Luis Fernandes: Legado da URSS molda o mundo em que vivemos hoje
CLIQUE AQUI PARA COMPRAR O LIVRO
Edição final: Joana Rozowykwiat
Lançado pelas editoras Anita Garibaldi e PUC-Rio, o livro propõe uma análise sobre a gênese e a derrocada da experiência socialista da União Soviética.
De acordo com o próprio autor, a obra pode ser entendida como um desdobramento mais maduro de outras duas publicações anteriores, “URSS – Ascensão e queda” e “Enigma do socialismo real”.
Nesta nova empreitada, Luis Fernandes – que é professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e da UFRJ – debruça-se sobre o tema, somando seu saber acadêmico à experiência como gestor da área de Ciência, Tecnologia e Inovação.
No momento em que a Revolução de 1917 comemora cem anos, ele apontou, na entrevista abaixo, o papel central que a URSS teve, por exemplo, nas discussões sobre as questões social e nacional pelo mundo.
“A marca da Revolução Russa é ter introduzido a questão social na agenda mundial“, disse. Na sua avaliação, o socialismo soviético promoveu uma expansão de direitos e uma redução de desigualdades, a partir da socialização da propriedade, apesar de conter contradições relativas aos direitos civis. “No gobal, foi uma agenda de realização de direitos, redução de desigualdades, promoção social”.
De acordo com ele, a própria existência do campo sacialista representava uma ameaça que forçou a inserção da questão social na pauta do mundo capitalista. “Gerou um contexto histórico em que havia maior predisposição para concessões aos movimentos sociais, entre eles o sindical, por parte dos governos e das elites”, apontou.
O professor destacou ainda o apoio dado pela URSS às lutas de libertação nacional, com efeitos decisivos nos processos de descolonização do século 20. “Um dos impactos da Revolução Russa foi constituir o sistema internacional como o conhecemos hoje, organizado pelo princípio da soberania dos Estados e do respeito aos direito de autodeterminação, baseado no princípio da não intervenção. É um legado duradouro, que molda o mundo em que vivemos no século 21”, afirmou.
Ao pregar uma análise materialista e menos romantizada sobre a União Soviética, Luis Fernandes defendeu que se tratou de uma experiência socialista, que gerou uma sociedade igualitária, não igualitarista.
Para o cientista político, contudo, o cerco hostil que o bloco socialista enfrentou durante toda a sua trajetória limitava o potencial do desenvolvimento democrárico interno da sua sociedade, uma vez que a sua defesa e preservação terminaram por se tornar o centro das preocupações.
“Isso afetou enormemente toda a evolução da revolução soviética, seja na política econômica, mas também nas carcaterísticas que o Estado assumiu, diante das tentativas de desestabilização”, avaliou, rechaçando, contudo, as críticas que tentam colocar na URSS a pecha de um regime totalitário.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
O livro “A revolução bipolar” é resultado da pesquisa que você desenvolveu a partir das suas obras anteriores [“URSS – Ascensão e queda” e “Enigma do socialismo real”]? E por que esse título?
O título tem duplo significado. Primeiro, bipolar porque foi a revolução que constituiu o mundo bipolar da Guerra Fria. Sobretudo a partir da segunda guerra mundial, com a formação do campo socialista, formou-se um sistema mundial alternativo ao capitalista. E essa é a base da ordem da Guerra Fria, que não se tratava apenas de um conflito geopolítico. Era um conflito geopolítico, mas amparado em um ruptura sistêmica. Desse ponto de vista, a revolução foi bipolar, à medida em que constituiu o mundo bipolar que dominou, praticamente, a segunda metade do século 20 toda.
A segunda dimensão da bipolaridade é o sentido corrente da palavra, com conotações psicanalíticas, psicológicas. Porque é uma experiência que se passou basicamente em uma geração, que foi de um estado de ânimo, de uma autoconfiança absoluta, da certeza na sua capacidade de realização, para uma capitulação que foi humilhante, porque foi sem disparar um tiro, perante um adversário com o qual a URSS mantinha paridade estratégica do ponto de vista militar.
Então o livro procura explicar também isso. Consolida algumas respostas, desdobra perspectivas e insights que já estão presentes nos dois outros livros, mas agora estão mais sistematizados e mais maduros. E pude trazer para essa reflexão parte da minha própria experiência como gestor público na áreas de Ciência, Tecnologia e Inovação. Pude analisar esses aspectos à luz da minha experiência, vislumbrar melhor os limites que se apresentaram nas experiência soviética nessas áreas.
Qual a relação que a URSS teve com certa introdução da questão social numa agenda global?
Ela foi absolutamente central. Para além do sistema alternativo ao capitalismo que a URSS gerou, consolidou e desenvolveu ao longo de um período relativamente prolongado, do ponto de vista da civilização humana, a marca da Revolução Russa é ter introduzido a questão social na agenda mundial.
E o fez de duas maneiras. Primeiro diretamente, porque em um breve espaço de tempo, a partir da socialização da propriedade, ela reduziu radicalmente a desigualdade na sociedade soviética. Não se tratou de igualitarismo, mesmo porque não se sustenta uma política igualitarista no socialismo. Mas reduziu brutalmente a desigualdade, promoveu direitos sociais amplos – o direito ao trabalho, à saúde, educação, cultura. Foi uma sociedade de expansão de direitos, claro que que com algumas contradições, em determinadas áreas relativas a direitos civis, evidentemente. Mas, no global, foi uma agenda de realização de direitos, redução de desigualdades, promoção social.
Só que, além disso, teve um impacto indireto também, no contexto da Guerra Fria, de promoção da questão social. Porque a existência do campo socialista representava uma ameaça e isso gerou um contexto histórico em que havia maior predisposição para concessões aos movimentos sociais – entre eles o sindical – por parte dos governos e das elites no mundo capitalista.
Não haveria como pensarmos a gênese e a consolidação do Estado de bem-estar social na Europa Ocidental, não fora o contexto de ruptura sistêmica e ameaça que o campo socialista representava para os países capitalistas. Então eles também introduziram de maneira indireta a questão social na agenda mundial.
Introduziram também a questão nacional, em alguma medida?
Em alguma medida não, em toda medida. Já se passaram cem anos. Às vezes, olhamos para trás e pensamos no sistema internacional de um século atrás como se fosse o de hoje. Não era. O sistema internacional, há um século, era fundamentalmente europeu, com algumas ramificações para além da Europa, com participação dos Estados Unidos, de algumas potências. Mas metade do território do globo era incorporado ao sistema internacional via dominação colonial: África retalhada. Ásia também, subjugada.
E aí vemos uma das contribuições decisivas da Revolução Russa. E aí é uma contribuição teórica específica do Lênin, na sistematização que ele faz sobre o desenvolvimento do imperialismo como uma fase do capitalismo, ele identifica nas lutas de libertação nacionais, anticoloniais e ainti-imperialistas uma vertente estratégica do movimento revolucionário mundial. E ele incorpora, no programa do Partido Bolchevique – mas defendendo isso para o conjunto dos partidos socialistas e revolucionários , que a bandeira da autodeterminação deveria ser assumida como ponto programático fundamental na luta contra o imperialismo.
E essa orientação se transformou em política de Estado, em política externa da URSS, primeiramente, e depois de todo o campo socialista, que passou a dar apoio militar, político, diplomático e econômico a todas as lutas de libertação nacional. E isso teve um impacto decisivo nos processos de descolonização do século 20.
Então um dos impactos da Revolução Russa foi constituir o sistema internacional como o conhecemos hoje, um sistema que abrange todo o globo, com Estados pelo menos formalmente soberanos – sabemos que muitas vezes essa soberania é limitada pela desigualdade de poderes -, mas é um sistema internacional organizado pelo princípio da soberania dos Estados e do respeito aos direito de autodeterminação, baseado no princípio da não intervenção. Isso é uma realização da Revolução Russa, em grande medida. E é um legado duradouro, que molda o mundo em que vivemos no século 21.
O que você aponta como diferença fundamental entre a industrialização ocorrida no período czarista e o desenvolvimento do poder industrial soviético no pós-revolução, até mais ou menos a grande guerra patriótica?
Acho que há paralelos entre as duas experiências, porque a industrialização czarista é uma experiência de industrialização atrasada em relação aos pioneiros do capitalismo, como a Inglaterra, e mesmo em relação aos Estados Unidos e outros países que tinha tomado a dianteira. E, justamente pela ausência de um capital privado endógeno acumulado, o Estado teve que entrar financiando fortemente o processo de industrialização e, portanto, promovendo a transição para o capitalismo, sobretudo nas cidades, de forma acelerada.
E, desde o primeiro momento, assumiu uma característica que era de investimento prioritário em grandes empresas altamente concentradas – grande concentração de operários por empresas -, prioridade para a indústria pesada para acelerar o processo de industrialização e uma extração do excedente do campo para financiar o esforço de industrialização, embora o campo fosse ainda dominado em grande medida por relações pré-capitalistas na Rússia antes da revolução.
Essas características foram reproduzidas na experiência de industrialização da União Soviética, sobretudo a partir do final dos anos 20, com o lançamento dos primeiros planos quinquenais, que obedeceram a uma lógica de defesa geopolítica.
Havia dois caminhos em discussão. O caminho preferido, nos anos 20, era o da Nova Política Econômica (NEP), grosso modo uma política como a da China hoje: múltiplas formas de propriedade, transição mais gradual, ampla operação de relações mercantis. Só que esse caminho não gerava a velocidade de industrialização necessária para criar uma base industrial que pudesse ser convertida para defesa, caso a URSS fosse invadida.
Isso gerou a opção, no fim dos anos 20, por uma industrialização acelerada, uma coletivização forçada da agricultura e, portanto, também uma extração de excedentes da agricultura para financiar a industrialização, em que o esforço reproduziu várias características da industrialização czarista.
E quanto às diferenças?
A grande diferença é que essa intervenção do Estado, ao invés de ser temporária para criar as bases do capitalismo na indústria, na URSS ela foi o caminho da transição para o socialismo. Essa participação do Estado, a estatização das forças produtivas, era vista como uma solução contínua e não como expediente temporário para alimentar um ciclo de desenvolvimento capitalista interno que pudesse constituir uma burguesia russa mais sólida. A grande diferença é essa.
Uma segunda grande diferença é que, no caso da industrialização czarista, houve grande participação de capital estrangeiro: financiamento, bancos, sobretudo Inglaterra e França e também Alemanha.
No caso da industrialização socialista soviética, isso não houve quase. Porque a opção foi pela socialização da propriedade. Mas, mesmo no período na NEP, quando havia concessões feitas para a atração de investimentos estrangeiros, eles se mantiveram bastante limitados. Não por falta de vontade, mas acho que pelas desconfianças. Havia o mal-estar gerado pela anulação da dívida externa, uma das primeiras medidas da revolução ,que evidentemente o capital financeiro internacional não viu com bons olhos. Houve uma deterioração também na situação internacional. Então a expectativa de investimento estrangeiro que a NEP havia levantado não se confirmou.
Há um papel diferente de participação do capital internacional nos dois esforços de industrialização. Então, um era uma industrialização capitalista, com forte participação de capital externo. Na URSS, foi industrialização socialista que acabou prescindindo de investimentos do capital externo.
Várias análises sobre a revolução e também sobre o desenvolvimento da URSS – críticas apaixonadas sobre a experiência – se dividem em concebê-la entre totalitária ou, de uma forma evolutiva linear, socialista desde o começo. Em que medida essas concepções se distanciam da realidade?
Primeiro acho que nos cabe ter uma visão materialista do socialismo e, não, romântica. Há um tipo de pensamento muito prevalente na intelectualidade progressista. Como ela é crítica do capitalismo, ela constrói, na crítica ao capitalismo, um ideal do que seria uma sociedade alternativa ao capitalismo e mede as experiência revolucionárias vendo até que ponto elas se aproximam ou não desse ideal anticapitalista.
Eu acho que essa não é a melhor forma de abordar a questão, porque não se discute em nenhum momento a viabilidade dessa alternativa ou se é mera crítica romântica do capitalismo. Meu ponto de partida é a síntese do projeto de emancipação, feito pelo próprio Marx. Ele diz que, se pudesse sintetizar o programa de emancipação, [o central] seria a abolição da propriedade privada.
No caso da URSS, você tem, desde a revolução, um Estado que tem por orientação a superação da propriedade privada e a socialização da propriedade, embora isso pudesse ser visto, como foi na NEP, como um processo muito prolongado e gradual. Mas essa perspectiva e essa orientação existia. A partir da industrialização socialista e da coletivização dos anos 30, efetivamente, houve a expropriação quase integral de propriedade privada na URSS.
Então as bases fundamentais do socialismo foram erguidas. E só podemos entender a trajetória soviética a partir dessa realidade: ela gerou uma sociedade igualitária, não igualitarista, com grande redução das diferenças sociais, grande redução da desigualdade, porque eliminou o principal motor da produção e do agravamento de desigualdade na sociedade capitalista, que é a propriedade privada.
Então, para mim, é uma experiência socialista. Mas, assim como você tem sistemas capitalistas com variadas formas de regimes, o socialismo pode ter várias configurações de poder político, mais ou menos democráticos. E a URSS foi isso, teve diferentes momentos de configuração.
Para mim, é uma experiência socialista, mas que sempre enfrentou, ao longo da sua trajetória, um cerco hostil, que limitava inclusive o potencial do desenvolvimento democrático interno da sua sociedade, porque ela tinha que tornar a sua defesa, a sua preservação, uma de suas principais preocupações. Isso afetou enormemente toda a evolução da revolução soviética, seja na política econômica, mas também nas caraterísticas que o Estado assumiu, de fusão entre partido e Estado, que foi produto da Guerra Civil e mantida a partir de então, diante de tentativas de desestabilização.
Quanto a esse conceito totalitário, eu sou muito crítico. Em última instância, é um conceito liberal, porque é sempre a imagem do indivíduo contra o Estado, e eu acho que não capta adequadamente a evolução dessa sociedade, porque é como se os indivíduos não tivessem qualquer autonomia, participação, fossem totalmente subjugados. É quase uma peça de ficção científica, mas a premissa teórica é liberal.
Mas claro que acho que a defesa de direitos civis é uma contribuição do liberalismo para a humanidade, é uma dimensão que eu acho que faltou se desenvolver nas experiências socialistas. Mas isso não as transforma em experiências totalitárias, com total massacre, escravização, subordinação do indivíduo a um Estado onipresente, onisciente. Acho que essa é uma visão bastante exagerada. Aliás, se fosse isso, não teria nem colapso, porque o controle desse Estado seria total sobre o funcionamento do sistema. E não foi isso que aconteceu. Quer dizer, era uma sociedade também eivada de contradições, tensões e conflitos de interesses contrapostos.
Quais são as principais caraterísticas da formação do sistema socialista mundial no imediato pós-guerra?
Há dois momentos. No primeiro, antes de a Guerra Fria se intensificar, a posição da URSS em relação aos países que haviam sido libertados por intervenção direta do Exército Vermelho na Europa central e do Leste ou por movimentos de resistência antinazista dirigidos por partidos comunistas era uma política muito mais orientada para a NEP do que de transplante do sistema soviético. Nos primeiros dois, três anos, toda a posição da direção do Estado e do Partido Soviético era de cautela, de que os partidos desses países não deveriam radicalizar o processos nem copiar a experiência soviética.
No entanto, com a escalada da Guerra Fria, mais uma vez as considerações sobre defesa e geopolítica é que predominam e há uma política de enquadramento dos países do campo socialista num modelo socialista soviético. Há a formação do Conselho de Assistência Econômica Mútua, mas isso em resposta à reestruturação da economia mundial capitalista, ao papel do Plano Marshall e das instituições multilaterais do sistema capitalista (Banco Mundial e FMI).
Em resposta a isso, foi constituído o sistema socialista mundial, que em última instância generalizou para todos aqueles países práticas que haviam conformado a trajetória da URSS, o que é questionável, porque a realidade daqueles países já não era a de isolamento que a URSS havia enfrentado nos anos 20 e 30. A própria guerra tinha reconfigurado a correlação de forças no sistema internacional.
Mas, basicamente, seguiram o mesmo caminho, quer dizer, coletivização da terra num primeiro momento (depois em alguns países houve um recuo), industrialização acelerada. E a integração no Conselho de Assistência Econômica Mútua procurava justamente coordenar os planos de desenvolvimento dos diversos países socialistas.
A princípio, a ideia era que cada um teria uma base industrial diversificada. Com o tempo, avançou-se em uma política de especialização produtiva. Era um sistema mundial que operava em lógica distinta, porque a moeda de referência era o rublo conversível, mas era uma moeda de referência de valor só da planificação, porque ela não poderia ser convertida nem dentro dos países do bloco soviético. As moedas de todos os países ficaram inconversíveis nos mercados monetários ocidentais, então era um sistema que operava em lógica distinta da operação do sistema capitalista.
Por isso eram dois sistemas mundiais de fato e sua constituição significou uma ruptura. E, nos anos 50, antes das divergências se intensificarem, o campo socialista chegou a abarcar um terço da população do planeta e cerca de um quinto do território. Embora o capitalismo sempre tenha sido hegemônico, era um sistema nada desprezível.
Quais foram os principais pontos que reorientaram a URSS no período Gorbachev?
A reorientação foi global. A marca inicial que representou de fato a capitulação foi o abandono da orientação anti-imperialista da política externa da União Soviética. Isso foi explícito. Quando ele lançou aquele livro, “Perestroika”, que foi best-seller no mundo em 1987, ele ainda escamoteava um pouco a questão, dizia que deviam predominar valores universais, sobre diferenças sistêmicas ou de classe social. Toda a humanidade deveria convergir para ações comuns, baseadas em valores universais, o que negava tanto uma interpretação de classe, portanto marxista, quanto a própria orientação anti-imperialista da política externa da URSS.
Mais adiante, isso foi revelado abertamente. O fundamento dessa reorientação era que a sustentação da política anti-imperialista era muito custosa para a União Soviética, que não podia continuar bancando o apoio político, militar diplomático e econômico para os movimentos de libertação nacional ou para os Estados de orientação socialista ou países que enveredassem por vias não capitalistas. Essa perspectiva era para ser abandonada e se deveria procurar se reintegrar aos povos dominantes da economia mundial, portanto capitalistas. Fruto do processo de unificação da Europa Ocidental, uma bandeira que levantavam muito era a ideia de um lar comum europeu, de restabelecer uma aliança com a Europa capitalista.