Ditadura e memória. A memória da ditadura
Trabalho no momento pesquisando as ditaduras dos anos 1970-1980 na América Latina, e o período “pós-ditadura”, chamado na Espanha de “transição”. Uma pergunta tem me deixado obcecado: por que, ao fim de uma ditadura, quem mais lutou (os comunistas, na Espanha e outros países, a esquerda no Chile, no Uruguai etc.) não é capaz de capitalizar politicamente, eleitoralmente, o sangue derramado por seus militantes?
Ao longo dos anos, conversei com vítimas, guerrilheiros, “clandestinos”, “heróis” anônimos, resistentes, pessoas que sofreram torturas, famílias cujos membros foram enterrados em valas comuns. Sou contatado frequentemente por filhos, filhas, netas e netos de “desaparecidos” em busca da verdade. Como alguns homens se transformam em carrascos fascistas, em “bestas”? Um dos sobreviventes, marxista, me respondeu, numa conversa que tivemos na década de 1990: “uma ditadura é um projeto econômico”. Bem notado.
Os “conselheiros” econômicos de Washington, os “Chicago-boys”, treinados na escola “liberal” de Milton Friedman, utilizaram Pinochet para implantar o ultraliberalismo no Chile, antes de Thatcher, antes Reagan. Na Argentina (Golpe em 1976), no Uruguai (Golpe em 1973), no Paraguai (a mais longa ditadura, junto com a Nicarágua), no Brasil (o Golpe mais antigo, em 1964), na Bolívia… os grandes grupos econômicos enriqueceram com o esmagamento das camadas populares e do movimento operário, e com a superexploração.
A tortura não é, portanto, um comportamento irracional de um pequeno grupo de homens sádicos: é parte do projeto econômico das oligarquias e os torturadores apenas a “executam”. É uma tecnologia, tem laboratórios e escolas (Escola Superior de Mecânica da Armada – ESMA, em Buenos Aires, Villa Grimaldi, Ciudad Libertad, no Chile; no Brasil, o Centro de Instrução de Guerra na Selva, que contou com as lições do general francês da OAS Paul Aussaresses, adido militar em Brasília). A tortura, o afogamento, os choques elétricos, destinam-se a arrancar “informações”, a “fazer falar” e, se necessário, a fazer o torturado escutar gravações dos gritos de um membro de sua família sendo torturado, mas especialmente visa assegurar que “os outros” saibam que fulano morreu sob tortura. Assim, se aterroriza e se paralisa toda a população. Como parte da Operação Condor na América Latina, os torturadores dos “serviços secretos”, controlados pela CIA, cruzavam os países, sequestrando e atirando os inimigos de aviões no Rio da Prata (“voos da morte”).
Eles viajavam como “especialistas” de Santiago a Paris, Roma, Madri, rastreando militantes latinos, ajudados pelo serviço de informação francês (Direction de la Surveillance du territoire, DST). A jornalista e documentarista Marie-Monique Robin denunciou corajosamente esta “internacional da repressão”.
Após a Guerra da Argélia, especialistas militares franceses (diplomados em “cadeira do dragão” e execução sumária), criaram uma “missão militar” em Buenos Aires para treinar “assessores” para a “luta contra o terrorismo” em todo o continente. Eles inventaram até uma nova linguagem, como nos contou o romancista Carlos Liscano, que ficou preso por muitos anos no Uruguai, assim como Pepe Mujica, por simpatizar com os Tupamaros.
Esta nova linguagem: “terroristas, comunistas, vermelhos, subversivos, anti-guerrilha, desaparecidos, ações de assédio, segurança, proteção de cidadãos, limpar, eliminar, guerra contra comunistas” foi imposta como forma de governo. Na pós-ditadura, a chamada transição, as classes dominantes tentam apagar a memória da resistência à ditadura, forçando a língua a continuar a mentir. Isso permite que continuem a explicar o mundo do ponto de vista do seu projeto “liberal”, e que o medo e o vocabulário da ditadura sejam integrados por várias gerações de “vencidos”. Quantos revolucionários votam de forma “moderada” e “consensual”, para não “despertar fantasmas”, ainda hoje? O medo é transmitido de geração em geração. O terror atingia até mesmo as crianças. Um amigo uruguaio nos contou como seus pais o proibiam de utilizar algumas palavras fora de casa, ou de falar da intimidade. Todos tinham que mentir. Os militantes mentiam entre eles. Ser inocente não bastava. Era preciso ser partidário e submisso, um bom cidadão – mas qualquer um podia se tornar suspeito.
O objetivo da violência era disciplinar a população enquanto o projeto econômico era aplicado. E a memória da violência serve ao mesmo objetivo.
Mesmo muito tempo depois do fim de uma ditadura, parte da população continua a viver na mentira; a ameaça do terror permanece incrustada na mante. A tortura é corporal, mas a herança do terror é a destruição de ideais e da história pessoal. A ditadura do esquecimento e do silêncio, a linguagem e a memória do vencedor impõem uma sociedade de consenso, de “democracia” de baixa intensidade que paralisa a divergência e o questionamento do “modelo neoliberal” e produz gerações que desconhecem o passado.
Não cedamos ao terror, mesmo que herdado, dos artesãos deste memoricídio. Não deixemos ser esquecida a memória operária e popular. Reivindiquemos nossas palavras, nossas lutas de classe.
Tradução de Clarisse Meireles para Carta Maior