Monólogo de Glocester, depois Ricardo III
O sol de Iorque mudou em primavera o inverno
da guerra que nos trouxe um verdadeiro inferno.
As nuvens do terror, do mal, do desengano
perderam-se afinal no abismo do oceano.
Cingem a nossa fronte os louros da vitória
que a glória nos darão nas páginas da história.
Fizemos de troféus nossas duras espadas
e tornamos agora as contendas armadas
em agradável convívio. As marchas marciais
para infundir o mêdo, os terrores mortais
transformando-se estão, nesta hora de bonança,
de festa e de alegria, em músicas de dança.
O rosto ameaçador do guerreiro feroz
seu aspecto perdeu de inflexível algoz,
pois em vez de montar o cavalo de guerra
e espalhar cruelmente a morte sôbre a terra,
nas alcovas procura as mulheres formosas
e entrega-se ao prazer das lutas amorosas.
Mas eu que não me dou à aventura galante
nem posso conceder-me ao luxo inebriante
de ter no leito meu, na mais viva proeza,
uma ninfa ideal de lasciva beleza;
eu que não chego a ousar, e a mim mesmo aconselho
a jamais contemplar o meu rosto no espelho;
eu que sou repelente e, nesta vida imunda,
hei de sempre passar como simples corcunda,
disforme, inacabado, uma espécie de abôrto
que seria melhor se já nascesse morto;
eu que ao sair de casa os cães, em minha frente,
vendo a minha hediondez, ladram raivosamente;
eu, nesta hora de paz que a todos maravilha,
sòmente me entretenho a olhar, quando o sol brilha,
a minha própria sombra e analisar então
o que nela horroriza e causa repulsão.
Clarence eu intriguei mortamente com o Rei.
São ambos meus irmãos. Ambos destruirei.
Eduardo o enviará ainda hoje à prisão,
pensando que êle trama a sua perdição.
Agindo sôbre um rei de espírito atrasado,
fiz da superstição uma razão de Estado.
Criei as condições, causando vários danos,
para a realização de todos os meus planos.
Com presteza hei de agir, sem recuo e sem mêdo,
mas saberei guardar o meu grande segrêdo.
Jamais recuarei. A guerra fratricida
na sombra travarei sem arriscar a vida.
O ódio que trago em mim é a razão por que vivo
já que sou monstruoso, hediondo e repulsivo,
não ousando sonhar em vir a ser o amante
de uma dama gentil, bonita e bem falante.
Não podendo entregar-me aos prazeres carnais
da vida pueril dos tempos atuais,
eu resolvi assim usar sem compaixão
a intriga e o assassínio, a calúnia e a traição.
Se a natureza deu-me, estranha e caprichosa,
tôda esta fealdade, esta forma horrorosa,
como compensação por meio da maldade,
vingar-me-ei então de tôda a humanidade!
Uma Antologia Poética de Dante a Brecht
(Edmundo Moniz – Poemas da Liberdade)