13 – Lições da agenda das “reformas” neoliberais
A agenda das “reformas” que o primeiro governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva herdou do ciclo neoliberal constituiu uma das discussões mais inflamadas sobre os rumos que o Brasil deveria tomar. Apesar de priorizadas pela equipe econômica comandada pelo ministro da Fazenda Antônio Palocci, uma pesquisa do Ibope para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) indicou que as “reformas” tinham pouca importância. A “reforma” da Previdência só foi apontada por 5% dos consultados como uma das ações que deveriam ser priorizadas pelo governo. A reforma tributária teve desempenho ainda pior, tendo sido citada por apenas 3% das duas mil pessoas ouvidas. O melhor resultado ficou por conta da “reforma” trabalhista, apontada por 8% dos entrevistados como uma das ações a serem priorizadas. Eram percentuais bem abaixo dos 48% registrados para as ações de redução do desemprego, citados pelos entrevistados como uma das medidas de maior urgência a serem adotadas.
Aos pouco essa agenda foi superada, mas deixou lições importantes. Era uma questão que precisava ser dividida em duas: as prerrogativas do Estado e do governo. O Estado não é, necessariamente — ou não deveria ter sido —, o principal empecilho para a consecução do programa de governo eleito em 2002. Quando se transformou em um, o problema passou a ser político e precisa ser analisado nesse contexto.
Já o governo é a concentração de determinadas forças políticas inseridas na ordem institucional e não constitui — ou não deveria constituir — um problema porque ele é a expressão de um programa debatido e aprovado pela maioria da sociedade. Seu êxito depende de como essa maioria encara os passos que são dados pelo governo no rumo proposto. E isso depende de como se comportam as forças políticas que estão representadas em dois níveis simultâneos, cada qual com sua especificidade: no governo central e no Congresso Nacional.
Analisemos, em primeiro lugar, o Estado brasileiro de hoje. Há, basicamente, duas maneiras de se encarar essa questão. A primeira diz respeito ao seu caráter. É possível que boa parte de nossos problemas se deva ao fato de as classes dominantes nunca ter investido em um caminho definido de desenvolvimento — salvo em curtos períodos de nossa história. Poucas vezes instituímos uma economia com algum planejamento e um Estado com alguns traços de bem-estar social. E também tivemos poucos governos com força política para agir como árbitro da partida entre capital e trabalho.
No Brasil, a tradição é a de patrões e trabalhadores se reunirem em clubes distintos e só se conversarem em situação de conflito, na maioria das vezes por meio de advogados. O Estado sempre foi um provedor de benesses particulares e um protetor de interesses econômicos privados. E, não raro, agiu como um meio para socializar prejuízos. Ou seja: um Estado sem condições de responder às necessidades de um projeto de nação e desinteressado em adotar mudanças que os novos tempos impõem. Os direitos democráticos e individuais, por exemplo, são constantemente violados. A cidadania e a valorização do ser humano ainda são conceitos secundários.
A outra maneira diz respeito à contradição entre essa situação e a conquista de direitos ao longo de mais de um século de lutas populares. Esses direitos são o resultado de batalhas travadas quase sempre de forma radicalizada — um contraponto ao autoritarismo da elite brasileira. O Brasil é o único país que manteve a escravidão até as barbas do século XX. Nenhum outro país também se orientou pelos interesses de suas oligarquias rurais até depois da Segunda Guerra Mundial.
O resultado dessa letargia nacional está impregnado no Estado. Não é por outro motivo que o jeito como a elite brasileira reage às ações sociais expressa rancor e reação violenta, ressentida. O Estado, para essa visão, deve ignorar seus mecanismos de mediação democrática e recorrer à repressão. Ou seja: pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o restante do povo se veem e se relacionam.
Analisemos, então, o governo desse Estado. Ao assumir o poder em 2002, as forças políticas da coalizão centro-esquerda colocaram ao país a questão: o governo mudava o Estado ou o Estado mudava o governo. (Demorou, mas prevaleceu, com o golpe de 2016, a segunda hipótese.) A direita continuou abusando do seu poder inchado e sabotando a nossa frágil teia social, até golpear, novamente, a face democrática do Estado, com seus tradicionais meios aéticos.
Só se pode falar efetivamente em projeto de sociedade se essa distinção entre esses dois campos estiver clara. Essa é a alavanca para colocar os trabalhadores no centro da arena econômica e política. A luta para abrir uma perspectiva nova ao país, para resolver os problemas da imensa maioria da população e trazê-la para século XXI, pressupõe mobilizar essa grande reserva humana em torno de um projeto.
Aqui está a grande tarefa das principais forças políticas que se opõe ao golpe: unir uma massa popular com força política e social necessária para concretizar as transformações desejadas. Evidentemente, isso não é algo que possa ser feito de forma imediata, a prazos curtos. São tarefas complexas, que se chocam com interesses estabelecidos dentro e fora do país.
Nossas ações devem ser flexíveis para que os objetivos possam se encadear na perspectiva da solução estratégica que defendemos. Isso implica forjar uma ampla aliança, de modo que o inimigo principal seja a força isolada e derrotada. Esse poder político é a condição básica para fazer com que o Estado se volte para os interesses da nação e seja capaz de geri-los, de modo que não atente contra eles. Existe, evidentemente, um relacionamento complexo, com elementos de contradições, de lutas, num bloco forças assim, mas também existem elementos de convergência — hoje, estes mais do que aqueles.
Há, nessa realidade brasileira, o fato de que a crise no país atingiu uma extensão que põe em risco todo o aparelho econômico. E isso facilita a busca de uma saída por meio de forças amplas e diversificadas. O golpe partiu, com cores nítidas, o Brasil em dois países antagônicos. Não será fácil para a direita consolidar a volta da lógica neoliberal que deu a uns acesso aos padrões de vida de uma sociedade de Primeiro Mundo e a outros apenas a cota de sacrifício necessária ao salto consumista. A ideia da distribuição da riqueza, antes proscrita, hoje é compreendida como um pré-requisito inclusive para a remuneração de uma parte do capital.
Diante da crise, o lucro desses setores está cada vez mais atrelado ao poder de consumo dos despossuídos, que devem ser reincluídos na ala economicamente ativa da sociedade. A obviedade de um mercado doméstico robusto para o desenvolvimento econômico do país, lastreado numa lógica de industrialização e equalização social e econômica, ganhou assento entre amplas forças políticas e sociais. Esse projeto não é mais mera opção — é a via óbvia para o desenvolvimento sustentado do país.
Ou nos integramos a esse processo como jogadores efetivos ou tombamos todos juntos, do pico à base da pirâmide. O alcance das mudanças de que precisamos rompe os limites da esfera econômica. Uma pessoa integrada à vida econômica do país é, por tabela, um cidadão ou cidadã com mais rigor político. O miserável, por não consumir, não desenvolve senso crítico. Recebe o que lhe dão e está bem assim. Seja uma migalha de pão, seja um candidato vil.