Uma agressão judiciária à democracia
Lula. Estamos diante daquilo que Cesare Beccaria, em “Dos delitos e das penas”, chamou “processo ofensivo”, onde “o juiz”, em vez de “indiferente pesquisador do verdadeiro”, “se torna inimigo do réu”. O dia 4 de abril foi uma jornada negra para a democracia brasileira. Com um só voto de maioria, o Supremo Tribunal Federal decidiu a prisão de Inácio Lula no curso de um processo disseminado de violações das garantias processuais. Mas não só os direitos do cidadão Lula que foram violados.
O inteiro caso judicial e as inúmeras lesões dos princípios do devido processo do qual Lula foi vítima, junto ao impeachment absolutamente infundado sob o plano constitucional que destituiu a presidente Dilma Rousseff, não são explicáveis se não com a finalidade política de pôr fim ao processo reformador que foi realizado no Brasil nos anos de sua presidência. E que retirou da miséria 50 milhões de brasileiros. O inteiro arcabouço constitucional foi assim agredido pela suprema jurisdição brasileira, que aquele arcabouço tinha, ao invés, o dever de defender.
O caráter não judiciário mas político de todo esse caso é revelado pela total falta de imparcialidade dos magistrados que promoveram e celebraram o processo contra Lula. Certamente este partidarismo foi favorecido por um singular e inacreditável traço inquisitório do processo penal brasileiro: a falta de distinção e separação entre juiz e acusação, e portanto a figura do juiz inquisidor, que instrui o processo, expede mandados e então pronuncia a condenação de primeiro grau: no caso Lula a condenação foi pronunciada no dia 12 de julho de 2017 pelo juiz Sérgio Moro a 9 anos e 6 meses de reclusão e proibição a ocupação de cargos públicos por 19 anos, aumentada na apelação com a condenação a 12 anos e um mês. Mas esse absurdo sistema, institucionalmente inquisitório, não bastou para conter o zelo e o arbítrio dos juízes. Assinalarei três aspectos desse arbítrio partidário.
O primeiro aspecto é a campanha de mídia orquestrada desde o início do processo contra Lula e alimentada pelo protagonismo do juiz de primeiro grau, que divulgou atos resguardados de sigilo instrutório e deu entrevistas nas quais se pronunciou, antes da decisão, contra seu réu, à busca de uma imprópria legitimação: não a submissão à lei, mas o consenso popular.
A antecipação do juízo viciou também o apelo. O dia 6 de agosto do ano passado, em uma entrevista ao jornal Estado de São Paulo, o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, diante do qual a sentença de primeiro grau tinha sido impugnada, declarou, antes do julgamento, que tal sentença era “tecnicamente irrepreensível”.
Similares antecipações do julgamento, segundo o código processual de todos os países civilizados, são motivos óbvios e indiscutíveis de suspeição ou de impedimento, dado que assinalam uma hostilidade e um prejulgamento incompatível com a jurisdição. Estamos aqui diante daquilo que Cesare Beccaria, na obra “Dos delitos e das penas”, chamou “processo ofensivo”, no qual “o juiz”, ”, em vez de “indiferente pesquisador do verdadeiro”, “se torna inimigo do réu”, e “não procura a verdade do fato, mas procura no prisioneiro o delito, e tenta arrancá-lo e crê que perde se não consegue.”
O segundo aspecto da parcialidade dos juízes e, junto com o traço tipicamente inquisitório deste processo, consiste na petição de princípio, por força do qual a hipótese acusatória a provar, que deveria ser a conclusão de uma argumentação indutiva retirada das provas e não desmentida pela contraprova, forma ao contrário a premissa de um procedimento dedutivo que assume como verdadeiras só as provas que a confirmam e como falas aquelas que a contradizem.
Daqui o andamento tautológico da racionalidade probatória, pela qual a tese acusatória funciona como critério de orientação das investigações, como filtro seletivo da credibilidade das provas e como chave interpretativa de todo o material processual. Os jornais brasileiros referiram, por exemplo, que o ex-ministro Antônio Pallocci, em prisão preventiva, haveria tentado em maio do ano passado uma “delação premiada” para obter sua libertação, mas o seu requerimento foi denegado porque ele não havia formulado nenhuma acusação contra Lula e Rousseff, mas só contra o sistema bancário.
E bem, esse mesmo acusado, no dia 6 de setembro, diante dos procuradores, forneceu a versão desejada pela acusação para obter a liberdade. Totalmente ignorado foi ao contrário o depoimento de Emilio Odebrecht, que no dia 12 de junho tinha declarado ao juiz Moro de não haver nunca doado qualquer imóvel ao Instituto Lula, segundo o que se baseava a hipótese da acusação de corrupção.
O terceiro aspecto da falta de imparcialidade foi constituído do fato que os juízes apressaram os tempos do processo para alcançar quanto antes a condenação definitiva e, assim, com base na lei “Ficha Limpa”, impedir Lula, que é ainda a figura mais popular do brasil, de candidatar-se às eleições presidenciais do próximo outubro. Também esta é uma pesada interferência da jurisdição na esfera política, que mina pela raiz a credibilidade da jurisdição.
É, por fim, inegável o nexo que liga os ataques aos dois presidentes artífices do extraordinário progresso social e econômico do Brasil – a falta de base jurídica na destituição de Dilma Rousseff e a campanha judiciária contra Lula – e que faz das suas convergências uma única operação de restauração antidemocrática.
É uma operação à qual os militares deram nesses dias um ameaçador apoio e que está triturando o país, como uma ferida dificilmente reconstruível. A indignação popular foi expressada e continuará a expressar-se em manifestações de massa. Haverá uma última passagem judiciário, ao Supremo Tribunal Federal, antes da execução da prisão. Mas é difícil, neste ponto, de sermos otimistas.
Tradução de Rodrigo Carelli, professor da UFRJ e Procurador do MP do Trabalho.
Publicado originalmente no jornal Il Manifesto, 7 de abril de 2018