Da mesma forma que a palavra “pedalada” praticamente inexistiu nos discursos inflamados pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, há pouco mais de um ano, foram raras, quase nulas, as referências aos termos “mala”, “dinheiro” e “corrupção” na sessão da Câmara que salvou Michel Temer da degola.

Em ambos os episódios, os objetos centrais das acusações não eram determinantes para a decisão da maioria dos deputados. Convicção e apoio, por aqui, é como a tatuagem de amor a Temer feita com henna pelo deputado Wladimir Costa: sai do corpo na primeira esfregada.
 
Há um ano proliferavam loas a Deus, à família, à terra de origem e até a torturadores da ditadura, com elogios desavergonhados à condução do processo pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), agora encarcerado. Desta vez, as razões citadas pelos deputados foram a estabilidade política, as reformas trabalhista e previdenciária e o compromisso com o crescimento econômico, como se o país registrasse agora índices chineses de produção, consumo e emprego e a população estivesse nas ruas clamando para trabalhar em jornadas extenuantes até a véspera da morte.
 
Alguns, como se buscassem uma justificativa perante o eleitor, diziam esperar que Temer fosse julgado ao fim do mandato, e não agora, quando tudo parece voltar aos trilhos. Por “tudo” leia-se a subserviência do Executivo a um Congresso esfomeado por cargos e recursos.

 

Deputado Paulinho Força (SD/SP) com seus colegas deputados durante a votação de 2 de agosto. O deputado foi a favor do relatório que livrou Michel Temer da denúncia de corrupção passiva. (Foto: Alan Marques/Folhapress )

A Folha de S.Paulo, por exemplo, flagrou o secretário de Governo, Antonio Imbassahy, acertando verbas e destravando nomeações em um balcão de negócios informal montado com a votação ainda em andamento para os deputados ainda indecisos. Agraciada, a maioria foi contagiada pelo espírito da defesa da estabilidade política e econômica do governo aprovado por 5% da população, segundo o Ibope.
 
Antes da sessão, muito se falava sobre o eventual constrangimento dos deputados em rejeitar a vontade de 81% dos eleitores que pediam, ainda de acordo com o Ibope, o prosseguimento da denúncia do procurador-geral da República para o Supremo Tribunal Federal.
 
Só para lembrar: a “fantasia” citada pela defesa de Temer era uma mala com R$ 500 mil apreendida pela Polícia Federal com o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), pouco depois de o presidente apontar o aliado como emissário no famoso encontro na calada da noite com Joesley Batista, dono da JBS.

Sem constrangimentos

Mas constrangimento não é exatamente uma palavra-chave entre boa parte dos parlamentares e seus representantes quando o sistema proporcional de votos permite a eleição de alguns à reboque dos candidatos mais votados.
 
As cadeiras da Câmara são distribuídas conforme a votação dos partidos, que muitas vezes constroem uma bancada inteira com o desempenho de apenas um puxador de votos, como o palhaço Tiririca (SP). Além disso, sem um distrito definido, os votos dos deputados são distribuídos e pulverizados por todo o estado, ampliando o distanciamento com o eleitor.
 
Em outras palavras, muitos ali não têm sequer um reduto eleitoral para chamar de seu.
 
Constrangimento, se houve, foi ensaiado apenas por quem tem alguma pretensão eleitoral em 2018, sobretudo a cargos majoritários. Jair Bolsonaro, por exemplo, votou pelo prosseguimento da denúncia, embora tenha poupado o presidente das ofensas distribuídas a Dilma, torturada durante a ditadura, na sessão do impeachment em 2016.
 

 
O PT, que ainda sonha em lançar Lula presidente, também votou em peso contra Temer, assim como os partidos mais identificados com o campo progressista, como o PDT, do virtual presidenciável Ciro Gomes, e uma ala do PSB, que se opõem às reformas.
 
No PSDB as ambições eleitorais também explicam o racha (foram 21 votos pró-denúncia e 22 contra). A bancada inteira São Paulo, reduto do governador Geraldo Alckmin, se posicionou contra Temer. Outros, sobretudo de Minas, estado do alvejado Aécio Neves, votaram em peso a favor do governo. Desde que foi afastado do cargo e salvo pelos pares no Senadocom o esforço do PMDB, o ex-governador mineiro tem ajudado uma mão a sujar a outra no Congresso.
 
De toda forma, Temer, oriundo da Câmara e produto de uma maioria parlamentar, jogava em casa durante a sessão, mas exibiu fragilidades com o placar – no fim das contas, apertado para quem precisa de dois terços do Congresso para emplacar os projetos mais complexos. Foram 263 votos favoráveis a ele contra 227.
 

 

 

Ganhou, como previsto, a sobrevida, e a partir de agora será o boi de piranha perfeito para quem pretende atravessar o rio a nado até 2018. Quem melhor do que um presidente impopular para emplacar reformas indefensáveis em propaganda de campanha?
 
Até agora nenhum pré-candidato a presidente, Lula inclusive, se dispôs a alterar tudo o que tem sido feito pelo trator governista.
 
Maquiavel dizia que um bom governante deveria promover a maldade de uma vez e o bem, aos poucos. Temer subverte o conselho porque não é o Príncipe, e sim a esteira de quem vislumbra a sobrevivência política até 2018. Por isso anunciou, pouco depois da sessão, que vai acelerar as reformas até o fim do mandato novamente concedido a ele pelos parlamentares.
 

 
A fatura ainda está a caminho, e foi construída no mesmo balcão de negócios que até pouco tempo levava cidadãos indignados às ruas armados de panelas e camisas da CBF. O interesse, ao que parece, era varrer a corrupção do país.
 
“Acabou a boquinha”, diziam os deputados “atentos ao clamor popular” há pouco mais de um ano. Dessa vez o clamor, expresso nas pesquisas de opinião, foi ignorado. A goela das verbas liberadas para Temer passar com seu trator mostra que são necessários muitos recursos para se construir um remendo de país. O principal deles, por aqui, é a hipocrisia.

Publicado em The Intercept Brasil