UERJ não está normal, não é por acaso e tem algo a dizer
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro não é um projeto acabado, é um processo que vem se reconfigurando junto às mudanças na própria natureza da centralidade do Rio de Janeiro em um projeto de país.
Se é inaugurada em 1950 como Universidade do Distrito Federal (UDF), depois, em 1961, seria rebatizada para Universidade do Estado da Guanabara (UEG) com a saída da capital federal para Brasília, e, pós fusão, recebe seu nome definitivo em 1975. Da unificação de algumas faculdades espalhadas e nem todas públicas, torna-se totalmente pública ainda na primeira década de existência. No centro dos festejos do 1º aniversário do atual Estado do Rio de Janeiro (pós fusão) estava a plena inauguração do campus principal no bairro do Maracanã, Município do Rio de Janeiro. Cabe lembrar que o campus foi assentado pela remoção de camadas populares da “favela do esqueleto”.
Esses fatos ilustram uma necessidade histórica para a universidade: um instrumento de desenvolvimento estadual para requalificar o território a fim de novas formas de integração sócio-espacial junto a um sistema de inovação. Ou seja, buscar a inclusão social através da ciência e tecnologia tanto na escala urbana das cidades que possui suas unidades, bem como por metas de interiorização do desenvolvimento fluminense.
Não é a toa que a UERJ se orgulha de ser protagonista no sistema de cotas, de possuir um grande programa de extensão universitária junto à sociedade e unidades em cidades do interior com projetos de expansão. Já em termos da produtividade e qualidade da pesquisa, inclusive foi considerada a 5ª melhor universidade do Brasil na edição 2016-2017 do University Ranking by Academic Performance (URAP). Cabe assinalar que possui algumas das principais faculdades de referência em suas áreas de saber, como medicina social e direito entre outros exemplos. Já sua área de ensino leva a circulação diária de uma massa de alunos e profissionais que supera a população de alguns municípios.
Esse compromisso com o futuro de uma economia urbana-regional em modernização capaz de gerar intensos processos de mobilidade social se viu ameaçado por descontroles financeiros dos governos responsáveis. Desde a crise de meados dos anos 60 até a crise da segunda metade dos anos 1980 e início dos anos 1990, sempre o surto de progresso se viu sustado por crises que não tinha sua origem no projeto universitário. Por essa razão, a nova constituição estadual promulgada em 1989 garantia a UERJ sua autonomia financeira, com um piso fixado. Questão que sofreu ações de inconstitucionalidade, mantendo seu orçamento vulnerável aos sobressaltos e humor do poder executivo.
Aproveitando-se a brecha legal, o atual governo estadual está sistematicamente desfinanciado a UERJ aponto de prejudicar a contratação de fornecedores e reter de forma dolosa o salário de seus funcionários. Isso levou a ficar impedida de retornar às aulas por meses. O retorno em abril de 2017 foi muito mais no sentido de a comunidade mostrar que desejava manter a UERJ “viva”, apesar de não estar nada normalizado. Todavia, nesse momento que se chega ao final do período, a precarização e sucateamento se tornam tão gritantes que fica evidente a falta de esforços mínimos em mantê-la funcionando pelo governo estadual. Ao contrário, em duas circunstâncias tentou retaliar com ameaças de corte de 30% dos salários (que não se recebe) e com a criação de uma CPI sobre as contas universitárias para retirar o foco da questão central: a redução de repasses já orçados.
No geral, o governo estadual vai buscando ganhar tempo e abusa da retórica que “todos estamos passando por sacrifícios”. Para a opinião pública, ele oculta que a preservação da UERJ é tratada com descaso e força que ela funcione de qualquer maneira, sem desembolsos minimamente planejados para fornecimento de serviços, bolsas para alunos (maioria de baixa renda) e salários. Os efeitos deletérios já levaram ao vestibular 2018 ter a menor procura da história (perda de 54,4 mil candidatos frente ano passado), sem contar muitos alunos que abandonaram os cursos.
Diante disso, cabe questionar até que ponto esse governo não fere o princípio republicano e o princípio da dignidade humana. O princípio republicano remete que a administrações governamentais se guiem pelo interesse público em consonância à soma de outros princípios: legalidade, igualdade, responsabilidade, impessoalidade, moralidade, razoabilidade etc. Por exemplo, isso significa que somente se permite um gestor público fazer aquilo que a lei, antecipadamente, o autorize. Da mesma forma, não devem ser cabíveis favoritismos, perseguições ou desmandos que se desdobram em atos lesivos ao patrimônio público. Ademais, cabe ser respeitada a isonomia dos administrados, não conferindo privilégios ou discriminações de qualquer espécie.
Nesse sentido, a razão pública não deve se guiar pela subjetividade dado que ninguém desempenha funções políticas por direito próprio. Agir de forma contrária seria negar a predominância do sentido da função institucional sob as razões pessoais e a observância ao conjunto de direitos fundamentais, como o princípio da dignidade humana. Esse último, por exemplo, não se dissocia da proteção absoluta e irrestrita dos salários e provimento dos trabalhadores por garantias constitucionais.
Assim, não se trata de desconsiderar a margem de discricionariedade administrativa na execução do orçamento. Trata-se sim de alertar para a produção de arbitrariedades cumulativas que tornam a lei orçamentária quase uma ficção, colocando em risco o patrimônio público que a universidade integra e deixando muitos desamparados do essencial para subsistência (ou seja, direito à vida). Na retórica do governo estadual isso tudo é temporário, devido uma conjuntura ruim. Porém, os mais atentos notam que isso é um legado.
Em disputa política, há um “novo normal” face um alinhamento dessa gestão com a visão política e os grandes interesses por trás do governo federal. Quem luta contra as reformas federais socialmente predatórias deve tomar consciência disso, e se mobilizar também contra uma reforma federativa disfarçada e imposta, fruto da chantagem institucional e da permissividade com seu poder de agiotagem sobre a dívida estadual. Portanto, precisamos enxergar que a questão vai muito além de um problema do Rio com impactos na UERJ. Caso contrário, outros governos estaduais e municipais politicamente fracos assinarão também suas “renúncias” a qualquer programa de desenvolvimento e políticas públicas, como jaz o fluminense.
A solução é federativa e, para isso, é preciso nacionalizar agora a crise no Rio, o que exige uma articulação para politizar contra mais essa reforma. No mais, é urgente uma frente ampla da sociedade organizada para o Rio mostrar qual lugar que lhe cabe na federação brasileira. A UERJ resiste para fazer parte dessa grande história.
Bruno Leonardo Barth Sobral é Economista e Professor da FCE/UERJ
Publicado em Le Monde Diplomatique