Em artigo publicado simultaneamente nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo de 11 de março de 2018, muito reproduzido pelo país afora, o jornalista Elio Gaspari insiste num erro histórico ao afirmar que o “chefe político” e “o último comandante militar” da Guerrilha do Araguaia, João Amazonas e Ângelo Arroyo, “fugiram” dos combates. O equívoco de afirmações como essa é flagrado quando se confronta a versão com detalhes à vista de todos com algum conhecimento sobre o conflito no Araguaia.

Há uma vasta bibliografia que revela as circunstâncias em que João Amazonas e Ângelo Arroyo deixaram a região, como a obra Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas do professor Romualdo Pessoa Filho, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Embora conhecendo-a, Gaspari prefere ignorar os fatos ali revelados.

Não faz sentido, pelo encadeamento do que se tem de registro sobre o episódio, dizer que Amazonas “fugiu” de um lugar sem o menor vestígio de presença militar para onde voltaria logo depois, agora um local conflagrado. Ele e Maurício Grabois, como principais dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cumpriam tarefas regulares na cidade de São Paulo. Havia um sistema de revezamento, que circunstancialmente impossibilitou sua volta ao teatro da batalha.

Pelo sistema rotativo de cumprimento das atividades da direção do PCdoB em São Paulo, caberia a Maurício Grabois participar das comemorações do aniversário do Partido com a direção na capital paulista, em 25 de março de 1972. Mas, devido a um problema dentário de Amazonas, houve a troca e ele deixou a região, acompanhado de Elza Monnerat, no começo de março.

Após a reunião do Comitê Central, Elza Monnerat voltou ao Araguaia, com quatro militantes do PCdoB, e Amazonas foi providenciar o tratamento dentário. Ao entrar no Estado do Pará, o ônibus no qual estava Elza foi revistado por dois soldados e um dos militantes foi preso. Bem próximo à região da Guerrilha, ela avistou uma barreira do Exército. Havia outras no trajeto até Marabá, última parada antes da reintegração ao local da Guerrilha, mas os passageiros não foram incomodados. O Exército havia começado a luta contra a Guerrilha.

Elza Monnerat retornou por Anápolis, Goiás, onde por casualidade avistou Amazonas da rodoviária. Naquele mesmo dia, no final da tarde, ela conseguiu alertá-lo, com um sinal de negativo, sobre a ocupação da região por forças militares. Ambos, por caminhos diferentes, retornaram a São Paulo. Amazonas lamentou, mais de uma vez, a impossibilidade de voltar a se integrar à luta no Araguaia, indicando, como reconhecimento da bravura dos guerrilheiros e companheirismo aos seus camaradas, que as cinzas dos seus restos mortais fossem espargidas na região dos combates. 

O comando da Guerrilha fora desarticulado no curso da chamada “terceira campanha” da repressão, iniciada em 7 de outubro de 1973, a fase sinistra da guerra, na definição de um padre da região. A primeira providência foi criar um vazio em volta dos guerrilheiros, com ocupações, prisões e torturas. Quase toda a população masculina da região de atuação da Guerrilha foi presa. Casas, paióis e pontos comerciais foram destruídos.

Os militares montaram bases de operações no meio da mata, apoiadas por helicópteros e aviões, e instalaram um forte aparato de guerra. Em 14 de outubro de 1973, o comandante do destacamento A, André Grabois (filho de Maurício Grabois), e mais dois guerrilheiros morreram numa troca de tiros com agentes da repressão.

Na Comissão Militar, ao saber da morte do filho e dos demais companheiros, Maurício Grabois, sentado num tronco de árvore, começou a assobiar o Hino Nacional e todo o grupo se pôs a cantar — uma forma de homenagear os guerrilheiros mortos. Na reunião da Comissão Militar de meados de novembro, Ângelo Arroyo foi designado para o comando do destacamento A — com a previsão de que os três destacamentos seriam unificados na reunião seguinte, marcada para o dia 20 de dezembro.

Os destacamentos B e C, perseguidos pela repressão, juntaram-se à Comissão Militar, formando uma única força. Esse agrupamento dirigia-se para uma localidade conhecida como Palestina, onde o destacamento B havia deixado alguns depósitos, quando foi atacado pelos militares, e, temeroso de novas investidas, decidiu juntar-se ao destacamento A, que estava refugiado na mata.

Durante o longo e penoso percurso, a Comissão Militar enviou dois guerrilheiros para avisar Ângelo Arroyo que a reunião prevista para o dia 20 de dezembro seria adiada e deveria ocorrer onde estava o destacamento A, e pedir que ele providenciasse alguma comida. No final da manhã do dia 25 de dezembro, Ângelo Arroyo e mais cinco companheiros, com quatro latas de farinha, dirigiam-se ao local onde estavam acampados os demais guerrilheiros e a mais ou menos um quilômetro de distância ouviram um intenso tiroteio.

Uma patrulha comandada pelo major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) encontrou o grupo de guerrilheiros no final daquela manhã de Natal. No tiroteio contra a Comissão Militar, dos quinze que estavam no grupo dez sobreviveram. Os mortos foram Maurício Grabois, Gilberto Olímpio Maria, Líbero Giancarlo Castiglia, o “Joca” — que possivelmente foi preso ainda com vida —, Paulo Mendes Rodrigues e Guilherme Gomes Lund. Os demais se dispersaram pela mata para se protegerem do inimigo.

Gaspari dissemina informações históricas erradas ao dizer que Ângelo Arroyo é desertor. As condições de combates eram amplamente desfavoráveis aos guerrilheiros, infelizmente e os contatos se tornaram impossíveis pelo cerco que se fez na área do conflito e inexistia comunicações entre eles desde quando foram cercados às vésperas do natal de 1973. Arroyo ficou a vagar pela região do Destacamento A, sem nenhum contato com os demais guerrilheiros, naquele momento dispersos, quando surgiu a oportunidade de deixar o local, àquela altura cercado pelas forças da repressão.

As forças militares mobilizadas para o combate final eram gigantescas e foram ajudadas por aviões e helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira), lanchas da Marinha e equipes especializadas — como a Brigada de Paraquedistas, sediada no Rio de Janeiro, e o Comando de Operações na Selva. Os postos da Polícia Militar instalados nas rodovias da região funcionaram como apoios para as “investigações”.

O conceito de operações foi definido pela repressão como “guerra suja”, pelo qual não havia regras para as perseguições. Valia tudo. Moradores foram expulsos de suas casas, tiveram suas posses destruídas, foram presos e cruelmente torturados. Muitos foram executados. O efetivo mobilizado — de cerca de 20 mil homens — foi o maior movimento de tropas do Exército desde a mobilização da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Segunda Guerra Mundial.

As operações abrangeram um imenso território em volta da área de conflito e em alguns pontos foram lançadas bombas Napalm — uma espécie de reagente químico para provocar desfolhamento — na floresta. À estratégia da segunda campanha, formulada pelos generais Antônio Bandeira, Viana Moog e Hugo de Abreu, juntaram-se às colaborações do coronel do Exército português Hermes de Oliveira, veterano das guerras coloniais na África, e possíveis ajudas de militares norte-americanos. A determinação era clara: eliminar todos os guerrilheiros e não deixar vestígio. Sobreviver naquelas condições não pode ser definido como covardia, mas uma estratégia de sobrevivência.

Gaspari recorreu a essas invencionices num texto de contestação à fala despropositada do general Augusto Heleno, que numa palestra na Escola Superior de Guerra teria dito: “A Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia.” O que foi feito no Araguaia está na bibliografia do caso e na documentação da Comissão Nacional da Verdade. Há nessas fontes comprovações de que crimes bárbaros foram cometidos, como torturas e assassinatos covardes de prisioneiros, crueldade insana contra guerrilheiros e moradores da região e violações dos Acordos de Genebra e dos códigos internacionais que regem os direitos humanos.

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Augusto César Buonicore – diretor de Publicações da Fundação Maurício Grabois
Osvaldo Bertolino – editor do Portal Grabois e pesquisador da Fundação Maurício Grabois