05 – A “era Vargas” e a “era Lula”
Quando Getúlio Vargas chegou ao Palácio do Catete, em 1930, num trem militar vindo do Estado do Rio Grande do Sul, o país inaugurou uma nova era. O líder da revolução vestia um uniforme cáqui, com um revólver metido na cintura, e representava, até na forma de vestir, os tenentes rebeldes que promoveram dois levantes e uma marcha histórica — a Coluna Prestes — na década de 1920 contra a República Velha. Até então, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) revezavam-se no poder.
O país era essencialmente rural — apenas 10% do Produto Interno Bruto (PIB) era industrial. Quando o esquife de Vargas deixou o Catete, 24 anos mais tarde — ele foi deposto por um golpe militar em 1945 e voltou à Presidência da República pelo voto popular em 1950 —, o Brasil não era nem sombra daquele país esculpido pelas oligarquias paulista e mineira. Em 1955, a produção industrial já representava 30% do PIB.
Uma das primeiras providências de Vargas foi alterar o papel do Estado. Antes, o governo interferia na economia apenas para garantir a boa vida dos oligarcas. O Estado comprava o café para preservar os fazendeiros de eventuais problemas na produção e da oscilação de preços no exterior. A moeda nacional flutuava ao sabor dos interesses dos fazendeiros — quando o preço caía no mercado internacional, o governo desvalorizava o dinheiro brasileiro e assim garantia os ganhos dos cafeicultores.
O novo presidente optou pela intervenção do Estado na economia para promover o desenvolvimento industrial. De 1932 a 1937, o PIB cresceu, em média, 7% ao ano. O Estado construiu empresas estratégicas para a economia nacional, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, e criou uma vasta legislação trabalhista — a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — e social. No seu segundo governo, Vargas criou a Petrobras — iniciativa que resultou de um vigoroso movimento patriótico — e fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).
As turbulências políticas do primeiro governo Vargas decorreram das contradições que envolviam o país. Os levantes dos tenentes e a Coluna Prestes tinham como objetivo único derrotar as oligarquias da República Velha. Eles não formaram um partido político e deram seqüência às suas carreiras políticas por caminhos distintos.
De um lado, o movimento operário avançava e sua liderança — o Partido Comunista do Brasil — via a Revolução de 1930 como algo que deveria ser substituído por um governo “apoiado em sovietes de operários e camponeses”, avaliação que evoluiu para o levante revolucionário de 1935 liderado pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). De outro, a oligarquia paulista lançou a campanha pela constitucionalização do país e promoveu a guerra civil de 1932. Dois anos depois, uma assembleia eleita pelo povo promulgou a nova Constituição. Como resposta ao levante de 1935, Vargas desencadeou a repressão e, mais tarde — em 1937 —, instaurou a ditadura do Estado Novo.
Os tenentes se dividiram, basicamente, entre os que apoiaram Vargas e os que participaram do levante de 1935. A ditadura investiu com fúria contra os comunistas até a hábil política do então PCB de propor a “união nacional” contra o nazi-fascismo — palavra de ordem que logo seria associada à defesa da democracia. O governo se dividiu.
De um lado, apoiando o Eixo Roma-Berlin, ficaram o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o sucessor de Vargas que presidiu um governo marcado pelo reacionarismo — o registro do PCB e os comunistas eleitos em 1945/46/47 foram cassados em sua gestão —, e o feroz chefe do aparelho repressivo, Filinto Müler. De outro, ficaram o presidente e o ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha. Com forte apoio dos comunistas, o governo criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que foi combater o nazi-fascismo na Europa. Essas posturas democráticas de Vargas e a vitória dos aliados fizeram do presidente um campeão de popularidade.
Quando ele voltou ao governo, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria e respirava os ares reacionários do governo Dutra — aliado incondicional do imperialismo norte-americano. Vargas fez um governo dúbio: ao mesmo tempo em que cedeu aos setores golpistas das Forças Armadas, porta-vozes dos interesses militares norte-americanos, com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, amainou a repressão política.
O governo também desenvolveu uma política nacional de impulso à industrialização, enfrentou a crise econômica deixada por Dutra e procurou atrair o apoio dos trabalhadores. O ministro do Trabalho, João Goulart, propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, sofreu um violento ataque de militares reacionários e caiu — mas Vargas bancou a proposta e concedeu o reajuste. O governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investir no país.
Violentamente atacado pela direita, Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou a morte do presidente, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais. Os comportamentos do povo e da elite naquele episódio iriam marcar a trajetória do país.
De alguma forma, até o golpe militar de 1964, depois de vários atentados contra a ordem democrática perpetrados pelos militares reacionários, tínhamos uma unidade costurando o país. O “milagre econômico” representou uma afluência excludente — a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros foi dada apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico. Encerrado o período militar, o desafio sempre foi o de operar um novo ciclo de crescimento com outras premissas — expectativa que ainda não se transformou em realidade.
A primeira tentativa, nesse sentido, ocorreu quando Itamar Franco assumiu a Presidência da República em substituição a Fernando Collor de Mello. Apenas para ilustrar a reação da elite golpista contra ele, recordo aqui a resposta da revista Veja à decisão do presidente de liberar verbas para uma pesquisa da Embrapa sobre melhoramento genético do gado brasileiro em tempos de “ajuste fiscal”: “As vacas do Itamar”, estampou a revista, tentando fazer um trocadilho infame.
Itamar, a rigor, sofreu um golpe branco — começaram a dizer que, já que ele foi eleito junto com Collor, deveria assumir o seu programa de governo. Essa pressão resultou no Plano Real e na nefasta “era FHC”. Neste período, a imprensa grande só fez esconder a informação, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica neoliberal — em um mundo róseo.
Chegamos, enfim, à “era Lula”. “A mudança para a esquerda na América do Sul é uma reação ao fracasso, dramaticamente evidente em alguns casos, da política econômica de livre mercado imposta pelos Estados Unidos e pelas agências internacionais sob sua influência, na era do chamado Consenso de Washington. Sem esse fracasso, é quase certo que Lula não teria sido eleito”, disse o historiador marxista Eric Hobsbawm em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Era um diagnóstico perfeito, que dimensionava devidamente o peso da responsabilidade que repousava sobre o governo brasileiro.