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    Comunicação

    Monólogo de Glocester, depois Ricardo III

    O sol de Iorque mudou em primavera o inverno da guerra que nos trouxe um verdadeiro inferno. As nuvens do terror, do mal, do desengano perderam-se afinal no abismo do oceano. Cingem a nossa fronte os louros da vitória que a glória nos darão nas páginas da história. Fizemos de troféus nossas duras espadas e […]

    POR: Redação

    3 min de leitura

    Cercado de cortinas vermelhas, Ian MacKellen interpreta um Ricardo III carregado de referências nazistas.
    Cercado de cortinas vermelhas, Ian MacKellen interpreta um Ricardo III carregado de referências nazistas.

    O sol de Iorque mudou em primavera o inverno

    da guerra que nos trouxe um verdadeiro inferno.

    As nuvens do terror, do mal, do desengano

    perderam-se afinal no abismo do oceano.

    Cingem a nossa fronte os louros da vitória

    que a glória nos darão nas páginas da história.

    Fizemos de troféus nossas duras espadas

    e tornamos agora as contendas armadas

    em agradável convívio. As marchas marciais

    para infundir o mêdo, os terrores mortais

    transformando-se estão, nesta hora de bonança,

    de festa e de alegria, em músicas de dança.

    O rosto ameaçador do guerreiro feroz

    seu aspecto perdeu de inflexível algoz,

    pois em vez de montar o cavalo de guerra

    e espalhar cruelmente a morte sôbre a terra,

    nas alcovas procura as mulheres formosas

    e entrega-se ao prazer das lutas amorosas.

    Mas eu que não me dou à aventura galante

    nem posso conceder-me ao luxo inebriante

    de ter no leito meu, na mais viva proeza,

    uma ninfa ideal de lasciva beleza;

    eu que não chego a ousar, e a mim mesmo aconselho

    a jamais contemplar o meu rosto no espelho;

    eu que sou repelente e, nesta vida imunda,

    hei de sempre passar como simples corcunda,

    disforme, inacabado, uma espécie de abôrto

    que seria melhor se já nascesse morto;

    eu que ao sair de casa os cães, em minha frente,

    vendo a minha hediondez, ladram raivosamente;

    eu, nesta hora de paz que a todos maravilha,

    sòmente me entretenho a olhar, quando o sol brilha,

    a minha própria sombra e analisar então

    o que nela horroriza e causa repulsão.

    Clarence eu intriguei mortamente com o Rei.

    São ambos meus irmãos. Ambos destruirei.

    Eduardo o enviará ainda hoje à prisão,

    pensando que êle trama a sua perdição.

    Agindo sôbre um rei de espírito atrasado,

    fiz da superstição uma razão  de Estado.

    Criei as condições, causando vários danos,

    para a realização de todos os meus planos.

    Com presteza hei de agir, sem recuo e sem mêdo,

    mas saberei guardar o meu grande segrêdo.

    Jamais recuarei. A guerra fratricida

    na sombra travarei sem arriscar a vida.

    O ódio que trago em mim é a razão por que vivo

    já que sou monstruoso, hediondo e repulsivo,

    não ousando sonhar em vir a ser o amante

    de uma dama gentil, bonita e bem falante.

    Não podendo entregar-me aos prazeres carnais

    da vida pueril dos tempos atuais,

    eu resolvi assim usar sem compaixão

    a intriga e o assassínio, a calúnia e a traição.

    Se a natureza deu-me, estranha e caprichosa,

    tôda esta fealdade, esta forma horrorosa,

    como compensação por meio da maldade,

    vingar-me-ei então de tôda a humanidade!

     

    Uma Antologia Poética de Dante a Brecht

    (Edmundo Moniz – Poemas da Liberdade)