09 – A ditadura e o jogo pesado da “reforma” trabalhista
Em seu discurso na primeira posse na Presidência da República, em janeiro de 1995, Fernando Henrique Cardoso (FHC) prometeu acabar com a “era Vargas”. E, ao longo do seu reinado, fez do Brasil um dos recordistas mundiais de desregulamentação trabalhista. Esse processo de sabotagem dos direitos dos trabalhadores é, a rigor, um componente básico do modelo econômico que vigora predominantemente no Brasil desde o golpe militar de 1964. Quando os golpistas tomaram posse do país, uma das primeiras medidas adotadas foi a de pôr um ponto final nas “reformas de base” e alterar radicalmente as relações entre capital e trabalho. Além da violência aberta contra os trabalhadores, a ditadura militar operou mudanças profundas na legislação trabalhista por meio de decretos leis e atos institucionais.
O corte rompeu uma linha que vinha se condensando desde o início dos anos 1950, quando o segundo governo do presidente Getúlio Vargas definiu claramente duas estratégias para o país — o desenvolvimento independente, com distribuição de renda, e a dependência de capitais estrangeiros, que satisfaziam os monopólios brasileiros. Essa dubiedade marcou os governos seguintes e se rompeu com o golpe de 1964, depois de a balança começar a pender para o lado das forças nacionalistas e populares no início daquela década.
A brusca e forçada mudança na correlação de forças entre capital e trabalho obedecia, ainda, a regra do capital monopolista internacional e seu centro dominante — os Estados Unidos —, de expandir o modelo brasileiro para outros países vizinhos. As ditaduras fascistas insufladas pelos norte-americanos logo se espalharam pela América Latina. Falando ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião, o embaixador de Washington no Brasil, Lincoln Gordon, disse que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coréia”.
A ideia dos que passaram a comandar esse modelo é a mesma, em essência, que vigora hoje. Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, os mais destacados formuladores daquela política econômica, publicaram, em 1974, um livro chamado A Nova economia brasileira no qual disseram que os objetivos básicos dos golpistas eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo. Qualquer semelhança com a política econômica dos golpistas de 2016 não é mera coincidência.
É que o pano de fundo do problema tem a mesma coloração ideológica. E um dos pré-requisitos para esse modelo é o de garantir força de trabalho barata — incluindo nesse conceito, além do achatamento salarial, o enfraquecimento dos sindicatos e a “flexibilização” das leis trabalhistas. Os dois ícones do liberalismo brasileiro colocaram o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram.
O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista — que tornou-se popular anos depois quando Delfim Netto afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. Na economia, a linguagem cifrada em geral tem o objetivo de ofuscar as verdadeiras intenções de uma determinada política. Ao definir os aumentos salariais como uma das principais causas da inflação, coerentemente os gestores desse modelo estabelecem uma austera política salarial — como se viu ao longo desse tempo principalmente com o salário mínimo — e uma total desproteção do vínculo empregatício.
A ordem estabelecida em 1964 também inaugurou a gestão econômica do país por uma tecnocracia privada, que representa os negócios privados dentro do governo. (Essa tendência acentuou-se na “era FHC”.) Já em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão anti-social.”
Muita coisa mudou, evidentemente. A Guerra Fria acabou, e com ela a importante influência do campo socialista em todo o mundo, e o Estado de Bem-Estar Social como elemento que balanceava as relações entre capital e trabalho entrou em crise. O mundo hoje, enfim, é rasgadamente distinto daquele forjado 50 anos atrás. O jogo unilateral, que faz os recursos fluírem em mão única dos países periféricos para os países centrais, voltou com força. Vivemos a época do império expansionista que emergiu com força da Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos — reinando absoluto.
Mais do que nunca, as relações baseadas numa lógica metrópole-colônia, de guerras por interesses econômicos e de amplo desbalanceamento de forças, vigoram em escala quase planetária. E, consequentemente, o padrão de vida dos trabalhadores desaba em todo o mundo. E isso só pode significar uma coisa: as relações econômicas entre países ricos e pobres, entre empresas e governos, entre capital e trabalho voltaram ao processo de verticalização dominante até o início do século XX. O governo Lula herdou os efeitos condensados de toda essa trajetória nacional e internacional. E, de quebra, ganhou uma bomba-relógio: o acordo com o FMI centrado num rígido superávit primário que corta despesas em lugar de aumentar a receita.