Sobre a nossa impotência a respeito dos paraísos fiscais
Para não perder o sentido da realidade – um bom amigo me deu este conselho outro dia – o melhor que podemos fazer é pensar com perspectiva até onde as nossas demandas de justiça social são viáveis, a cada certo momento. Assim chegamos a uma racional conclusão de uma conversa sobre o escândalo batizado como “Paradise Papers”, depois de corroborar nossa absoluta ineficácia discursiva para enfrentar as lógicas do capitalismo global atual. Sua hegemonia é tão evidente que torna perigoso contradizer os erros perversos do sistema redistributivo do Estado Social, pensando em melhorá-lo. De uns tempos para cá, este se tornou o último espaço de resistência contra essa revolução, aparentemente desterritorializada, impulsada pelo 1% da população mundial – verdadeiro sujeito nômade – contra os demais 99%, cada vez mais dependentes desse Estado.
É lamentável que este cenário macabro seja traduzido geralmente como uma luta entre os vencedores e perdedores da globalização. Embora seja correto dizer que os “penúltimos” forçadamente levados a pisotear os “últimos”, estes e aqueles deveriam ser conscientes de que seu antagonismo é o resultado de estar compartilhando um mesmo espaço físico, o Estado nação, colapsado há décadas por um sistema de expropriação mundial que conta, como elemento indispensável para o seu funcionamento, com a capacidade de arrecadação estatal.
O Estado arrecada e, cada vez com menos recursos, redistribui o que consegue arranhar a todos aqueles que não contam com poder suficiente para proteger o seu dinheiro a salvo em paraísos fiscais. A falta de recursos fiscais é compensada com o endividamento público, que cresce e concede veracidade ao dogma da austeridade. Assim, aparecem os cortes no Estado de bem estar junto com uma carga de impostos cada vez maior sobre os setores sociais com rendas médias e baixas – ambas, geralmente, fruto do trabalho –, já que posteriormente será necessário priorizar o pagamento da dívida – visando manter abertas as fontes de financiamento – em detrimento da sustentação e/ou da qualidade de alguns serviços públicos. O Estado arrecada, sim, mas o faz junto com esse trabalho de estratificação social, que seciona as maiorias sociais e as transforma em grupos antagonicamente enfrentados.
Quando se fala da incapacidade do Estado para enfrentar os desafios do mundo globalizado, muitas vezes se esquece – e as vezes conscientemente – a indispensável função do Estado no sistema atual. Aliás, a grande maioria dos territórios que englobam a lista de paraísos fiscais são Estados soberanos, alguns deles, vergonhosamente, membros da União Europeia com plenos direitos. Para pensar que um acordo internacional poderia colocar um freio na movimentação desenfreada de capitais bastaria imaginar uma simples ligação da chanceler alemã, que poderia, por exemplo, disseminar o pânico em todo o Principado de Liechtenstein. Seria esta, então, uma questão de vontade política – ou a falta dela –, mas seria mais adequado começar falando sobre a soberania.
Para lutar contra os paraísos fiscais é preciso uma transformação radical do Estado, pois ambos formam parte do emaranhado de poder que sustenta o capitalismo global. O Estado extrai recursos da sociedade que, a partir daí, através dos mecanismos da dívida soberana, o mais provável é que acabem ingressando às redes dos paraísos fiscais, para logo voltar ao Estado em forma de financiamento nos mercados internacionais. O resultado é uma transferência de renda invertida, ou seja, das classes média e baixa para as elites. Não há democracia merecedora de tal nome que aguente tamanho crescimento das desigualdades. Porém, se nos concentramos na questão da capacidade expropriatória das élites, vemos que não há tampouco, e paradoxalmente, Estados mais consolidados que os atuais.
É por isso que a crise dos sistemas político-sociais dos últimos tempos puderam conviver “pacificamente” com uma política econômica ortodoxa. A União Europeia é o exemplo paradigmático disso. O desmantelamento paulatino dos sistemas sociais nos Estados membros supõe, em muitos casos, a quebra dos sistemas políticos tradicionais. Mas essa quebra deu lugar a uma recomposição coerente com a lógica das políticas de austeridade e a intervenção neoliberal da economia. A crise foi resolvida através da desestabilização controlada das sociedades, como se uma transformação tão profunda só pudesse provocar um mínimo de desabafo social, o simulacro político que vemos hoje em dia. Por tudo isso, os contínuos apelos à perseguição dos paraísos fiscais pecam pela ingenuidade, se não assume sua condição de engrenagem de uma máquina expropriatória que necessita, mais do que nunca, do Estado. Neste sentido, visto que a realidade fiscal se encontra partida em duas – entre esse 1% desterritorializado e os outros 99% acorrentados pelo Estado –, acabar com as políticas de repressão salarial ou um aumento considerável do salário mínimo faria mais contra as fraudes fiscais que as impotentes campanhas a favor da transparência financeira internacional.
Todas essas forças desperdiçadas em perseguir fluxos de capitais poderiam ser redirecionadas ao corpo sólido do trabalho, em favor de aumentos reais de salário, na luta definitiva contra um rival de tamanha envergadura. Este é, vendo com perspectiva, o campo de batalha mais acessível para que não cheguemos a novas frustrações, uma atrás da outra.
* Victor Prieto é cientista político da Universidade Complutense de Madrid.
Publicado em Carta Maior