17 – Retrocessos exigem nova tática dos trabalhadores
Uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 2002 é que eles representaram uma carta branca ao governo Lula no que se referia às iniciativas para melhorar as condições sociais e infra-estruturais do país. A maioria da sociedade elegeu aquele presidente porque ele foi o candidato que granjeou mais credibilidade. Lula representava um projeto de sociedade fundado numa longa trajetória de lutas populares e que se opunha frontalmente ao ideário liberalizante. O projeto neoliberal golpeou a máquina do Estado, agrediu a soberania nacional, destruiu uma parte do país construída pelo pensamento nacional e deprimiu a expansão econômica com taxas de juros estratosféricas.
Tudo isso foi possível porque os governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (FHC) inscreveram com cores nítidas em suas bandeiras o slogan “estabilidade monetária”. Esse engodo custou ao país uma gigantesca expansão da dívida interna — camuflada por um relativo controle inflacionário — e ligou o tiquetaquear da bomba-relógio chamada dívida interna. Esse mecanismo incomoda o país desde quando FHC anunciou suas primeiras medidas como ministro da Fazenda, ainda no governo do presidente Itamar Franco. Em suas duas eleições presidenciais, FHC escondeu seu real programa de governo com aquela mão espalmada.
A maioria da sociedade, ansiosa pelo controle da inflação que castigava o país desde que o “milagre econômico” dos generais golpistas começou a fazer água, em meados da década de 1970, não viu as cláusulas do contrato escritas por FHC com letras minúsculas. É verdade que Lula, como ele mesmo repetiu insistentemente em sua campanha, não tinha como rasgar esse contrato sem mais nem menos. O controle da inflação era uma necessidade da qual o país não podia abrir a mão. O problema é que esse conceito misturou-se com as demais medidas adotadas pelos governos FHC e serviu ao projeto de sociedade fundado no ideário da elite conservadora que domina este país há séculos.
A grande charada que se apresentava ao governo Lula, portanto, era desatar esse “nó cego” deixado por FHC. Pode-se dizer que as medidas adotadas pela equipe do ministro Antônio Palocci foram, além de polêmicas, ineficientes. Elas mantiveram os juros altos e superávits orçamentários, que eram revertidos para as contas financeiras, esmagando o país. Afora os condicionantes conjunturais, o que faltava à equipe de Palocci era uma postura menos complacente com o curso da economia brasileira. Não fazia sentido o país marchar por aquele leito enquanto o programa de governo eleito em 2002 permanecia em alguma gaveta.
É óbvio que não era inteligente criticar o governo em bloco, ou mesmo a equipe econômica. Mas também não era o caso de afiançar sua postura que corroborava o projeto da elite. É possível afirmar que em termos de miopia econômica e obtusidade política a direita brasileira só perde, talvez, para algumas castas africanas e outros poucos regimes exóticos escondidos nos rincões do mundo. Lidar com essa elite e seus privilégios escravagistas, portanto, era o grande desafio que o projeto de governo Lula teria que vencer. No Brasil, há vícios longamente entranhados na vida nacional – decorrentes desses privilégios. Quando se rompeu com a lógica palocciana, começou a marcha golpista.
O governo assumiu a premissa de fazer do Estado indutor da economia, desligando paulatinamente sua parafernália financeira e aumentando sua eficiência e seu poder fiscalizador. E disse abertamente à sociedade que o desenvolvimento econômico viria como resultado de uma ação conjunta a favor de um projeto nacional. E as organizações populares também mudaram de postura; um projeto nacional não se constrói com visões corporativas, mesquinhas. Tampouco com indiferença. Compreenderam, em grande medida, que não era correto cobrar certas posturas de um governo popular sem participar ativamente do debate, com ideias e sugestões.
O Brasil sempre esteve de alguma forma receptivo a um projeto social. No entanto, estamos submetidos a um esquema político que ao longo da história aprisionou o Estado e fez deste uma trincheira para impedir a construção de uma sociedade democrática e progressista. Por isso, a tese de que um caminho definido de desenvolvimento depende da formação de um bloco político capaz de reunir as forças interessadas em reascender as esperanças econômicas e sociais do povo é antiga. Os defensores dessa ideia sempre insistiram num amplo esforço para erradicar as bases históricas do autoritarismo e assim começar a moldar um projeto verdadeiramente nacional.
Pode-se considerar essa ideia vitoriosa no ciclo de governos progressistas no Brasil — apesar de ela não ser um projeto imediatista. A consolidação de uma democracia de massas e do progresso social esbarra na existência de estruturas econômicas e sociais historicamente impostas pelo poder econômico brasileiro e internacional. O nosso perverso padrão de distribuição de renda, herança do escravismo, manifesta-se, basicamente, por três mecanismos dessas estruturas: a transferência de renda do setor público para o setor privado, a transferência de renda dos salários para lucros e juros e a transferência de renda de dentro para fora do país.
O programa de governo do presidente Lula definiu claramente o projeto de desenvolvimento nacional, antítese ao projeto neoliberal (apesar da sobrevivência desse modelo enquanto Antônio Palocci foi ministro da Fazenda), e expressava a acumulação de forças desse bloco político progressista, a ampliação das alianças e uma resposta à crise profunda do padrão tradicional de acumulação e financiamento da economia brasileira. Seu sucesso, no entanto, dependia de uma atuação combinada em três esferas das forças democráticas e progressistas: no governo, com uma coalizão ampla; no Congresso Nacional, com um grande leque de apoio parlamentar; e nos movimentos sociais. Essa unidade, contudo, não rompeu com o desequilíbrio na relação entre capital e trabalho – o âmago das relações econômicas, políticas e sociais.
Mesmo havendo substanciais mudanças nos fatores macroeconômicos, a balança não pendeu para o lado dos trabalhadores. Nem poderia pender, porque não houve mudança significativas e estruturais no sistema. Continuou prevalecendo a lógica de que um lugar na economia formal é uma concessão do capital ao trabalho. Eventuais ganhos por parte do trabalho não aparecem como fruto de conquistas. Ao longo do século XX, a concepção sindical que prevaleceu, com seus erros e falhas, foi a que expressa a ideia de que a força do trabalho reside na organização unitária dos trabalhadores para enfrentar o capital — o poder social concentrado, nas palavras de Karl Marx.
Nos anos 1990, com a ruptura dos paradigmas que serviram de antítese ao projeto liberal de sociedade em âmbito mundial, essa concepção classista sofreu um baque considerável. Prevaleceu a apatia, a falta de rumo no movimento sindical, de uma maneira geral. Lula chegou a pedir uma de atitude, num encontro com sindicalistas. Houve avanços, mas com o golpe já houve novos retrocessos. Fica claro que a derrocada da tradição autoritária no Brasil passa pela consolidação de um projeto de sociedade calcado na mais ampla democracia.
É óbvio que um país com essas características democráticas é um terreno em que a hegemonia na sociedade será colocada permanentemente em disputa pelas classes sociais. As organizações sindicais, como principais agentes desse processo do lado do trabalho, terão a obrigação de formular novas ações, operar com habilidade o binômio unidade e luta e estender o conceito de democracia para a batalha que visa eliminar o fosso que separa a vida política do país da vida real da imensa maioria do povo. A disputa pela hegemonia deve ter como meta principal o rompimento da linha divisória entre governantes e governados.
É evidente que essa nova fase da luta estratégica dos trabalhadores exige uma observação atenta da correlação de forças. Não podemos administrar esse processo descuidando do aspecto teórico da relação entre capital e trabalho, da elaboração de um plano tático que responda às demandas da atualidade. É preciso dar ênfase à distribuição de renda, uma ideia proscrita pelos círculos que detém o poder no Brasil.