando o Brasil estava encarcerado pela quartelada de 31 de Março de 1964, que submeteu o país aos terríveis anos da Ditadura Militar, marcada pelas torturas e assassinatos, além da submissão aos interesses externos, notadamente estadunidenses.

Eram tempos da rebelião juvenil francesa e da primavera de Praga, de mudanças tecnológicas e da incerteza da guerra fria, da resistência no Vietnã contra os ianques, da estreia na Broadway do musical “Hair”, do lançamento do “Álbum Branco” dos Beatles, do acirramento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e também do assassinato de Martin Luther King e do engendramento do Apartheid na África do Sul.

As mulheres historicamente proibidas de atuar na vida pública queimaram sutiãs e a juventude passou a ter, na sociedade e na cultura, uma presença social autônoma.

No Brasil de 68, Chico Buarque estreia “Roda-Viva” e logo os artistas da peça sofrem atentado patrocinado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), Caetano Veloso e Gilberto Gil lançam o manifesto onde apresentam a “Tropicália”, do contundente discurso do jornalista Márcio Moreira Alves contra a ditadura, estopim para o AI-5. É por essa época que o General Costa e Silva promove torpe censura contra o cinema e o teatro e é criado o Conselho Superior de Censura.

O jovem Paulo Fonteles, oitavo filho do marítimo Benedito Lima e de Cordolina Fonteles – uma dona-de-casa que se tornou símbolo da luta conta a impunidade depois de seu assassinato, em 1987 – tomou parte nas manifestações que eclodiram pelo país quando do assassinato do estudante paraense Edson Luís, morto pela repressão política no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Naqueles dias a juventude brasileira ganhou pessoa e postura.

Militando na Ação Popular (AP) e disposto a radicalizar, muda-se com a mulher, também militante politica Hecilda Veiga para Brasília.

Estudante do curso de Direito da UNB e professor de cursinho tem no codinome de “Peixoto” o batismo para se tornar um dos importantes dirigentes de juventude universitária da Ação Popular que o levou, junto com a esposa, grávida, em outubro de 1971 a conhecer toda selvageria e barbárie da repressão política quando fora preso e severamente torturado.

O Relatório da Comissão Nacional da Verdade expôs – no 5 º Capítulo, que trata das Instituições e locais Associados a Graves Violações de Direitos Humanos – seu contundente depoimento, tornado público poucos anos depois do calvário nas masmorras da repressão política:

“(…) Em 1978, Paulo Fonteles denunciou o PIC como centro de tortura:
Estudante da Universidade de Brasília, fui preso no dia 6 de outubro de 1971. […] O PIC é o inferno. Nele, conheci logo a “salinha”, sala de estar dos sargentos, onde eram promovidas as torturas a todos que eram presos no PIC. Sem que me fizessem uma só pergunta, “só para arrepiar”, na gíria dos torturadores, experimentei na carne toda a selvageria do aparelho de repressão montado desde 1964. Inicialmente um brutal espancamento, murros, “telefones”, tapas, chutes no estômago, cacetadas nos joelhos e nos cotovelos, pisões nos rins. Depois, apesar de meu esforço para resistir, tiraram-me as roupas, deixando-me completamente nu, amarraram-me no pau de arara, e passaram a me aplicar choques elétricos, com descargas de 140 volts, na cabeça, nos órgãos genitais, na língua. Depois de muito tempo é que começaram as perguntas. Como eu não lhes respondia, a “sessão” durou até alta madrugada, quando, já bastante machucado, fui arrastado e atirado dentro de uma cela. Entre outros, participaram dessa primeira sessão o delegado Deusdeth, da PF, o sargento Ribeiro, o sargento Vasconcelos, o sargento Arthur, cabo Torrezan, cabo Jamiro, soldado Ismael, soldado Almir, todos esses do Exército. O dia 7, quinta-feira, ainda não amanhecera, quando o sargento Vasconcelos, elemento bestial, despudorado homossexual que se aprazia em ofender as companheiras presas, veio dizer que o da noite “fora só um aperitivo”. Que agora era que o pau ia cantar mesmo. Cedo, um destacado elemento da tortura do PIC, o cabo Martins, foi me buscar na cela, colocou-me um capuz negro e levou-me para a “salinha”. Durante quase três dias seguidos, quase sem interrupções, fui submetido às mais diversas formas de violências físicas que se possa conceber. Nu, pendurado pelos pulsos e tornozelos no pau de arara (uma barra de ferro, sobre dois cavaletes, onde o preso fica dependurado, assim como se fosse um porco que vai ao mercado), recebendo espancamentos generalizados, choques elétricos, afogamentos.78 (…)” .

Seus relatos daquele período, pela força da sua poesia, revelam a permanente luta pela vida na forma da denúncia da bestialidade dos torturadores que alcunhava como “cães que cavalgam soltos”. Ali, no famigerado Pelotão de Investigações Criminais (PIC) e depois na Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, um dos maiores centros de tortura do país onde os bárbaros foram adestrados por víboras que insistiam em afirmar que os métodos da Gestapo estavam ultrapassados e que era necessário reinventar a Santa Inquisição. Naquelas duras condições, ao saberem da resistência armada da Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará, tanto Paulo quanto Hecilda ingressam nas fileiras do Partido Comunista do Brasil.

Ao concluir a pena de quase dois anos no Presídio São José, em Belém, é enquadrado pelo 477, terrível instituto criado pelo coronel Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação, que proibia estudantes indiciados pela famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN) de retornarem aos estudos. Paulo e Hecilda, com filhos – um nascido e o outro gerado no cárcere – vão morar e trabalhar na Ilha do Mosqueiro, nas fazendas dos irmãos de Paulo. Ao cumprirem uma pena de três anos retornam a Universidade e, concomitantemente, para a luta popular.

Paulo Fonteles, formado em Direito pela UFPA segue – a convite do poeta Rui Barata- para o seu primeiro teste na defesa dos camponeses: relaxar as prisões efetuadas pelos órgãos de segurança aos envolvidos na luta da Fazenda Capaz, cujo proprietário era o então ex-coronel da força aérea dos EUA, John Davis, morto pelos posseiros depois de promover, por longo tempo, a grilagem de terras, expulsão e assassinatos contra trabalhadores rurais. Aquele convite marcaria profundamente sua opção e militância.

É por esse tempo que, junto com outros companheiros, como Iza e Humberto Cunha, Hecilda Veiga, Paulo Roberto Ferreira, Jaime Teixeira, João Marques, Egidio Salles Filho, Rui Barata, Armando Zurita, Rafael Lima, Januário Guedes, Luís Maklouf de Carvalho e tantos outros organizam a Sociedade Paraense de Direitos Humanos e lança, naquele período, o Jornal “Resistência”, verdadeiro ícone da imprensa de combate à ditadura militar.

É uma pena que na historiografia brasileira, quando tratam da imprensa alternativa, o “Resistência” não tenha tido até hoje o reconhecimento merecido, seja pela ousadia da linha editorial e formato, diferente de tudo que havia na época na imprensa paraense.

Paulo Fonteles é eleito o primeiro presidente da SPDDH e nesse ambiente, em 1978, se coloca à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para advogar para os camponeses do Sul do Pará. Frei Ivo me disse quando o conheci, há alguns anos em Belém, que na época a CPT havia convidado vários advogados para a tarefa e apenas o advogado comunista havia topado o desafio, contando com a ajuda, sempre generosa do amigo, também advogado Egidio Salles Filho no sentido de resolver intrincados processos onde tudo conspirava contra o interesse camponês e a favor da grilagem e ocupação capitalista na Amazônia paraense.

Todo esse ambiente do final da década de setenta fora de muita luta e no mesmo momento em que os operários paralisavam no ABC paulista, que revelou para a cena brasileira o metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, os camponeses dos sertões paraenses ocupavam 250 mil hectares de terras no Baixo-Araguaia, numa verdadeira guerra de guerrilhas contra o poderio dos latifundiários, desafiando o próprio regime dos generais.

Esse momento foi de militarização da política fundiária, com o engendramento do Grupo Executivo Araguaia-Tocantins (GETAT) que, criado para assegurar o controle e execução que dos vultosos e alienígenas projetos para a Amazônia – no sentido de explorar suas indescritíveis riquezas como forma de anexar a região no mercado capitalista internacional, através da madeira, da pecuária extensiva e da extração mineral – e conter a ocupação das terras por milhares de trabalhadores rurais naquela explosiva fronteira do Brasil no final dos anos de 1970.

Enfrentando de frente o poder dos coronéis e das oligarquias instaladas na região – como a Volkswagen, a Manah, o Bradesco e a Nixdorf – Paulo Fonteles logo é reconhecido pelos homens e mulheres simples do campo e por eles é carinhosamente chamado de ‘advogado-do-mato’. E nesse momento que seu nome começa a figurar nas tenebrosas listas de marcados para morrer.
Sua atuação, como advogado da oposição sindical nas contendas contra o pelego Bertoldo Siqueira, na luta para retomar para as mãos dos lavradores o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia vai destilar o ódio em famigerados, como o Major Curió e o Ministro Jarbas Passarinho. Muitos dos instrumentos e quadros da repressão atuaram para derrotar a oposição e até a Rádio Nacional de Brasília fazia campanha para os caudatários do militarismo.

Nesse contencioso é morto Raimundo Ferreira Lima, o “Gringo”. O assassinato do candidato à presidência da oposição sindical vai inaugurar uma atuação mais violenta, momento em que se estabelece o conluio entre o regime e os grandes proprietários de terras, reforçando e ampliando a força da pistolagem. O ato de protesto ao violento desaparecimento de ‘Gringo’ vem a ser o momento em que a ditadura militar perde o controle férreo que exercia na região desde o fim dos combates da guerrilha do Araguaia.

Com o assassinato do “Gringo” – vai ser o primeiro de uma lista que contava com João Canuto, Belchior e Expedito Ribeiro de Souza, além de Paulo Fonteles – as macabras listas dos marcados para morrer vai ganhar ares de efetividade e repercute até os nossos dias no caráter das forças do latifúndio quanto na índole do judiciário paraense, historicamente disposto em firmar, na impunidade, seu projeto de sociedade, ou seja, sempre ao lado dos donos do poder.

É também neste período que procura sistematizar os acontecimentos dos combates da Guerrilha do Araguaia e certamente foi seu primeiro pesquisador. Pelos sertões conhece gente como o “Velho Doza”, antigo militante das Ligas Camponesas onde fora citado como exemplo de combatividade e inteligência no livro de memórias de Gregório Bezerra, publicado em 1947.

Cumpre importante papel de advogado de familiares de mortos e desaparecidos que, em histórica caravana percorrem a região por mais de dez dias em fins de 1980.

Tal caravana é um marco da luta dos direitos humanos no Brasil e dessa atividade escreve um conjunto de artigos para a “Tribuna da Luta Operária” onde afirmava que no Araguaia a luta fora de massas, tomando a posição contrária de que nas matas da Amazônia, a mais contundente oposição ao regime militar teria sido um “foco” que, na linguagem política é o mesmo que atuar sem o povo, como uma espécie de seita. Compreendeu, como poucos que a luta é um problema científico do ponto de vista de entender as necessidades populares.

Em 1982 é eleito Deputado Estadual sob a consigna de “Terra, Trabalho e Independência Nacional” e no curso de sua atuação parlamentar é constantemente ameaçado e por diversas vezes denuncia da tribuna da Assembleia Legislativa do Pará as macabras listas de marcados para morrer onde figurava.
Em 1985, um Coronel do Exército e latifundiário, Eddie Castor da Nóbrega anuncia num dos principais jornais paraenses que iria atentar contra a vida do então Deputado. Fonteles no mesmo jornal responde que “se um coronel tem a ousadia de ameaçar de morte um Deputado abertamente, o que este senhor não faz com os trabalhadores rurais de sua fazenda”, concluiu.

Um dos aspectos de sua passagem pelo parlamento fora a denúncia contra a ditadura militar e a necessidade histórica de passarmos para um regime democrático, onde as liberdades políticas pudessem estar asseguradas no altar da vida pública brasileira.

Denunciava, também, o entreguismo do governo militar com sua subserviência aos poderosos internacionais e os projetos do imperialismo para a Amazônia. Atuava com um pé no Plenário e outro nas ruas e nos grotões, aliado não apenas dos camponeses, mas também da juventude e dos trabalhadores urbanos.

Em 1986 é candidato à Deputado Federal Constituinte, porém não conseguiu êxito eleitoral.

Fora do parlamento cria o Centro de Apoio ao Trabalhador Rural e Urbano (CEATRU) e apoia, como advogado, a luta contra os pelegos no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil que baniu o interesse patronal do seio do sindicato e da categoria.

Em 11 de Junho de 1987 todas as ameaças se confirmam e no final da manhã daquele dia é assassinado a mando da União Democrática Ruralista (UDR) na região metropolitana de Belém. A ação que atentou contra a vida de Paulo Fonteles ocorreu no mesmo momento em que se votava, no âmbito da constituinte, o Capítulo da Terra.

O latifúndio, sob a liderança de Ronaldo Caiado, orquestrou através de um consórcio empresarial, o primeiro da modalidade segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, cuja responsabilidade do hediondo crime ficou imputada ao fazendeiro mineiro Fábio Vieira Lopes que, enfim, executou-o contratando os serviços de James Vita Lopes, antigo membro da OBAN e do SNI, além de ter trabalhado no Palácio Bandeirantes, como assessor no governo de Paulo Maluf, em São Paulo.

Até hoje os mandantes do assassinato de Paulo Fonteles não foram levados a julgamento e, como centenas de casos da pistolagem perpetradas pelo latifúndio seu crime permanece impune o que revela o caráter do judiciário paraense e brasileiro.

Mais do que nunca, diante do recrudescimento de forças obscurantistas – que, enfim, solaparam a democracia através de um golpe jurídico e midiático – as forças vivas da sociedade paraense e brasileira devem travar o combate contra a impunidade e criar ambiente propício, mesmo com o recalcitrante judiciário local, para punir os históricos crimes do latifúndio e passar a ofensiva na luta contra os violentos que tudo resolvem na intimidação e na liquidação física de lideranças camponesas e seus apoiadores. Uma das importantes saídas para a impunidade é a federalização dos crimes praticados pelos poderosos do campo.

O advogado comunista Paulo Fonteles era um homem de partido e suas ideias continuam atuais porque a luta pela reforma agrária, pelos direitos do povo e pelo socialismo são absolutamente atuais nesta quadra histórica, deste momento brasileiro em que, mais do que nunca é preciso exemplos para reforçar o caráter da luta democrática em curso, denunciando o golpe no Estado Democrático de Direito e seus pilares fundamentais, como é o instituto do voto, usurpado por um congresso de maioria elitista, corrupta, de homens brancos e anti-povo.

Sua vida de combates continua inspirando até os nossos dias a luta histórica dos trabalhadores no sentido de sua emancipação social.

*Paulo Fonteles Filho é Membro da Comissão da Verdade do Pará.