A Revolução Russa deixou um legado e marcas profundas na evolução do sistema internacional, e marcas profundas para toda a humanidade. A Revolução Russa tem como marca principal o fato de ter dado origem à primeira experiência mais prolongada de estruturação de um sistema econômico e político alternativo ao capitalismo no mundo. Ao longo de sua trajetória, a Revolução Russa cindiu a antiga economia capitalista mundial em dois sistemas mundiais opostos e antagônicos: um capitalista, que se manteve globalmente hegemônico no mundo, e outro socialista que, apesar de se manter em condição contra-hegemônica, chegou a abarcar mais de um terço da população do planeta e quase um quinto do seu território.

Essa ruptura sistêmica constituiu a ordem mundial da guerra fria que dominou a evolução do sistema internacional na maior parte da segunda metade do século 20, não se tratando apenas, portanto, de um confronto geopolítico tradicional, e sim de uma polarização intersistêmica de novo tipo no mundo.

Nos marcos dessa clivagem intersistêmica, a Revolução Russa introduziu a questão social na agenda mundial, de forma abrangente e profunda, tanto por suas realizações diretas na acelerada redução da desigualdade, no contexto da socialização dos meios de produção, e na promoção ativa de direitos sociais, como o acesso à educação, o acesso e o direito à saúde, o acesso à cultura e à produção cultural, a ampliação de direitos do trabalho, inclusive o direito ao trabalho, o fim do desemprego, a expansão dos direitos da mulher e a ativa promoção da inserção da mulher na esfera pública – realizações dessa experiência.

A questão social na agenda mundial

Mas ela também incluiu a questão social na agenda mundial de forma indireta, criando um contexto no mundo, e sobretudo nas fronteiras da guerra fria na Europa, em que as elites do mundo capitalista – elites econômica e política – tiveram que fazer concessões aos movimentos sociais, ampliando os direitos sociais, ampliando os direitos trabalhistas e constituindo nos países capitalistas os Estados de Bem-Estar. Esses Estados de Bem-Estar não existiriam não fosse a ameaça, vista pelas elites capitalistas, da existência da União Soviética, e da existência do campo socialista.

Imperialismo e colonialismo

Devemos também à Revolução Russa o formato atual do sistema internacional. Porque muitas vezes nós olhamos para trás e achamos que o sistema internacional que existia há cem anos atrás é o mesmo que existe hoje. No entanto, há cem anos atrás, praticamente metade do território do planeta estava sob jugo de potências coloniais capitalistas, ou por colonização aberta e direta, ou por subjugação de governos que mantinham uma independência formal, mas se rendiam, eram subordinados ao poder extraterritorial de potências coloniais.

A União Soviética, e em seguida o campo socialista, incorporou a luta contra o colonialismo, a luta contra o imperialismo como pedra angular das suas políticas externas. E por conta disso, o mundo viveu os processos de descolonização que varreram o sistema internacional no século 20, dando ao sistema internacional a conformação que ele tem hoje, baseada, pelo menos formalmente, nos princípios da autodeterminação dos povos e do direito à sua organização nacional, e no reconhecimento, pelo menos formal, da igualdade entre os Estados.

A URSS desempenhou papel decisivo na derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. Apenas um dado fundamental que materializa essa contribuição da revolução soviética para a humanidade é que quase 80% de todas as baixas sofridas pelas forças do Eixo, sob o comando da Alemanha de Hitler, na Segunda Guerra Mundial, foram causadas pela resistência dos povos soviéticos e do exército vermelho contra a invasão da URSS na operação Barbarossa. A URSS conquistou essa vitória perdendo 20 milhões de cidadãos. Um sexto da sua população perdeu a vida para garantir à humanidade a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

Ciência e tecnologia

Outra contribuição fundamental da Revolução Russa para a humanidade foi o seu impacto sobre o desenvolvimento científico e tecnológico mundial. Desde o início, a URSS investiu fortemente em educação, em ciência básica, se constituiu como uma potência científica mundial, e alcançou, sobretudo no pós-guerra, a dianteira tecnológica em áreas importantes, e entre as quais se destaca a área aeroespacial, com o lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik, e a primeira viagem humana ao espaço com o cosmonauta Gagarin, em 1961.

Essa dianteira científica e tecnológica alcançada pelo mundo do socialismo gerou uma reação aterrorizada das elites dos países capitalistas, que passaram a investir pesadamente em ciência e tecnologia para tentar recuperar a dianteira científica e tecnológica no mundo. Algumas instituições fundamentais de ciência e tecnologia que nós conhecemos – como a Nasa – são uma reação direta às conquistas científicas e tecnológicas da Revolução Russa. No Ministério da Defesa dos Estados Unidos criou-se uma unidade especial para financiar projetos estratégicos, o Darpa, agência para projetos avançados de defesa, que procurava justamente se contrapor à dianteira alcançada pela União Soviética.

É fruto, justamente dessa reação, que essas instituições investiram em rupturas tecnológicas que hoje conformam o que nós chamamos de terceira revolução industrial, ou revolução tecnocientífica informacional. Ou seja, a sociedade do conhecimento foi criada no mundo sob o impacto da Revolução Russa, e em resposta a desafios científicos e tecnológicos realizados pela Revolução Russa.

Derrocada complexa

Ao comemorar e celebrar as realizações desses 100 anos, o fato é que, apesar dessas realizações monumentais, e do denodado heroísmo com que o povo soviético enfrentou e superou situações de extrema adversidade, a União Soviética foi desmantelada e o bloco socialista foi dissolvido no final do século XX. E isso sem enfrentar um confronto militar aberto, frontal, direto, com as potências capitalistas, com as quais a União Soviética já mantinha uma situação de paridade militar estratégica.

Compreender as razões e os fatores determinantes que levaram a esse colapso singular é fundamental para as forças que querem encontrar os caminhos para construção e afirmação de um socialismo renovado no século XXI.

Entendo que uma das razões fundamentais para esse colapso singular da URSS foram características particulares assumidas por seu sistema socialista no contexto de um cerco capitalista extremamente hostil e agressivo, que obrigou essa experiência original de socialismo a assumir a forma de uma economia socialista de guerra, com estatização integral de todas as forças produtivas e coletivização forçada da agricultura. Uma economia de comando administrativo de todas as principais decisões econômicas; de alocação administrativa centralizada de todos os fatores e insumos de produção; de conformação do poder altamente concentrado em torno da estrutura vertical de comando do partido dirigente dessas experiências.

Esse formato teve êxito na promoção do desenvolvimento da URSS, e dos demais países socialistas, no momento em que o desafio principal era o da modernização, da superação do atraso herdado. No entanto, quando o desafio principal passou a ser a elevação da produtividade social das unidades fabris já montadas, esse modelo de socialismo foi perdendo dinamismo. Ele foi tendo crescentes dificuldades para disseminar o progresso técnico na economia e na sociedade socialista.

E com isso a União Soviética foi perdendo dinamismo econômico à medida que não conseguia responder a essa encruzilhada, a esse desafio da inovação, precisamente no momento em que as principais potências capitalistas reestruturavam os seus padrões produtivos sob o impacto da terceira revolução industrial.

No meu entender, esse é um fator que está no coração do colapso daquelas experiências, porque gerou uma crise de perspectiva à medida que essas experiências foram incapazes de se renovar. Para enfrentar e superar a encruzilhada da inovação, ela instituiu uma crise de perspectiva na própria direção do Estado soviético, e de várias outras experiências socialistas na Europa central e do Leste.

Perspectiva da luta pelo socialismo no século XXI

Concluo indicando que me parece haver duas vertentes principais de renovação do socialismo, de renovação da perspectiva e da luta pelo socialismo no século 21.

A primeira são as experiências de reforma dos países que se mantêm como socialistas no mundo, atualmente, e que todos eles reestruturam os seus sistemas econômicos influenciados pela experiência da NEP, a Nova Política Econômica adotada pela URSS nos anos 1920, estruturando sistemas econômicos com variadas formas de propriedade, com predomínio da propriedade social, e expandindo a operação do mercado ainda que sob controle e direção do Estado. O sucesso dessas experiências de renovação do socialismo está no coração da profunda transição em curso no sistema internacional hoje, tendo como carro-chefe o desempenho econômico excepcional da China.

A segunda vertente de renovação da luta pelo socialismo no século 21 é a possibilidade de, no contexto do desenvolvimento desigual do capitalismo, onde as potências capitalistas centrais perdem dinamismo econômico por conta do caráter cada vez mais rentista e parasitário do capital financeiro; a possibilidade de estruturar projetos nacionais de desenvolvimento nos países capitalistas dependentes. E de construir, a partir desses projetos nacionais de desenvolvimento, novos polos econômicos e políticos no sistema internacional. Essa é uma possibilidade apontada teoricamente pelo próprio Lenin, dirigente da Revolução Russa, na sua teorização sobre o imperialismo. E, sem a existência de um campo socialista, a estruturação de projetos nacionais de desenvolvimento de conteúdo objetivamente anti-imperialista se transforma num caminho de acumulação de forças para o socialismo nos países capitalistas dependentes do século 21.

Portanto, é um caminho estratégico de acumulação de forças que será necessariamente prolongado, mas que vem já gerando êxitos importantes em países da semiperiferia e da periferia do sistema capitalista. Projetos nacionais de desenvolvimento como formas de acumulação de forças para o socialismo, com conteúdo objetivamente anti-imperialista na configuração e conformação do mundo do século XXI.

Já que o tom deste congresso é poético, quero me referir ao poema-tema do nosso congresso, de Thiago de Mello: “faz escuro, mas eu canto”. Se o colapso da União Soviética e do antigo campo socialista tornou ainda mais sombrio o escuro mundo do capitalismo, as profundas mudanças em curso no mundo indicam que “a manhã vai chegar”, como diz o poema que nos inspira. E se “outros outubros virão” – e virão –, que é o outro lema que está ali do lado, certamente esses outubros terão de trilhar caminhos diferentes do outubro original que lhe serve de inspiração.

Luís Fernandes, professor do Instituto de relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e da UFRJ.