A tomada do Palácio pelo inverno
Quinta-feira, 12 de maio de 2016.
José da Silva Catalão, copeiro do Palácio do Planalto, chega cedo ao serviço. Há um deserto em cada corredor no caminho do vestiário. Os poucos seguranças de plantão olham para a tela da TV sintonizada em um canal de notícias. A imagem mostra o painel de votação do senado federal. Catalão ignora a cena e segue seu rumo. No armário, estão o smoking preto, a camisa branca e a gravata borboleta que compõem seu uniforme de trabalho. Quando retorna pelo corredor em direção à copa passa novamente pela TV. São seis e meia da manhã. O placar do senado registra 55 votos favoráveis e 22 contrários ao afastamento da presidente Dilma.
Aos 52 anos, Catalão trabalha há oito como garçom do gabinete presidencial. O bom humor é sua marca, um contraste com o clima pesado do terceiro andar do palácio, onde são tomadas as decisões mais importantes do país. Quando Lula era presidente, o garçom escondia o dedo mindinho da mão esquerda na hora de servir o café, imitando o chefe, que respondia com gargalhadas e palavrões. Com Dilma, o tratamento é mais formal, mas ele é um dos poucos funcionários que consegue arrancar um sorriso da presidente no meio de uma reunião de trabalho.
Catalão foi oficial do exército. Da formação militar herdou a disciplina, a pontualidade e a forma de cumprimentar seus colegas. Bate continência para todos que encontra pelo caminho, de porteiros a ministros, sem distinção. O primeiro que chega ao palácio é o assessor de imprensa da presidência, o jornalista Rodrigo de Almeida. Bom dia, doutor. Bom dia, Catalão. O copeiro abaixa a mão que fazia a continência militar e acrescenta:
– O inverno está chegando, doutor.
A frase chama a atenção de Rodrigo, homem culto, com doutorado em ciências políticas e grande apreciador de seriados americanos. Ele imagina Catalão como espectador da série Game of Thrones, embora o garçom nunca a tenha visto. Ainda assim, é uma ótima metáfora para o momento do país. A frase está sempre lá, na boca dos personagens do reino do norte, em quase todos os episódios da série: o inverno está chegando.
Nas aulas de ciências políticas, Rodrigo estudara a tomada do palácio de inverno pelo povo durante a Revolução Russa. Mas o que vê agora é uma inversão da logica popular revolucionária. Em poucas horas, o palácio onde trabalha é que será tomado pelo inverno. Um longo inverno, representado pelo presidente mais conservador dos últimos 20 anos e por um ministério exclusivamente branco e masculino.
Rodrigo é um socialista utópico, não militante, sem filiação partidária. Quando faz referência mental ao evento histórico do século passado apenas exercita a verve intelectual. Antes de trabalhar com Dilma, foi assistente do ministro da fazenda, Joaquim Levy, de orientação política diametralmente oposta à da presidente. Aos 40 nos de idade, Rodrigo sabe que o exercício do poder dilui as ideologias. Direita e esquerda parecem convergir para o mesmo ponto, sem diferenças. O que sobra é a utopia.
O assessor de imprensa chega ao seu gabinete para revisar o discurso da presidente Dilma. Não deve ter um tom de despedida, mas de até breve. Há um golpe em andamento, não é possível que o país inteiro esteja cego. Rodrigo já esvaziou as gavetas, recolheu os objetos pessoais e limpou o computador. Aguarda a chegada dos ministros de estado e da comitiva presidencial.
Jacques Wagner é o primeiro. Em seguida, chegam Aluisio Mercadante, Kátia Abreu, Edinho Silva, Izabella Teixeira e Eleonora Menicucci, ministra da secretaria de políticas para as mulheres. Aos 71 anos, socióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo, Eleonora dedicará os doze meses seguintes a viagens pelo país para denunciar o ataque do governo Temer às conquistas femininas. No décimo-segundo mês será condenada a indenizar o ator Alexandre Frota por danos morais, após chamá-lo de estuprador.
A juíza que assina a sentença, Juliana Nobre Correa, confunde os objetos em sua decisão. Eleonora se refere a um programa de TV em que o ator confessou ter estuprado uma mulher desacordada. A juíza faz referência a uma visita de Frota ao ministro da educação de Temer, o herdeiro de capitania Mendonça Filho. O golpe é em todas as mulheres, desabafa a ex-ministra, após a condenação.
Quando Dilma entra no palácio, Eleonora já está à sua espera. Os cabelos brancos, levemente ondulados, marcarão as demais cenas do dia. Ela estará ao lado da presidente em todos os momentos. Dilma recebe a intimação do senado, Eleonora está ao seu lado. Dilma discursa no salão do palácio, Eleonora está ao seu lado. Dilma fala para os militantes do lado de fora, Eleonora está ao seu lado.
Os comentaristas de TV preferem destacar o semblante cansado do presidente Lula, em segundo plano, durante o discurso de Dilma na frente do planalto. Mas é a pequena Eleonora que domina o quadro. O olhar altivo, firme, de quem cumpriu sua missão, é um contraste flagrante com o que acontecerá horas depois, no momento em que a horda machista de Temer invadir o lugar.
O espaço de tempo entre a saída de um grupo e a chegada de outro é de poucas horas. Enquanto os auxiliares de manutenção preparam a sala onde Michel Temer tomará posse como presidente interino, José Catalão ajeita o uniforme de garçom para receber os convidados da cerimônia. Foi dele a responsabilidade de servir o último café para a presidente eleita, pouco antes do discurso de despedida.
– Tchau, Catalão. Infelizmente, não posso levar você comigo – disse Dilma.
O copeiro sentiu os olhos marejarem. Lembrou-se da bronca que tomou quando os queijos especiais da dieta ravena, produzidos com 98% de leite, desapareceram da geladeira particular da presidente. Nos finais de tarde, aquela era a única refeição permitida pela dieta, mas ele não reparou no assalto à copa presidencial comandado por uma assessora faminta. Como você deixou isso acontecer, Catalão? Não sabia responder. Espremeu meia dúzia de laranjas e serviu no lugar do queijo. Ganhou um muito obrigado com o canto da boca, sem entusiasmo.
Catalão não entende a lembrança emocionada. Nunca morreu de amores por Dilma. Tampouco tem preferência política ou partidária. Seu ofício é servir o presidente, seja ele quem for. Inclusive já havia servido o próprio vice nos momentos em que assumiu o Planalto, durante as viagens da titular. Não seria diferente agora.
Aos poucos, o terceiro andar vai ficando lotado. Dois outros copeiros carregam bandejas com refrigerantes e café para os visitantes que se acotovelam pelos corredores. Catalão desfere duas ligeiras batidas na porta do gabinete presidencial e entra sem esperar pela resposta. Michel Temer está de pé, sozinho, olhando para o teto. Mandara chamar o garçom, mas não ouviu as batidas. Ao ver o homem negro à sua frente, ele se assusta e recua na direção da janela blindada.
– O que deseja, senhor presidente?
Temer não responde. Durante alguns segundos, esfrega as mãos em movimentos circulares e apenas encara o copeiro. Em seguida, aponta o dedo médio e o indicador para a porta, balançando o punho de baixo para cima, quatro vezes seguidas, rapidamente.
Catalão entende o gesto e se retira do gabinete. Pela televisão do corredor, acompanha a chega dos ministros que tomarão posse. O quadro vai se formando na tela com absoluta nitidez. Na sala onde a cerimônia é realizada estão dezenas de homens brancos, de meia-idade, com ternos caros e gravatas finas.
Nenhuma mulher no novo ministério.
Nenhum negro.
Nenhum representante de minorias.
O inverno está chegando.
*****
Sexta-feira, 13 de maio de 2016.
Primeiro dia de trabalho do governo interino de Michel Temer. O vice-presidente, agora no exercício da presidência da república, caminha pelo gabinete do terceiro andar do palácio. São passos lentos, ritmados, em contraste com o tique nervoso nos lábios que o faz balbuciar palavras inaudíveis. As mãos jogadas para trás amassam o paletó italiano durante a caminhada em volta da mesa de mogno, que está quase vazia. Apenas duas pessoas contemplam a cena, em silêncio. Uma é a chefe de gabinete, Nara de Deus. A outra é o coordenador de infraestrutura, Moreira Franco.
Nara tem 48 anos, veste um tailler azul marinho sobre a camisa social branca e tem os cabelos iluminados por uma tintura parcial em tons de amarelo. Trabalha para Temer desde 1997, quando o chefe se tornou presidente da Câmara dos Deputados, após suceder Inocêncio de Oliveira e Luiz Eduardo Magalhães. Ela também foi assessora dos dois presidentes anteriores, sempre se destacando pelo excelente trânsito entre os parlamentares, que a tratam com uma mistura de intimidade e respeito. Nascida em João Pinheiro, no interior de Minas Gerais, Nara é formada em assistência social, frequenta uma igreja evangélica e é a caçula de 12 irmãos. Nos últimos sete meses, perdeu 33 quilos ao seguir a mesma dieta da presidente eleita Dilma Rousseff. Nos registros do Tribunal Superior Eleitoral, seu nome aparece como administradora da campanha de Temer em 2014.
Moreira Franco tem 71 anos, veste um terno escuro no mesmo tom da gravata e tem os cabelos completamente brancos, como se acabassem de sair de um comercial de sabão em pó. Foi deputado federal por três mandatos, ministro de estado e governador do Rio de Janeiro de 1987 a 1991. Começou e encerrou sua carreira eleitoral na cidade de Niterói, região metropolitana do Rio, onde foi prefeito de 1977 a 1982 e onde disputou sua última eleição, em 2004, quando desistiu de concorrer contra Godofredo Pinto no segundo turno. Nos últimos 12 anos, viveu nas sombras de Temer, ocupando cargos indicados pelo vice durante os governos do PT. Nos registros do PMDB, seu nome aparece como presidente da Fundação Ulysses Guimarães. Nos registros policiais, o nome de seu ex-professor particular de educação física aparece envolvido no sequestro do publicitário Roberto Medina, ocorrido em 1990, quando ainda era governador.
Nara e Moreira esperam o presidente interino sair do transe. Não podem adivinhar os pensamentos dele, mas imaginam palavras em latim ou poemas parnasianos. Até brincam com as idiossincrasias do chefe, rabiscando frases no caderno de rascunhos que ela carrega:
“Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, os escritos permanecem). A famosa epígrafe da carta para Dilma, escrita no final do ano anterior, é lembrada. Nenhum dos dois ri. Apenas aguardam, ainda em silêncio. Respeitam a formalidade, seguem o protocolo.
Temer se aproxima da mesa, olha para a cadeira da presidência e se acomoda lentamente, saboreando o momento. Ao se sentar, apoia os cotovelos no espaldar e junta os dedos das mãos em forma de concha, outro tique nervoso muito conhecido por seus assessores. A primeira pergunta é direcionada à chefe de gabinete.
– Quem está aí fora?
Do lado de fora, nos corredores do palácio, circulam dezenas de deputados e senadores. Entre eles, Lucio Vieira Lima, do PMDB da Bahia, que foi um dos líderes do impeachment na câmara. Lucio procura o gabinete do irmão, Geddel Vieira Lima, novo ministro da secretaria de governo, que fica no quarto andar. Por engano, acaba entrando na sala da assessoria da Casa Civil. O telefone toca. Ele mesmo atende.
– Palácio do Planalto, boa tarde.
Lucio conversa animadamente com o interlocutor. Tira a caneta prateada do bolso, pede um pedaço de papel à recepcionista e anota o recado. Ao desligar, dá uma gargalhada sonora, enchendo o ambiente. Sente-se em casa, está à vontade. O palácio tem novos velhos donos, caciques de longa data na política brasileira, coronéis de castas centenárias. A família Vieira Lima é uma dessas castas.
Não é a primeira vez que Geddel ocupa um ministério. No governo Lula foi titular da pasta da integração nacional entre 2007 e 2010, depois de passar os quatro anos anteriores criticando o primeiro mandato do petista. Entrou na cota do PMDB, partido ao qual se filiou em 1990 e pelo qual se elegeu deputado federal por cinco vezes. Na câmara, foi líder de bancada, presidente da Comissão de Finanças e primeiro secretário da mesa diretora. Em 1993, foi um dos protagonistas do escândalo dos Anões do Orçamento, quando parlamentares foram acusados de manipular emendas, com a participação de empreiteiras, para desvio de verbas.
Baixinho e fanfarrão, Geddel parece uma galo de brigas. Costuma se envolver em discussões pelas redes sociais, xinga adversários com palavrões e é metido a valente. Mas quase sempre perde as batalhas. Em 2001, um vídeo intitulado “Geddel vai às compras”, divulgado pelo presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, mostrou o enriquecimento ilícito de Geddel e sua família. Em 2002, foi chamado de percevejo de gabinete pelo ex-presidente Itamar Franco, então governador de Minas, numa alusão a políticos que buscam se aliar a governos em troca de cargos.
O ministro da secretaria de governo cuida, justamente, da distribuição de cargos nos três escalões da administração federal. É uma tarefa escolhida a dedo por Temer. O baiano Geddel conhece as entranhas do fisiologismo político. Está exultante com a nova função. E, finalmente, recebe a visita do irmão, que agora encontra o gabinete certo. Lúcio abre os braços, solta a casquinada e recebe o carinho de Geddel. Ainda abraçados, trocam sussurros ao pé do ouvido. No último deles, Lúcio quer saber sobre a nomeação de um apadrinhado para a diretoria da Caixa Econômica Federal. Geddel responde em um tom mais alto, entusiasmado, interrompendo o abraço.
– Vou falar agora com o Padilha.
O quarto andar, onde fica o gabinete do novo ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, é o mais frequentado do palácio. Na antessala, a secretária tenta se equilibrar entre os parlamentares que aguardam uma audiência. Todos dizem que o assunto é urgente e querem furar a fila. Ela resiste como pode.
Eliseu Padilha é o ministro mais próximo de Temer. Aos 71 anos, foi prefeito de Tramandaí, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 1993; e deputado federal entre 1995 e 2011, mas perdeu as últimas eleições que disputou. Está ao lado do presidente interino há três décadas, sempre indicado para cargos de importância pelo chefe. Foi ministro dos transportes do governo Fernando Henrique e comandou a secretaria de aviação civil no governo Dilma.
No livro Diários da Presidência (volume 2 – 1997 a 1998), Fernando Henrique descreve suas impressões sobre Padilha e a trupe do PMDB: “O Sérgio Motta (PSDB) foi a uma reunião na casa do Michel Temer, numa festa, e lá o Geddel, líder do PMDB na Câmara, dizia que se o Sérgio quisesse aprovar o FEF [Fundo de Estabilização Fiscal] tinha que nomear logo o ministro. E tem que ser o Eliseu Padilha, uma coisa explícita.”
Diante da pressão de Michel Temer, Fernando Henrique chega a cogitar a nomeação de Padilha para o ministério da justiça, uma das pastas mais importantes do governo: “esse rapaz que o Temer quer [Padilha] na Justiça (…) é o fim desse sistema político corroído”. FHC o nomeia para os transportes, mas logo percebe as intenções do PMDB: “Tive uma reunião com Padilha para discutirmos o orçamento do ministério (…). Ficou bem claro que o PMDB não digo que se condicione, mas se motivará na votação da CPMF (…) se houver uma aprovação neste tributo que garanta recursos ao ministério dos Transportes”.
Eliseu Padilha se irrita quando alguém menciona o livro de Fernando Henrique. O assunto é tabu em qualquer roda de conversa onde ele esteja. Basta o interlocutor fazer menção ao ex-presidente para deixá-lo amuado. Apesar da fala mansa e do jeito polido no tratamento, Padilha tem uma maneira peculiar de demonstrar o aborrecimento: arqueia as duas mãos para cima, juntando os cinco dedos em forma de concha, e ressalta o sotaque gaúcho finalizando cada frase com a mesma palavra, “pronto”. Ao utilizar o vocábulo, dá o sinal de que não quer ser contrariado.
– Pronto, pronto. Vamos agora, então. Estou descendo. – diz Padilha, ao telefone, para Geddel. E ambos se dirigem ao gabinete de Temer para discutir a nomeação dos diretores da Caixa Econômica Federal.
No gabinete presidencial, o café é servido pelo copeiro José da Silva Catalão. Quando Padilha e Geddel chegam, o ministro Moreira e a secretária Nara de Deus estão comendo pão de queijo e biscoitos amanteigados. Temer oferece o café. Padilha recusa. Geddel aceita.
Catalão o serve na xícara de chá. Três colheres de açúcar, duas mexidas de leve e um gole gordo, segurando o pires com a mão esquerda, enquanto eleva a direita, com dedo mindinho a apontar para cima.
– Esse café está gelado, reclama Geddel.
O inverno está chegando, pensa Catalão.
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Terça-feira, 17 de maio de 2016
O presidente interino Michel Temer atende ao pedido do ministro Geddel Vieira Lima e nomeia o diretor da Caixa Econômica indicado pelo irmão.
O ministro Eliseu Padilha publica a nomeação de centenas de outras indicações no diário oficial da união.
O ministro Moreira Franco recebe deputados e senadores para ouvir os nomes indicados para ocupar outros cargos de segundo escalão no governo.
O copeiro José da Silva Catalão é demitido.
O inverno chegou.