Neste dia 27 de outubro de 2017 está marcada a realização dos primeiros leilões das áreas do pré-sal para empresas estrangeiras, aplicando-se as novas regras da Lei nº 13.365, de 29 de novembro de 2016. De acordo com esta lei, proposta pelo Senador José Serra e aprovada após o golpe parlamentar do impeachment, a Petrobrás deixa de ser a operadora única da exploração das jazidas petrolíferas do pré-sal, podendo exercer uma espécie de direito de preferência. A garantia da Petrobrás como operadora única do pré-sal fazia com que o ritmo de investimento e de produção de todos os projetos do pré-sal, bem como a decisão sobre eventuais associações e com quem se associar, permanecessem nas mãos da União. Isso para não mencionar as funções de controle sobre o impacto ambiental e apuração correta da vazão e da quantidade de petróleo extraída, todas até então exercidas pela Petrobrás. Sem a Petrobrás como operadora única do pré-sal também se torna inviável estimular a indústria nacional, por meio das políticas de conteúdo nacional. Políticas estas que geram empregos aqui no Brasil e estimulam o desenvolvimento de nossa capacidade industrial. A política de incentivo à inovação tecnológica, que gerou toda a vanguarda da Petrobrás na exploração de petróleo em águas profundas ficou também prejudicada com a retirada da estatal como operadora única do pré-sal.

O Brasil, assim, se tornou o único país do mundo que abriu mão deliberadamente do controle de suas jazidas petrolíferas, destruindo uma política de desenvolvimento fundada na industrialização e no controle nacional dos nossos recursos naturais implementada desde a Revolução de 1930 e que se manteve, com avanços e recuos, mesmo com a ditadura militar de 1964 e após a redemocratização.

O Brasil necessita de uma infraestrutura complexa, capaz de articular as várias regiões do país. A prestação dos serviços públicos de energia e comunicações precisa ser acompanhada de preços básicos, o mais uniformizados possível, e instalações interligadas, para que não se excluam regiões e setores inteiros e importantes da possibilidade de participar do mercado interno e do mercado internacional. Além das filiais das empresas multinacionais, o Brasil era dotado de algumas empresas estatais globais pelo seu tamanho, capacidade técnica, financeira e organizacional para operar tanto no país como no exterior e dotadas de um sistema de planejamento estratégico, que eram responsáveis por grande parte da infraestrutura e do desenvolvimento tecnológico do país: a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobrás, a Eletrobrás e o Sistema Telebrás (em conjunto com a Embratel).

Ao invés de dotar estas empresas de maior capacidade operacional e reforçar o controle público e a transparência sobre seus recursos, o Governo Fernando Henrique Cardoso optou por desmontá-las, cortar seus investimentos e desestruturar suas finanças, a fim de justificar a privatização da maior parte delas, particularmente a Companhia Vale do Rio Doce e a Telebrás. Hoje, o governo golpista de Michel Temer tenta terminar o serviço, desestruturando propositalmente a Petrobrás e desejando privatizar a Eletrobrás. A privatização das empresas estatais significou a desestruturação dos sistemas energético e de comunicações integrados, que eram fundamentais para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais, como o brasileiro, e uma inserção internacional competitiva, não subordinada. A fragmentação das empresas estatais de infraestrutura substituiu, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas.

O contexto histórico da luta dos países em desenvolvimento por independência política e emancipação econômica tornou as empresas petrolíferas estatais e muitas empresas mineradoras estatais entidades quase sagradas, personificando o controle soberano sobre os recursos naturais. As empresas estatais são instrumentos da política econômica nacional dos seus Estados, atuando de acordo com os objetivos estratégicos e de bem-estar social do Estado, indo muito além da mera busca de rentabilidade. Neste sentido de símbolo de afirmação nacional, são significativas as palavras de Barbosa Lima Sobrinho: “A Petrobrás, desde a sua criação, foi mais que uma empresa pública. Surgiu como emblema da nacionalidade, a sigla mística que podia abranger e reunir o maior número possível de brasileiros fiéis à sua pátria. Petrobrás era um símbolo que, por si só, despertava emoções, como se a sua missão fosse a de acender estrelas, para iluminar o céu do futuro do Brasil” 1.

Um dos mitos mais presentes no imaginário brasileiro é o mito do Brasil como o país que tem um “encontro marcado com o futuro”. Porém, para as elites brasileiras, o futuro só poderia ser a cópia do estilo de vida dos países desenvolvidos, cujo usufruto teria que ser limitado a estas elites, para que não perdessem sua posição de hegemonia oligárquica no sistema. A construção da Nação, assim, nunca foi um projeto das elites, nem a integração da população. O seu objetivo limita-se à sua integração subordinada ao mercado internacional. .

O Brasil, em seu processo de formação econômica, sempre oscilou entre duas grandes tendências e a exploração do pré-sal poderia conduzir o país tanto em uma, como em outra direção. Uma é a constituição de um sistema econômico nacional, autônomo, com os centros de decisão econômica internalizados e baseado na expansão do mercado interno, em um processo de desenvolvimento vinculado a reformas estruturais. Essa alternativa está sendo destruída pelo governo golpista instaurado em 2016. .

A outra consiste no modelo dependente ou associado, com preponderância das empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional, dependente financeira e tecnologicamente e vinculado às oscilações externas da economia mundial, gerando, nas palavras de Sergio Buarque de Holanda, uma verdadeira “procissão dos milagres”: “Tivemos também os nossos eldorados. Os das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão dos milagres há de continuar assim através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República”2. O petróleo, para os entreguistas e privatizadores, seria apenas o último desses “milagres”.

O leilão do pré-sal, caso se realize, será mais do que um leilão de áreas de exploração de petróleo, será um leilão sobre o futuro do país. O que o Brasil será no século XXI estará sendo construído neste ato. Caso as multinacionais petroleiras tomem o pré-sal, estaremos com grandes riscos de sermos apenas mais um fornecedor de óleo cru e de matérias primas, sem qualquer perspectiva de desenvolvimento e de integração social. Seremos apenas mais um Estado rentista, cuja oligarquia vive de parasitar as rendas obtidas com a venda de produtos primários e da superexploração da nossa mão-de-obra.

No entanto, a história e o futuro podem ser diferentes. O povo brasileiro já se mobilizou em outros tempos para defender nossa soberania e nosso petróleo. A “Campanha do Petróleo” foi a maior mobilização popular e social da história do Brasil em defesa de algum projeto de desenvolvimento. Não haveria nada similar antes, nem depois. A campanha abriu espaço para a manifestação política popular, cuja mobilização era uma novidade na história do país. Um projeto nacional de desenvolvimento precisa estar presente no imaginário coletivo da sociedade, sob pena de não sair do papel. Afinal, não é um simples plano de governo, mas uma construção coletiva que busca essencialmente os objetivos de uma sociedade melhor, mais igualitária e mais democrática no futuro. A existência de um marco simbólico que agregue a maioria dos cidadãos é imprescindível. A “Campanha do Petróleo” conseguiu realizar isto, ao defender a soberania nacional.

A aprovação do monopólio estatal do petróleo não teve como causa única a “Campanha do Petróleo”, mas, certamente, a campanha contribuiu de modo decisivo para influenciar as lideranças políticas e foi crucial para o Presidente Getúlio Vargas se posicionar diante das pressões provenientes do governo norte-americano. A Petrobrás, como bem afirmou Barbosa Lima Sobrinho, é uma conquista do povo brasileiro, cujo irresistível movimento de opinião superou todos os obstáculos para fazer prevalecer a vontade nacional. O que a “Campanha do Petróleo” revelou foi uma dimensão política não esperada para um projeto nacional de desenvolvimento. Afinal, o que se estava decidindo não era apenas a forma de exploração de um recurso mineral estratégico, mas a própria soberania econômica nacional. A causa do petróleo foi identificada à afirmação da soberania nacional.

Na “Campanha do Petróleo” houve a tentativa deliberada de criar em torno do tema do petróleo a identidade com a soberania nacional e a perspectiva de fundação de um novo país, um país soberano e industrializado. A “Campanha do Petróleo”, ao defender a soberania econômica do Brasil, propunha que se completasse a superação da economia colonial e se fizesse efetiva a Nação. É neste sentido que devem ser compreendidas as palavras proferidas pelo General Horta Barbosa, durante célebre conferência no Clube Militar, em 30 de julho de 1947: “O petróleo pertence à Nação, que há de dividi-lo, igualmente, por todos os seus filhos” 3.

Se os golpistas entregarem o pré-sal para as multinacionais, nós o retomaremos. Mais cedo ou mais tarde, o pré-sal será reconquistado pelo povo, a Petrobrás será reerguida como grande empresa integrada de energia, a Eletrobrás, a Telebrás e a Companhia Vale do Rio Doce serão reestatizadas. Os setores estratégicos da nossa economia serão renacionalizados. O futuro do Brasil não será o de uma colônia primário-exportadora, dominada por oligarcas parasitas e prepostos de multinacionais, mas de uma nação desenvolvida, industrializada e que garantirá iguais oportunidades sociais e econômicas para todos os seus filhos. Podemos até perder momentaneamente a batalha do pré-sal. Mas a guerra pela retomada do controle nacional sobre nosso território e nossas riquezas só está começando.

1. Barbosa LIMA Sobrinho, “Prefácio” in Euzébio ROCHA, Petróleo: Um Depoimento à Nação, Cadernos de Debate nº 4, São Paulo, Brasiliense, 1977 pp. 10.
2. Sergio Buarque de HOLANDA, Visão do Paraíso – Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, 5ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1992, p. 334.
3. Júlio Caetano Horta BARBOSA, “Problemas do Petróleo no Brasil” in Maria Augusta Tibiriçá MIRANDA, O Petróleo é Nosso: A Luta contra o “Entreguismo”, pelo Monopólio Estatal, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 494. 

*Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Publicado em Conversa Afiada