Este artigo faz parte do Especial – OS TRABALHADORES E O DEBATE ECONÔMICO

O debate sobre a legislação trabalhista sempre enfrentou a lógica dos fatos. Quando ela sofreu ataques na “era FHC”, no curso da “ordem mundial” neoliberal com pretensões à univocidade, os trabalhadores se levantaram para defendê-la. Com a eleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2002, essa “ordem” sofreu um duro revés, depois de reinar quase absoluta por mais de uma década. Nesse período, o modelo de relações de trabalho fundado nas ideias neoliberais conseguiu se impor em muitos setores e um dos maiores prejuízos que causou foi o de refrear o debate a respeito das concepções sobre esse tema formadas ao longo da história.

Já no século XIX, quando a maioria dos países havia trocado a monarquia pela república, esse debate passou a representar o pano de fundo da luta entre direita e esquerda, entre capital e trabalho. Quando os projetos capitalista e socialista passaram a disputar a hegemonia do planeta, no século XX, essa luta ganhou feições mais definidas. O ideário capitalista reivindica a precedência do capital em relação ao trabalho e o socialismo advogava a primazia do trabalho em relação ao capital. Entre os dois, surgiu o projeto social-democrata que procurou adaptar a economia capitalista às preocupações sociais.

A derrota do socialismo em boa parte do mundo fez com que o capitalismo proclamasse sua vitória como sendo histórica. Essa tese ganhou mais força ainda quando o projeto social-democrata, atingido pela crise do socialismo, começou a sentir as pernas fraquejarem. Assim, o velho liberalismo, que serviu de base para o desenvolvimento da tese capitalista até às primeiras décadas do século passado, ressurgiu triunfante e com nova roupagem. Portanto, se quisermos compreender o alcance da disputa que se trava hoje em torno dessa questão precisamos restabelecer o fio condutor da dicotomia entre direita e esquerda.

No Brasil, durante o século XX, esses conceitos ficaram claros. As posições extremadas da direita obrigaram a esquerda a lutar muito para conquistar pouco. As manifestações populares, na maioria das vezes, ocorreram para defender direitos que têm a abolição prevista pela cartilha da direita. Nunca tivemos por aqui uma efetiva predominância da esquerda no poder, até a inauguração do ciclo progressista em 2002.

Esse atraso pode ser explicado pelo modo como aconteceu a colonização do nosso país. Os episódios da escravidão e da maciça imigração representaram o estabelecimento nítido de duas vertentes em luta aberta e irreconciliável. E o Estado sempre agiu de forma autoritária para manter a ordem estabelecida e garantir a sobrevivência da estrutura oligárquica. Antes o dono da terra tinha escravos, depois passou a ter vassalos. Essa tradição foi determinante na formação do povo brasileiro.

Desde as Capitanias Hereditárias até a década de 1950, o Brasil viveu no campo. Esse tempo foi suficiente para que o pensamento feudal ganhasse raízes fundas na cultura nacional. O retrato mais nítido dessa projeção é a enorme distância que separa patrão e empregado — em termos econômicos e políticos. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a nossa. A elite brasileira não aceita outra posição do restante da população, senão a completa subordinação. Ela sempre viveu sob a proteção do Estado, de modo fisiológico e clientelista. Os governos quase sempre estiveram a seu serviço, criando fontes de lucros e, não raro, pagando suas contas.

No ciclo inaugurado em 2002, a questão se apresentava tendo como ponto inicial a defesa das conquistas históricas, já bastante abaladas pela hegemonia neoliberal da “era FHC”. Faltou, posteriormente, uma reforma séria do Estado, que tivesse como premissas a um só tempo desprivatizar o Estado — sobretudo no que toca à transferência brutal de renda dos mais pobres para os mais ricos — e ampliar direitos para os trabalhadores. A definição clara do que é público e do que é privado, do que é de todos e do que é de cada um, era uma das discussões mais prementes naquele Brasil que nascia.

Ficou pendente um debate sobre o conceito amplamente difundido na “era FHC” de que o conflito entre capital e trabalho é uma questão individual. De que a lei não pode se sobrepor à realidade do “mercado” e o Estado não pode determinar quais são os interesses dos trabalhadores e como eles devem ser exercidos. A ideia de que as diferenças entre patrões e trabalhadores devem ser negociadas e não legisladas, ideia cristalina do neoliberalismo, que privilegia o individual em relação ao coletivo. Para ela, tanto um poderoso executivo de uma multinacional quanto um operário têm as mesmas condições de negociar a duração do período de férias, o tempo da licença-maternidade e o pagamento do 13º salário.

É evidente que essa tese é de interesse exclusivo do capital. Quanto mais os trabalhadores estiveram divididos, envolvidos em demandas corporativas, mais os patrões têm condições de impor suas vontades. Para esse ponto de vista neoliberal sobre as relações de trabalho, a tradicional organização sindical classista é o principal entrave ao seu projeto de sociedade — fundado num Estado inteiramente a seu serviço.

No Brasil, a luta pela unidade dos trabalhadores tem sido renhida exatamente porque foi esse modelo de organização que garantiu a maior parte das nossas conquistas. Historicamente, o trabalho foi submetido a feitores — muitos deles instalados no Estado —, que arrancam no porrete as metas de produção. Mas nunca aceitamos essa situação passivamente. As nossas conquistas trabalhistas não são concessões bondosas do capital. E isso se deve ao entendimento de que a força do trabalho reside em sua capacidade de organização e ação coletivas. Só assim é possível proteger o trabalho dos abusos praticados pelo capital.

Por isso, interessava muito aos trabalhadores o avanço de um projeto que visava a conquista de um Estado democrático e progressista. Nunca aceitamos, desde a escravidão, a ideia de uma postura de plebeus diante dos nobres. E também nunca conseguimos criar espaços tão amplos como aqueles obtidos com o ciclo progressista. Não foi possível imprimir ao Estado outro papel nas relações sociais, por limitações de toda ordem, sobretudo conjunturais — havia muita gente sem trabalho e sem ter o que comer, além de uma ordem opressora de âmbito mundial —, mas os avanços são inegáveis.

Quando Lula assumiu em 2002, 57% da população economicamente ativa estacam na informalidade, sem carteira de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, Fundo de Garantia e Previdência Social. Comparar aquela realidade com os dados do ciclo progressista resulta na constatação de que precisamos nortear o debate a respeito da nossa legislação trabalhista tendo em conta o papel do Estado.

Enxergar o trabalho por essa ótica é uma questão de opção classista. Isso implica ver na outra margem das relações trabalhistas o capital e sua história. São duas agendas em conflito. De um lado, a necessidade de um novo contrato, no qual o trabalho seja beneficiado com mais direitos para a construção de valores que revoguem a hierarquia do medo e do mandato de feitores. E de outro, o status quo disposto a avançar sobre o que conquistamos e a moldar o Estado segundo seus interesses. Esse é o pano de fundo da atual ofensiva golpista contra os trabalhadores.