01 – Uma “era” contra os trabalhadores
O ano de 1993 ficou marcado por um triste acontecimento para o país: a nomeação de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o cargo de ministro da Fazenda. O presidente, Itamar Franco, estava sob pressão da direita, que exigia a aplicação do programa econômico do ex-presidente Collor. FHC caiu como uma luva. Já em 1991, quando a crise batia à porta do Palácio do Planalto, um setor do tucanato capitaneado por ele defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra foi combatida pelo senador Mário Covas — o que não impediu, mais tarde, que FHC fosse o principal executor de uma espécie de golpe branco contra o presidente Itamar Franco ao comandar o processo de transição da economia para a ”estabilidade”.
Sua posse foi saudada por entidades patronais com expressões como “bela tacada de Itamar Franco”, “craque nota dez” e “arauto da modernidade”. Até o secretário de Estado norte-americano, Warrem Cristopher, ligou para parabenizar o novo ministro da Fazenda. FHC chegou dizendo que “precisamos botar a casa em ordem”. “Isso não significa intervenção no mercado”, ressaltou. Estava dada a senha. Ele afirmou que não reduziria os juros, que não alteraria o Programa Nacional de Desestatização (FHC manteve o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social — BNDES — como comitê de administração das privatizações até os últimos dias de seu governo, em 31 de dezembro de 2002) herdado de Collor e que lutaria pela “estabilidade”. “Nossa prioridade é o combate à inflação, sem matar o povo de fome”, declarou.
FHC tomou posse prometendo “ordenar as finanças públicas e controlar o endividamento de Estados e municípios”. Eram as mesmas palavras de Collor — só que num tom mais ameno. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia basicamente em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. Ele agregou em sua pasta figuras notórias do conservadorismo econômico brasileiro — classificadas por ele como “notáveis” — e promoveu um festival de arbitrariedades assim que a poeira da posse abaixou.
Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização”). Era o embrião do superávit primário. Depois o nome do mecanismo passou a ser Fundo de Estabilização Fiscal e hoje se chama Desvinculação das Receitas da União (DRU), a reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV).
FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. Pela primeira vez, desde a revolução comandada por Getúlio Vargas em 1930, o projeto da direita no Brasil começava a ter sujeito, predicado e objeto direto. Era a hora de aproveitar o vácuo deixado pela reviravolta no cenário mundial (no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 a experiência socialista no Leste Europeu se esfarinhou e o projeto social-democrata, na Europa Ocidental, deu seus primeiros sinais de fraqueza). E, para ajudar, existiam os trilhos políticos adequados, construídos pelo regime militar. Aí foi só encaixar a figura de FHC, cuidadosamente esculpida, para assumir a direção daquele processo.
A reação dos trabalhadores não tardou. Em fevereiro de 1994, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) chamou outras centrais sindicais para preparar uma greve geral. As perdas, com a conversão dos salários pela média da URV, chegavam a 36%. Enquanto isso, FHC dizia que não precisava de regras para a conversão dos preços porque o próprio mercado se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar pelo país. No dia 1º de março, a CUT definiu um plano de lutas contra o arrocho salarial. Em conjunto com as CGTs e a Força Sindical, os cutistas programaram a data de 16 de março como Dia Nacional de Lutas Contra o Arrocho da URV.
No dia 23 de março, os protestos se repetiram. Greves, carreatas e bloqueio de rodovias deram o tom das manifestações. Por todo o país, o panorama foi o mesmo, com dezenas de categorias realizando greves. Em Brasília, mais de 3 mil policiais cercaram o Ministério da Fazenda para proteger FHC da fúria popular. Os protestos continuaram em atividades de campanhas salariais das categorias com data base em maio. Aquelas manifestações mostraram o tamanho do comprometimento da “grande imprensa” com o projeto de FHC. Os programas de rádio convidavam parlamentares de direita, palpiteiros desqualificados e “especialistas em direito trabalhista” para engrossar a baixaria. Os jornais circularam com manchetes agressivas e editoriais que cheiravam a fascismo. Foi um massacre.
FHC lançara o Plano Real e deixou o Ministério da Fazenda para oficializar sua candidatura à Presidência da República. O trator neoliberal não poupava ninguém. Nem o presidente da República, Itamar Franco, que ousou opinar sobre algumas medidas anunciadas pela equipe econômica. A “grande imprensa” o atacou violentamente quando ele disse que o Congresso Nacional deveria regulamentar o artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros — antevendo o estrago que a turma de FHC promoveria.
O presidente, no entanto, já era quase uma voz isolada no país. Mas logo se veria que sua preocupação tinha razão de ser — no primeiro dia útil do Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando aos 12%. Desde então, nunca mais o país viu juros abaixo deste patamar. Um ano depois, já estava em 60%. O próximo passo seria a investida contra o Estado — abrangendo a União, os Estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando.
A radicalização da direita provocava a resposta da esquerda, igualmente radicalizada. No dia 25 de agosto de 1994, a CUT convocou uma “Marcha por Emprego e Salário”, que mobilizou os trabalhadores em todo o país. As campanhas salariais do segundo semestre de 1994 foram marcadas por greves e protestos intensos. No dia 12 de setembro, os metalúrgicos do ABC paulista entraram em greve e foram violentamente atacados pela “grande imprensa” e por FHC, que os acusavam de estar a serviço da candidatura Lula à Presidência da República. Aproximavam-se a eleições presidenciais.
O ataque da mídia a tudo que parecesse progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível. Os ataques a Lula eram desonestos. O caso mais escabroso ocorreu com seu vice, José Paulo Bisol, acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras. A ”denúncia”, lançada pelo jornal Zero Hora de Porto Alegre, não foi provada e a publicação teve de pagar indenização de 1,191 milhão de reais ao ex-candidato a vice de Lula. Mas o tropeço de Rubens Ricupero, que em uma conversa informal — acidentalmente divulgada —afirmou que não tinha escrúpulos, não representou qualquer arranhão à campanha da direita. A “grande imprensa” viu enorme gravidade no primeiro caso e nenhuma no segundo.
Naquele ano, os conservadores novamente tentaram fazer, de uma vez só, o que FHC faria com dificuldade e autoritarismo no seu governo: a revisão constitucional. Eles queriam tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição de 1988. Manipularam o Artigo 3° do capítulo das “Disposições Transitórias”, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse mudado. A direita e sua poderosa mídia fizeram de tudo para dissociar um Artigo do outro. A ditadura do pensamento único neoliberal mostrava a sua força, mas nesse caso não obteve sucesso. (O assunto referia-se ao plebiscito, realizado em 1993, vencido pelo presidencialismo. Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional.) Os trabalhadores remavam contra uma forte maré e, às vezes, obtinham sucesso.
A direita orquestrava uma ofensiva para sufocar o movimento sindical e eliminar uma das últimas barreiras ao seu projeto de governo. Na ocasião, o então candidato a governador de Pernambuco, Miguel Arraes (PSB), caracterizou o governo Collor e a candidatura FHC como a continuidade do projeto da ditadura militar. Os acontecimentos lhe davam razão.
Com toda essa mobilização conservadora, o neoliberalismo venceu as eleições — ganhadas por FHC já no primeiro turno. O presidente eleito começou a trabalhar freneticamente para montar o seu ministério, formado por uma legião de ministros egressos do governo Collor. Quando FHC apresentou os nomes dos componentes do seu governo, ele fez uma menção especial ao ministro do Trabalho, Paulo de Tarso Paiva. ”Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho do país”, disse o presidente. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade, ao defender, na sede da central Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem ”disponíveis para negociação”.
Para a direita, FHC fez bonito em seus primeiros dias como presidente da República. Até as ruínas de Collor se ergueram para elogiar o novo chefe do projeto neoliberal. “A capacidade dele de evoluir muito em tão pouco tempo me fez admirá-lo. Há uma absoluta coerência das medidas dele com o que foi preconizado pelo meu governo, como as privatizações e as reformas — que teriam sido realizadas caso não houvesse o impeachment”, disse o ex-presidente.
Na outra margem do rio, os trabalhadores tentavam se organizar para enfrentar a crise. A CUT montou um quartel-general em Brasília, com campanhas no rádio e na TV e uma equipe de 30 funcionários, para fazer o corpo-a-corpo com os parlamentares. No dia 5 de abril de 1995, houve manifestações em todo o país contra FHC e suas “reformas” constitucionais. O governo havia editado mais um pacote de medidas para escorar o Plano Real e descarregar mais um pouco do peso da crise nas costas dos trabalhadores. “O governo precisa conter o crescimento econômico para evitar a pressão inflacionária”, disse o ministro do Planejamento, José Serra.
A Previdência Social era o principal alvo. No dia 5 de abril de 1995, a CUT promoveu mais uma manifestação em defesa dos direitos dos trabalhadores. Reagindo às críticas da oposição, FHC disse: “Vamos calar a boca de gente que pega papel e não sabe o que está escrito nele. O povo não é bobo. Bobos são eles. E quem nasce bobo morre bobo.” O ministro da Previdência, Reinold Stepahnes, afirmou que aceitaria uma audiência nas contas da Previdência, “desde que seja feita por alfabetizados, e não pelas lideranças da CUT”. Acusado pelo colunista Jânio de Freitas, do jornal Folha de S. Paulo, de ter se aposentado com apenas 22 anos de serviços, o ministro se saiu com essa: “Temos que discutir o futuro do país como um todo e não casos isolados.” No dia 27 do mesmo mês, outra manifestação convocada pela CUT protestou contra a “reforma” da Previdência.
A ofensiva conservadora era tão ostensiva que FHC não hesitou em fazer uma categoria experimentar o gosto de chumbo tão comum aos trabalhadores enquanto vigorou o regime militar: os petroleiros. Em todo o país, o movimento sindical se organizava para prestar solidariedade àquela categoria, vítima da truculência neoliberal. A ocupação militar das refinarias pelo Exército, a mando de FHC, chocou o país. Os petroleiros lutavam para receber um cheque emitido pelo governo, que o novo presidente da República tornara sem fundo. Era um protocolo assinado pela direção da Petrobras e a Federação Única dos Petroleiros (FUP), com o aval do ex-presidente Itamar Franco, sobre questões trabalhistas.
O calote de FHC levou a categoria à greve. Julgada “abusiva” pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. Os petroleiros ficaram entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco da repressão. Optaram por resistir e receberam a solidariedade de todos os que conheciam a verdade dos fatos e defendiam uma atitude honesta diante dos acordos assinados entre as partes. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram, em todo o país, contra a ocupação militar das refinarias.
A revista Veja desvendou como FHC havia “vencido” os petroleiros. “O governo mostrou firmeza, coerência e até competência para acabar com a greve. Brasília montou um esquema inédito de resistência. Em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir grevistas nas principais refinarias”, disse a publicação. As importações custaram à Petrobras 700 milhões de dólares. Tudo isso gastando 20 milhões de reais por dia, quando o cumprimento do acordo com os petroleiros representava 14 milhões de reais. O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria aqueles que divergiam programaticamente de seu governo. Ou seja: os trabalhadores.