21 – O desemprego como estratégia do neoliberalismo
É relativamente comum manifestações de admiração por algo do exterior que pouco ou nada tem a ver com a realidade do povo brasileiro. Ouve-se com certa frequência que o os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão são ricos porque seus povos são trabalhadores — quando na verdade enfrentamos uma das mais extensas jornadas do mundo. Não faz tempo, era comum alguém dizer, ao se deparar com um produto importado qualquer: “Só podia ser coisa de americano!” Agra, ouve-se isso sobre o desregulamentado modelo de relações de trabalho dos Estados Unidos para atacar a legislação trabalhista brasileira, sem considerar as diferenças continentais entre os dois países e a realidade do conjunto dos trabalhadores norte-americanos.
O Brasil, é verdade, nunca teve grandes conquistas. Mas seus trabalhadores escreveram muitas páginas de lutas na história. A nossa legislação trabalhista é uma conquista dessas lutas, resultado de duros combates. Com as “reformas” da “era neoliberal, durantes os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), perdemos muita coisa. E agora, com a “reforma” do golpe, perdemos praticamente tudo. É como na música “Saudosa Maloca”, de Adoniram Barbosa. Tínhamos pelo menos uma “casa véia”, um “palacete assobradado”. Chegaram “os homes com as ferramenta (os imaginários 300 picaretas do Congresso, de que falou certa vez Luis Inácio Lula da Silva)” para “derrubá” e construir no local um “edifício arto”.
Na “era neoliberal” os picaretas e seu mestre-de-obra não derrubaram mais porque os trabalhadores não se comportaram como os personagens de “Saudosa Maloca”, que foram para a rua “apreciá a demolição”. Sabíamos que no “edifício arto” não haveria lugar para os trabalhadores. A mão dos picaretas foi temporariamente detida, mas, com o golpe atual, a demolição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) voltou a ser prioridade. Os trabalhadores que, como na música de Adoniram Barbosa, tratem de ir para a rua “pegá as paia nas gramas do jardim”.
As investidas contra os trabalhadores com a “reforma” trabalhista são movidas pela mesma ideia da colonização do Brasil. A chegada de trabalhadores imigrantes, devido à escassez de escravos por razões históricas, trouxe novas formas de luta e obrigou o governo a criar mecanismos de repressão para manter a “ordem”. O autoritarismo histórico da elite e sua conduta de exploração e acumulação, abriu espaço para reações combativas dos trabalhadores. Enfrentamos a tradição da oligarquia. O Brasil, diferentemente de países como França e Estados Unidos, não realizou sua revolução burguesa por inteiro. Nossa estrutura social básica é a mesma desde a colônia.
A partir desse raciocínio, não fica difícil entender as dificuldades que um projeto progressista enfrenta para se instalar no Brasil. Até no âmbito de grandes empresas brasileiras, é possível reconhecer traços escravagistas. Em grande medida, ainda é a hegemonia do sobrenome e de pequenos círculos que molda o figurino político do país. Ainda vivemos sob o ideário oligárquico que luta para conservar a riqueza e as oportunidades do mesmo lado da cerca. É essa elite que gosta de copiar tudo que lhe traz benefício lá de fora que a aprovou a “reforma” trabalhista. Para ela, vale tudo para manter a cultura brasileira de rasgada distância entre classes sociais, entre corte e plebe.
Mas esse é um estágio que o Brasil terá de superar na história se quisermos nos transformar em uma nação respeitada. E essa é uma questão que depende da tomada de consciência dos trabalhadores. Para a elite brasileira e os novos colonizadores neoliberais, o padrão ideal de relações de trabalho seria aquele do século XIX, quando os operários enfrentavam jornadas diárias de até 14 horas em galpões pestilentos, ganhando apenas o suficiente para manter-se vivo. Sem contar a função estratégica, para o sistema, de um elevado número de desempregados, a famosa reserva de pressão para baratear o mercado de trabalho.
Na campanha de 2002, Lula disse, baseado em seu programa de governo — um caderno de 89 páginas repleto de ideias para administrar o país —, que sem emprego não há cidadania. E que o pressuposto para a geração de empregos é o crescimento de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) PIB ao ano, a redução da jornada semanal de trabalho de 44 horas para 40 horas e a diminuição de horas extras permitidas por lei. Seu programa de governo definia como importante ação para criar postos de trabalho a prioridade de gastos públicos em setores como habitação, saneamento, energia e turismo. Essa questão essencial, porque ela é particularmente dolorosa num país como o Brasil, foi uma das enfrentadas com êxito no ciclo de governos progressistas.
Até a eleição de Lula, o Estado vinha lavando as mãos quanto à sorte da economia real, priorizando a administração pública a serviço do parasitismo financeiro, base de sustentação do capitalismo em sua fase neoliberal, e ignorando os efeitos da inovação tecnológica, que aumenta a produtividade como nunca se viu na história, gera desemprego e redefine a organização das cadeias de produção. O Brasil havia rompido com o modelo que vinha do pós-guerra de intervenção do Estado na economia como garantia de um bom nível de empregabilidade — empregando diretamente ou irrigando a economia com recursos indiretos.
O Estado foi o agente de equilíbrio que permitiu absorver o impacto das crises econômicas e da automação na iniciativa privada. Com a sua transformação em comitê de administração da ciranda financeira pelo projeto neoliberal, os efeitos da longa crise iniciada em meados da década de 1970 apareceram por toda parte. O desemprego recorde era uma das suas manifestações mais cruéis. O problema é que o cassino global, uma máquina predadora da economia real sempre esfomeada, dotou os Estados de uma parafernália que funciona dia e noite a serviço da especulação financeira. Esse parasitismo, é lógico, tem como alvo os trabalhadores. No Brasil, o peso da herança escravagista transforma essa lógica em tragédia social.