“– Não haverá baixas, nem bombardeios, nem batalhas. Haverá apenas uma faca que não corta, um fogão que não cozinha, e uma casa que congela no inverno. Será irritante, e as pessoas vão começar a resmungar.

Sutt disse devagar, ponderando:

– É nisso que você está depositando suas esperanças, homem? O que você está esperando que aconteça? Uma rebelião de donas de casa? Um levante súbito de açougueiros e donos de mercados com suas facas e cutelos gritando ‘Devolvam nossas Lavadoras Nucleares Automáticas Super-Kleeno!’

– Não, senhor – Mallow disse impaciente. – Não espero isso. O que eu espero é um fundo geral de irritação e insatisfação que será engrossado por figuras mais importantes, posteriormente.

– E que figuras mais importantes são essas?

– Os fabricantes, os donos de fábricas, os industriais de Korell…”

Embora seja uma mera passagem da obra Fundação de Isaac Asimov, é extremamente curioso como tudo parece com o que está acontecendo na Venezuela dos últimos dias. O governo de Trump vem assinando ordens para sancionar os que executarem operações com o petro e outras criptomoedas venezuelanas. E o povo está sofrendo bastante por causa dessas investidas imperialistas que visam corroer a soberania do país sul-americano.

A classe média da Venezuela irrita-se com a situação, insatisfeita com as condições de consumo, procura outros países, denunciando o governo Maduro, como se este fosse o causador de todos os problemas. Dão entrevistas em jornais e em programas de TV internacionais fomentando, assim, a visão pró-imperialista da situação.

Quando os Estados Unidos aumentam os impostos das importações chinesas, a mídia internacional faz um reboliço, mas quando se trata da Venezuela, surge um pingado de notícias aqui e outro ali, sempre com uma pitada de distorção para, por fim, formatar a opinião pública. A conclusão é unânime: Maduro tem que cair! (desculpe o trocadilho que isso possa gerar na língua portuguesa).

A revolta da burguesia local é estridente, principalmente a ligada ao capital internacional, que se enriqueceu com o petróleo venezuelano. É a “irritação e insatisfação” dessas “figuras importantes” que constroem a imagem externa do país e, por conseguinte, a interpretação sobre o cenário político conturbado. Contudo, se não fosse a politização das massas, promovida pelo governo de Chávez, poderíamos ver a classe trabalhadora em peso nas ruas exigindo a queda do governo de Maduro, e não é o que está acontecendo. O povo venezuelano resiste…

Estou convencido, mais uma vez, a partir do exemplo venezuelano, que a transformação estrutural, rumo ao socialismo, é muito complicada. Exige perdas humanitárias imensas. O desejo de se romper com o imperialismo, objetivo da política de Maduro, gera uma intervenção extremamente agressiva do capital internacional, que não se importa em provocar fome e matar pessoas, além de dissimular os acontecimentos. Episódios de um filme antigo…

Como destaca John Bellamy Foster, “os ideólogos do capitalismo global, dedicados em demonstrar o caráter benigno do imperialismo norte-americano, insistem que a globalização e a liberalização conduzirão à igualdade econômica entre nações, grandes e pequenas”.[1] Ora, isso nunca se concretizará. É uma ideologia esdrúxula que qualquer pesquisa histórica comprova a incompatibilidade da teoria com a prática. Inclusive, a China, que vem se tornando cada vez mais imperialista, vai forçando os países sob seu domínio a ficarem cada vez mais inferiores a ela, além de promover uma desigualdade cada vez maior em seu próprio território.

A Venezuela busca uma perspectiva mais local. Um grande incentivo à agricultura familiar e a nacionalização de empresas confirmam essa posição. Não que o país latino-americano pretenda se isolar do mundo, mas pensar o global a partir do local e não o contrário, como fomos ensinados. É o que o antropólogo Arturo Escobar, partindo das observações de Arif Dirlik, chama de “glocalidade”, isto é, alternativas ao capital, apreendendo a globalização do local através da localização do global.[2]

Colonialidad del poder

Podemos somar a isto o conceito de “colonialidad del poder” de Aníbal Quijano,[3] que compreende a tentativa forçosa das elites independentes latino-americanas em introduzir um modelo de Estado-nação moderno europeu nestas terras. Desde 1492, quando a Europa impõe o seu padrão de desenvolvimento sobre os diversos povos do planeta, a América Latina é forçada a deixar suas preocupações internas para fazer parte do mundo europeu e se preocupar com os problemas impostos por ele. A prata, o ouro e as diversas riquezas naturais serviram de combustível para a consolidação do capitalismo. Desse modo, os colonizadores impuseram suas noções temporais, religiosas etc., estabelecendo novos objetivos a serem atingidos que, por sua vez, não faziam parte da dinâmica interna das gentes que habitavam este lado do Atlântico. Foi obliterando sua realidade que a América Latina passa a fazer parte do sistema-mundo administrado pela Europa.

Segundo Quijano, após as independências, as antigas elites do poder agrário colonial se identificaram com os interesses da burguesia estrangeira e se empenharam, de forma bastante expressiva, em colocar seus respectivos Estados no rol das nações mais desenvolvidas do mundo, vilipendiando novamente suas contradições internas. Os donos de escravos e de latifúndios passam a ser os novos colonizadores. Na verdade, o que houve foi um processo de independência sem a descolonização da sociedade em que as antigas elites coloniais tomaram o controle sem alterar as relações de poder existentes.

Todo o projeto e movimento contrário a esse processo é respondido violentamente, por meio de uma guerra econômica e ideológica que não se importa com as pessoas. Como disse o próprio Maduro: “somos perseguidos por tentar criar uma nova fonte de desenvolvimento para nosso povo”. O bloqueio que os Estados Unidos fazem ao governo venezuelano, como uma espécie de retaliação por não seguir a política imperialista que enriquece as elites locais aliadas ao capital internacional, é a face verdadeira do capitalismo. No entanto, a mídia e as instituições ligadas à política tradicional tentam sempre colocar um véu sobre o rosto monstruoso de uma entidade que devora, sem pestanejar, tudo que ouse se opor ou se distanciar de sua vista. Se continuar desse jeito, o modelo econômico e político já está pronto para quando os outros mundos da Galáxia forem desbravados, exatamente como a estória descrita no primeiro volume do clássico de Asimov.

 

*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

[1] FOSTER, John B. O redescobrimento do imperialismo. In: BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Trad. Simone R. da Silva e Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p.444.

[2] ESCOBAR, Arturo. El lugar de la naturaleza y la naturaleza del lugar. LANGER, Edgardo. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000, p.80.

[3] QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER, Edgardo. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000.

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil