08 – Unidade sindical para enfrentar o golpe
George Wilhelm Friedrich Hegel certa vez disse com ironia que só os inteiramente ignorantes raciocinam de modo abstrato. Ultrapassar esta categoria de raciocínio é um desafio que persiste em pleno século XXI. E o movimento sindical talvez seja o setor da sociedade que mais precisa debater este tema. Isso porque a abordagem da realidade social não pode se dar sem uma formulação conceitual — isto é, sem uma teoria da vida social, com as suas categorias básicas, os seus pontos-de-vista, os seus princípios e processos metodológicos daí decorrentes. Mesmo o defensor mais empírico da luta social já parte para o trabalho com um estoque de conceitos e julgamentos — geralmente errados —, ainda que somente para justificar o seu empirismo.
O movimento sindical é um terreno fértil para o empirismo. O problema é que isso leva ao pragmatismo. E o pragmatismo gera o caudilhismo, o mandonismo. Em lugar da atitude positiva, de enfrentamento dos problemas e da garimpagem de soluções, apareceram o autoritarismo e a procrastinação. Essa condição exalta os valores da competitividade, do individualismo e da concorrência entre os próprios trabalhadores. É um instrumento para se pisar em cabeças, não assumir falhas e jogar erros nas costas de quem está em posição mais frágil. Enfim: são valores opostos às concepções classistas e se contrapõem à solidariedade, à coletividade e à perspectiva transformadora da sociedade.
O pragmatismo apenas se aproxima da solução dos problemas, sem atingi-los. Fica a meio caminho. Não serve sequer à unidade efetiva do movimento sindical. Um pragmático vai defender a unidade em torno de quê? Para qual objetivo? Um pragmático pode até defender a necessidade de instrumentos teóricos para o estudo da realidade social. Mas se atém à subordinação da luta a sistemas apriorísticos ou à fixação das categorias teóricas em moldes imutáveis. O conhecimento atinge essências sempre mais profundas e exige a constante incorporação de novas categorias. A meta estratégica é a mudança da estrutura social.
Se recorrermos à história da ciência social no Brasil, veremos que foram grandes os esforços para transformar a estrutura de classes existente em nosso país. Esforços guiados pelas ideias de superação das contradições sociais — o que significa luta pelo poder. O sindicalismo classista, portanto, precisa sempre ascender a planos teóricos mais elevados, onde se possa pôr constantemente em xeque a estrutura da sociedade. Não serve, para este pensamento, um aparelho conceitual de tipo imediatista, que resulta, no fim das contas, em mais fragmentação da vida social ao focalizar isoladamente aspectos de curto alcance. A unidade só serve de fato aos trabalhadores se for fundada na compreensão das categorias e princípios metodológicos para o conhecimento da vida social.
A questão é aprender a manejar este instrumental na análise concreta da realidade concreta e assim criar as condições para a formulação de propostas factíveis. Aqui está a chave para a disputa típica entre capital e trabalho no Brasil de hoje. Nesta disputa, é necessário abrir espaços para a participação dos trabalhadores de maneira efetiva, não apenas retórica. A realidade brasileira exige das organizações sindicais uma nova postura, que incorpore a contribuição das bases, que estimule o debate franco — fazendo críticas responsáveis e autocríticas sinceras.
Essas organizações, em sua maioria, ainda são verticalizadas — concentram as decisões nas cúpulas e desestimulam a colaboração das bases. Em muitos casos, suas ações não sensibilizam o conjunto dos trabalhadores e inibem a formação do pensamento coletivo, gerando um ambiente de indiferença e uma cultura de comportamentos pragmáticos e de performances recolhidas. Um sindicalismo que enfrente este desafio deve ter sempre presente a determinação de romper o círculo do pragmatismo e do corporativismo.
Vivemos ainda a época dos impérios e do expansionismo, de relações entre países baseadas numa lógica metrópole-colônia, de guerras por mercados. O Brasil, ao assentar a dinâmica da sua economia no mercado financeiro internacional, se transformou numa das mais evidentes vítimas deste desbalanceamento de forças — que encrenca a vida de muitos para beneficiar a de poucos. A solução deste problema passa mais pelo conteúdo do que pela forma da dinâmica social.
O fato de a teoria fundamental das forças que expressam a luta por mudanças estruturais em nossa sociedade ter sido duramente atingida pelo turbilhão pós-Muro de Berlim não é algo inexplicável. Essa derrota em larga escala decorre fundamentalmente das deficiências no plano teórico. Portanto, só a reanimação teórica e prática do movimento transformador pode dar um sentido real de mudanças para a nova correlação de forças políticas e sociais que vai se formando no país.
Em grande medida, nosso atraso econômico e social se deve ao fato de a maioria dos governos da República ter excluído os trabalhadores de seus projetos. Mesmo no período em que o país deu um passo importante para o seu desenvolvimento, depois da Revolução de 1930, o governo tentou realizar a ”revolução burguesa sem o proletariado” — segundo Nelson Werneck Sodré. O pano de fundo do problema tem coloração liberal. E um dos pré-requisitos para esse modelo é o de garantir força de trabalho barata — incluindo nesse conceito, além do achatamento salarial, o enfraquecimento dos sindicatos e a ”flexibilização” das leis trabalhistas.
O primeiro passo para que os trabalhadores façam com que os ventos soprem a favor de novos rumos é, sem dúvida, se organizar. Só assim haverá força suficiente para uma pressão por mudanças. Os trabalhadores, hoje, mais do que nunca, precisam desenvolver estudos de primeira, argumentos sólidos e linhas de raciocínio claras. Não há, portanto, por que não insistir na elaboração de uma ampla e unitária atuação do movimento sindical.
É enorme a responsabilidade do movimento sindical neste momento. Isolar e combater o golpismo é uma ação que requer arte e engenhosidade. A extensão que a crise social adquiriu transformou a luta pelo poder no Brasil em impasses políticos. Esse quadro requer alternativas realistas, uma unidade capaz de mobilizar a esperança que levará o país à mudança de rumo. Em política, mudança implica busca pela hegemonia no processo de governar.
Mas a mobilização popular em torno de um grande projeto como este, num processo de prazo longo, só pode se desenvolver num ambiente de unidade verdadeira. Por isso, o debate sobre essa questão é tão premente. Qualquer proposta de solução da crise fora desse ambiente seria aventureirismo inconsequente. É, sem dúvida, uma engenharia de grande envergadura, que exige flexibilidade tática para fazer os objetivos encadear sempre na perspectiva da solução que preconizamos, acompanhando a vida e suas nuances.
Não se está aqui defendendo um clube em que imperam discussões e debates intermináveis. Está se dizendo que devemos buscar, já, um patamar mínimo de unidade de ação de forma sólida — não apenas retórica. Não atingiremos esse patamar com comportamentos imediatistas, corporativistas e economicistas. Para enfrentar essas contradições com eficiência, a realidade exige desprendimento, serenidade e uma boa dose de compreensão política.