Parte do seminário internacional “1917: O ano que abalou o mundo”, organizado pela Boitempo Editorial e pelo Sesc, a discussão abordou a crise e o legado da revolução soviética.

Na sua palestra, Luis Fernandes resgatou contribuições teóricas de Lênin, que, segundo ele, pouquíssimo tempo depois, se transformaram em resultados político-estratégicos efetivos, com impactos prolongados para a evolução da história humana.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e da UFRJ destacou as reflexões contidas no livro “Imperialismo, fase superior do Capitalismo”, lançado por Lênin em agosto de 1916. As formulações faziam parte de um debate que envolveu os principais expoentes do pensamento marxista da época, na tentativa de entender como o capitalismo – que se apresentava no século 19 como antimercantilista, anticolonialista e liberal – havia deflagrado uma corrida de expansão colonial, sobretudo dirigida à África e à Ásia.

“Lênin sistematiza isso, entendendo que o  impulso fundamental daquela expansão era a exportação de capital, oriunda de uma nova forma de capital, altamente concentrada, que era o capital financeiro dos países centrais. Isso é que explicava a disputa e a conquista de territórios econômicos em todo o globo”, resumiu Netto, completando que Lênin indica, então, que o capitalismo se desenvolveria de forma desigual.

Nesse contexto, não necessariamente as primeiras revoluções eclodiriam nos países mais avançados do capitalismo, como se pensava no século XIX. “É com essa orientação que ele lança as ‘Teses de Abril’, dizendo que a Rússia se tornou o elo fraco da cadeia imperialista e que poderiam tomar o poder ali. É uma reflexão teórica que se traduziu em ação política, estratégica, e identificou, na dualidade de poderes naquele momento na Rússia, os conselhos de trabalhadores como possível novo foco de poder a ser construído em oposição ao governo provisório”, analisou Netto.

 

Derrota do nazismo

Desta formulação, emergiram então realizações que Luis Fernandes reputa como históricas. “Primeiro, que, a partir da Revolução Russa, se estruturou pela primeira vez na história da humanidade um sistema econômico e social alternativo ao capitalismo no mundo, com vida prolongada”, indicou.

Uma segunda dimensão é que a base produtiva construída a toque de caixa pela URSS, por preocupações geopolíticas, foi a base material que derrotou o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Devemos isso à revolução russa”, ressaltou.

O cientista político detalhou que o nazifascismo foi deslegitimado e desarticulado na Segunda Guerra Mundial, com a contribuição decisiva da base produtiva convertida para Defesa, que foi montada pelo esforço de industrialização socialista na URSS.

“Tristemente, vemos essa expressão política que havia sido deslegitimada ressurgir no século XXI. E não é à toa que ressurja no vácuo criado pelo colapso do antigo campo socialista e da própria URSS”, lamentou.

Caminho anticolonial

O professor da PUC-Rio sublinhou ainda que outra importante reflexão de Lênin foi a de que, diante das novas configurações do capitalismo, as lutas de libertação nacional seriam um vetor estratégico do movimento revolucionário mundial no século XX.

A União Soviética e o campo socialista findaram por transformar a defesa do direito dos povos à autodeterminação e o apoio às lutas anticoloniais e anti-imperialistas em pedra angular de sua política externa. Nesse sentido, forneceram apoio político, militar, econômico, diplomático e moral às lutas de libertação nacional pelo mundo.

“Em grande medida, o formato que temos hoje do sistema internacional é consequência desse apoio decisivo dado pela URSS e pelo campo socialista às lutas de libertação nacional anti-imperiais e anticoloniais. Porque o que temos hoje é um sistema globalizado a partir do reconhecimento, ainda que formal, do direito à autodeterminação e a ideia de que não é legítima a dominação colonial. Devemos esse formato à orientação anti-imperialista que predominou na política externa do campo socialista. São realizações duradouras que nos influenciam até hoje”, avaliou Fernandes.

 

Guerra civil e cerco capitalista

Luis Fernandes referiu-se ainda a outro livro de Lênin, “O Estado e a Revolução”, lançado em setembro de 1917, véspera da Revolução Russa. “É uma sistematização da teoria do Estado de Marx e uma valorização das lições que Marx extrai da Comuna de Paris, que se tornam a base da conformação do poder soviético”, afirmou.

Entre estas lições, ele citou substituição do Exército permanente pelo armamento geral do povo; mandato imperativo de vários cargos públicos eleitos que poderiam ser revogados a qualquer momento conforme a vontade do eleitor, e limitação da remuneração de qualquer gestor público, que não poderia ser superior à média da remuneração do trabalhador.

Fernandes mencionou que estas diretrizes foram incorporadas pelo poder soviético no seu nascedouro, mas duraram pouco. Com a Guerra Civil, a primeira medida necessária foi constituir um Exército permanente – o Exército Vermelho – para enfrentar o Exército Branco e a intervenção de tropas estrangeiras no território da então URSS.

“Na sequência, era necessário ter especialistas para tocar a economia e a sociedade. E não havia quadros formados com adesão à causa soviética. Logo, tiveram que introduzir remuneração diferenciada para os quadros técnicos”, destacou, completando que, no limite, a diferença de remuneração chegava a ser de oito vezes.

“No calor da Guerra Civil e do cerco capitalista hostil que se formou, o que aconteceu é que o locus do poder se deslocou dos sovietes para o partido. E a hierarquia do partido é que passou a comandar o esforço de resistência e sobrevivência do Estado soviético, gerando o formato que perdurou quase até o final: fusão entre Estado e Partido”, declarou.

Na verdade, os mecanismos de democracia direta e participativa foram preservados nos sovietes, mas, com o passar do tempo, cada vez mais o fórum de deliberação efetiva passou a ser o Comitê Central do Partido, e não os Conselhos Operários. “Na prática, foi um formato construído nos marcos de uma mobilização de guerra, que acabou constituindo a conformação política daquele poder”, apontou.

A questão social

Fernandes defendeu que, para além de ter estruturado um sistema mundial alternativo ao capitalismo, a Revolução de 1917 introduziu na agenda mundial a questão social. Segundo ele, ao socializar a propriedade, a União Soviética eliminou o padrão fundamental de reprodução e agravamento das desigualdades das sociedade capitalista. O resultado foi, então, uma sociedade igualitária, não igualitarista, com brutal redução da desigualdade, promoção de direitos sociais, culturais e à educação.

“Só nos demos conta do grau de profundidade dessas mudanças ao ver os impactos trágicos da restauração do capitalismo dos anos 1990. Houve, por exemplo, uma redução da expectativa de vida dos homens russos de sete anos. Isso é uma crise civilizacional, um retrocesso e um colapso de um padrão de proteção da saúde pública, que marcaram o retorno ao capitalismo”, disse.

O cientista político mencionou ainda uma influência indireta da URSS sobre a introdução da questão social na agenda global. Na sua avaliação, só foi possível a expansão de direitos trabalhistas e sociais, sobretudo na Europa, em função da existência da ‘ameaça soviética’.

Capitulação

“A sociedade, o sistema que realizou tudo isso, eu diria que capitulou diante da ofensiva do imperialismo norte-americano, sobretudo na chamada segunda Guerra Fria”, afirmou em sua apresentação.

Luis Fernandes lembrou que o campo socialista chegou a ter um terço da população mundial e mais de um quinto do território do planeta, embora nunca tenha sido hegemônico.

“Mas foi perdendo dinamismo. Houve uma espécie de comunismo de guerra, que teve um grande lastro de conquistas econômicas no período da modernização, ou seja, da recuperação do atraso herdado da antiga Rússia, que logrou elevar a produtividade social do trabalho. Mas, completada essa fase de industrialização fundamental, a dinâmica desse sistema era de baixa indução à inovação, perda de dinamismo econômico e, portanto, perda da corrida econômica com o mundo capitalista”, disse, ao responder a uma pergunta da plateia. 

Como o monólito soviético se desintegrou tão rápido?

A pergunta do intertítulo foi o ponto de partida para a fala do professor José Paulo Netto, durante o evento. De acordo com ele, o sistema construído a partir da revolução bolchevique foi responsável por um impacto central na configuração sociopolítica do mundo hoje.  

“Como um sistema que construiu um processo de industrialização e urbanização únicos em termos de lapso temporal, que deu uma contribuição decisiva para a derrota do horror nazifascista, que entrou nos anos 1950 constituído como a segunda potência mundial, que foi decisivo para as lutas de libertação dos povos, como esse projeto societário ruiu em alguns meses, não deixando pedra sobre pedra?”, indagou.

Segundo ele, o que sucedeu a experiência socialista na Rússia foi “uma associação criminosa e mafiosa, que restaurou as relações capitalistas recuperando da ordem do capital o que há de mais deletério, desigual e saqueador da propriedade pública”. Na sua apresentação, ele procurou refletir sobre o que teria levado isso a ocorrer tão rapidamente.

“A ordem do capital demorou três séculos para se constituir. Sou de uma geração que estava vendo o socialismo ali na esquina. Fui criado achando que ia viver num Brasil socialista. Mas a URSS sobreviveu apenas 80 anos. Que elementos levaram a esse processo rapidíssimo em que as conquistas socialistas – e não foram poucas – foram pelo ralo, substituídas por aquilo que podemos chamar de capitalismo selvagem, brutal?”, questionou.

Para o intelectual marxista, que não desconsidera o contexto mundial, as principais razões para isso são internas. Ele avalia que um “congelamento da socialização da economia” e uma “limitação da socialização do poder político” impediram um êxito mais duradouro do caminho soviético.

 

Humanidade deu um passo adiante

“Minha visão pessoal sobre o legado da revolução de outubro: foi um daqueles momentos em que a humanidade sonha e dá um passo adiante. Isso teve impactos além dos limites do Estado soviético. Seria bom lembrar que se não fosse ‘o horror’ do socialismo, não haveria estado de bem-estar social”, ironizou José Paulo.

Na sua avaliação, toda uma conjuntura mundial contribuiu para que um legado positivo de Lênin e Trotsky caísse nas mãos de Boris Iéltsin. “É só observar a entrada dos anos 1980. A proposta do governo Ronald Reagan de ‘guerra nas estrelas’ tinha o claro objetivo de levar a URSS ao canto do ringue”, disse.

Ele acrescentou que o papel do papa João Paulo II também não deveria ser esquecido, mas, na sua opinião, os vetores de erosão que levaram à crise terminal do modelo soviético não foram externos.

Limites

Segundo José Paulo Netto, levando em consideração aspectos teóricos de Marx e Engels, torna-se claro que houve ali um padrão de transição socialista que se exauriu.

“Na minha ótica, quando observamos esse processo, podemos extrair lições: só há transição socialista quando se operam dois processos articulados. O primeiro é a socialização do poder político, que só se opera com a revolução social, no centro da qual o sujeito é o trabalho. Mas a socialização do poder político tem que estar suportada na socialização do poder econômico”, pontuou.

Para ele, as condições históricas peculiares em que se deu a Revolução de Outubro não permitiram a socialização da economia. “O processo de socialização da economia foi congelado no processo de estatização da economia. É impensável a socialização da economia sem autogestão por parte dos trabalhadores, conservando-se a estrutura hierárquica da fábrica e da indústria capitalista”, declarou.

O professor defendeu que, por volta de 1955, estava claro que o padrão de crescimento soviético apresentava problemas e era necessária uma reforma política para dinamizar a economia. As tentativas de autorreforma que aconteceram, contudo, fracassaram.

“Sem socialização do poder político não há socialismo viável; sem socialização radical da economia, entregando sua gestão à vanguarda dos trabalhadores e não a funcionários e gestores, torna-se muito difícil o desenvolvimento do socialismo. O problema é como sincronizar esses dois níveis”, reiterou.

Para Jose Paulo Netto, o que aconteceu após a derrocada do “generoso e humanista projeto de 1917” foi a transformação da nação em um “punhado de máfias, que durante cerca de 10 anos se digladiaram e que nos últimos sete anos se articularam, cedendo parte da sua autonomia a um poder central que conduz uma contrarrevolução capitalista, cujo alcance ainda não conhecemos”, concluiu.

Analisar Stálin sem moralismos

Ao responder a uma pergunta da plateia sobre qual seria a responsabilidade de Stálin na degeneração das conquistas soviéticas, o professor disse que não é correto personalizar as análises sobre a Revolução Russa.

“Stálin é um personagem absolutamente importante do século XX e no processo da Revolução Russa. Não podemos aceitar mais a explicação do que foi o período de Stalin, sob todos os seus aspectos, aceitando uma teoria psicológica do poder. O problema não é Stálin, mas o sistema no qual Stálin teve um papel importante”, disse.

Para ele, não se pode estudar o assunto sem levar em conta a Guerra Civil e o isolamento da Revolução Russa, por exemplo. “Precisamos parar de demonizar Stálin, sem relevar suas opções políticas, algumas evitáveis e condenáveis”. Ele pregou que “é preciso dar conta do fenômeno Stalin sem moralismos”.

Um partido para o mundo contemporâneo

José Paulo defendeu que muito da genialidade de Lênin esteve no fato de ele construir uma concepção de partido político, para operar em circunstâncias históricas precisas, que foi um êxito.

“Mas, quando essas condições históricas deixaram de existir ou aquele modelo de partido foi instrumentalizado para operar em condições diferentes das russas, não deu revolução em lugar nenhum do mundo, deu fenômenos caricaturais. Estou convencido de que esta forma partido precisa ser radicalmente repensada”, pregou.

Para ele, não se faz revolução sem partido, mas aquele tipo de partido pensado por Lênin não seria mais capaz de conduzir as transformações. “Eu acho que nós socialistas temos um bom programa na década presente: pensar como vamos instrumentalizar uma concepção de partido, que dê conta das complicações do mundo contemporâneo – cem anos depois da revolução, prestando a justa homenagem ao gênio Lênin e ao Comitê Central daquele partido, que abriram um mundo novo, mas o nosso mundo é diferente”, encerrou.

Voltando atrás

Na sua apresentação, a última da mesa, a economista e professora da USP, Lenina Pomeranz, procurou traduzir o processo de transição sistêmica que levou a Rússia de volta ao capitalismo.

“Mudou o sistema, para trás, mas mudou. A forma como se deu essa transição foi muito diferente. A tomada do poder em 1917 foi armada, confrontada por invasões estrangeiras, teve Guerra Civil, teve montagem de um sistema novo, nunca experimentado antes. A transição que veio depois foi sem sangue, sem luta armada. A grande questão que se coloca é saber por quê”, comparou.

Lenina marcou sua fala por uma série de provocações. “O sistema internacional não é mais o que era em 1917. O sistema capitalista mudou profundamente entre outubro de 1917 e dezembro de 1991 ou janeiro de 1992. O mundo mudou. O que determinou essa mudança na forma de sair de um sistema por outro? Tem a  ver com a mudança do capitalismo? Tem a que ver com a política externa do Gorbachov, que se pretende entreguista e levou à derrota do campo socialista?”, indagou.

Ela destacou ainda que a nova Rússia, no seu ingresso no sistema mundial do capitalismo, perdeu status de grande potência, mesmo ocupando o lugar da URSS no Conselho de Segurança da ONU. Passou a reconhecer-se ela própria como um poder regional.

Mas é, entretanto, uma “protagonista geoestratégica agressiva”, que atua em aliança com a China em diferentes questões internacionais e assume posições muito firmes na defesa de seus interesses nacionais. Para a economista, isso dá ao atual presidente Vladimir Putin um enorme apoio interno – de 86% da população.

“Mas em que medida esse protagonismo da Rússia pode favorecer movimentos populares no sentido de mudanças no sistema capitalista?”, questionou.

Transformação institucional

De acordo com Lenina, a transformação sistêmica da Rússia se fez com uma mudança institucional, do sistema político, alterando a natureza do Estado, e também na transição da propriedade estatal coletiva para e propriedade privada dos meios de produção.

Essa mudança institucional se deu a partir de nova Constituição, norteada pela ideia de um Executivo forte, capaz de implementar as reformas no sistema e impedir a restauração do sistema soviético. A economista destacou que houve muita disputa nesse período entre a oposição parlamentar e o governo central, algo que Iéltsin resolveu por meio do canhoneio do Parlamento e pela promulgação da nova Carta, que instituía um sistema bicameral.

O Conselho da Federação (a Câmara Alta) era formado por dois representantes de cada uma das 90 regiões do país, e a Duma (ou Câmara de Deputados) era composta por 450 deputados e cabia a ela a aprovação ou rejeição do candidato a primeiro-ministro indicado pelo presidente.

O primeiro-ministro, por sua vez, tinha a tarefa de nomear os ministros, exceto os da Defesa, do Interior, das Relações Exteriores e o Chefe do Serviço Nacional de Segurança. Não existia o cargo de vice-presidente e, no caso de ausência do presidente, ela era substituído pelo primeiro-ministro. Foi o que aconteceu quando Iéltsin renunciou e Putin assumiu como presidente provisório.

Havia também uma independência do poder Judiciário, mas com uma Corte Constitucional para dirimir dúvidas  que pudessem surgir na interpretação da Constituição.

Outra característica era a realização centralizada da política econômica, à medida que estavam sob responsabilidade da administração presidencial os principais instrumentos para implementá-la.

“Fica caracterizado então um regime presidencialista muito forte, com o presidente no comando dos poderes mais importantes e com a capacidade de fazer seu sucessor”, colocou Lenina.

Privatizações

A professora destacou que a privatização da propriedade na Rússia se deu em fases. “Numa etapa, houve a chamada privatização espontânea, que surgiu a partir de algumas leis e da direção que foi dada à transformação econômica prevista na Perestroika”, citou Lenina.

Ela destacou que a Perestroika foi precedida por mudanças na política externa e pela Glasnost,  que classificou como um “grande movimento de democratização e participação no debate”.

“No caso da reforma econômica, ela foi realizada a partir de um conjunto de leis,  cujo objetivo declarado era a descentralização das decisões econômicas. E começou lentamente, com a autorização para o trabalho individual, autorização para criação de pequenas cooperativas urbanas com no máximo sete pessoas. Depois uma lei sobre a propriedade estatal. Em seguida uma lei sobre a forma jurídica das empresas, que levou à inclusão, entre essas formas, da propriedade privada”, elencou.

Segundo ela, na economia soviética o planejamento era feito “em linha vertical”. Cada ministério tinha sob sua responsabilidade um conjunto de empresas e se articulavam com a Comissão Central de Planejamento para definir e coordenar a implementação das metas dessas empresas.

“Os ministérios eram constituídos por funcionários, que eu chamo de nomenclatura, muito arraigados no sistema. Eles já sabiam o que estava acontecendo e estavam tratando de ficar com a  parcela da propriedade que antes estava sob a sua administração. Então, nessa privatização espontânea, os ministérios já tinham a percepção de que iam perder poder e a propriedade que estava sob sua administração e trataram de dar os primeiros passos para garantir seu lugarzinho na distribuição do bolo”, apontou.

“Esbulho”

Em seguida veio um processo de privatização de massa, que a economista chamou de “esbulho da população”.  Segundo a professora, um dos legados da revolução foi o enorme sentimento de igualdade e solidariedade da população, e isso era um forte obstáculo à privatização.

Conforme narrou Lenina, era preciso contornar isso. “E a forma que encontraram foi dizer ao povo que a propriedade era dele e que seria distribuída entre todos. Inventou-se então uma privatização por sistema de voucher, que era como se fosse um cheque de direitos”, disse.

Calculou-se, então, em janeiro de 1992, o valor não depreciado de todas as empresas russas – as pequenas, médias e grandes até certo grau – e esse passou a ser o valor do patrimônio da sociedade russa. Dividiu-se esse montante pelos 145 milhões de habitantes, e cada russo recebeu a parte da propriedade que lhe cabia: 10 mil rublos.

Lenina chamou a atenção para o fato de que a população sequer tinha noção do que representava um voucher, uma vez que o país possuía antes um sistema em que não havia nem cheque, nem circulação monetária.

“O sistema soviético era baseado em moeda de conta basicamente. Alguns russos colocaram esse voucher na parede fazendo quadros de lembrança. Outros compraram uma garrafa de vodka. Esse era o valor da propriedade que cabia a cada um dos habitantes da Rússia. O resultado é que o povo russo foi esbulhado, porque no fim das contas, o que foi privatizado por vouchers acabou sendo 13% da propriedade russa”, disse.

Outra fase das privatizações, conhecida como a dos escândalos, alcançou as grandes empresas dos setores de ponta, exportadores e tecnológicos. Segundo Lenina, esta foi a etapa que levou “à formação das camarilhas”- às máfias citadas por José Paulo Netto.

“Essas privatizações resultaram de um pacto político entre Boris Iéltsin com banqueiros, oligarcas que fizeram um empréstimo para o governo russo em troca de garantia de ações. Com isso, eles manobraram suficientemente para conseguir as maiores e mais importantes empresas da antiga URSS – o setor de mineração, do petróleo, do gás, etc”, encerrou.