Sebastião Salgado, um homem de contradições 

Para realizar Gênesis (2013), seu projeto mais recente, o fotógrafo Sebastião Salgado afirmou ter seguido os passos de Charles Darwin, de quem lera O diário do Beagle (1839). Em seu primeiro dia de trabalho, Salgado visitou uma das ilhas de Galápagos, ao pé do vulcão Alcedo, no oceano Pacífico, e encontrou uma tartaruga da espécie que dá nome ao arquipélago equatoriano. Ele conta ter tido dificuldade de fotografar o réptil gigante, até lhe vir à mente a ideia de agachar-se e movimentar-se com as palmas das mãos e os joelhos colados no chão. Ao ficar na altura do animal, Salgado acredita ter passado uma mensagem de respeito, a mesma atitude que se preocupou em adotar tantas outras vezes ao retratar um homem, uma mulher ou uma criança.

“Quando fotografo seres humanos, nunca chego de surpresa ou incógnito a um grupo, sempre me apresento. Depois me dirijo às pessoas, explico, converso, e aos poucos nos conhecemos. Percebi que, da mesma forma, o único meio de conseguir fotografar aquela tartaruga seria conhecendo-a; eu precisava me adaptar a ela. Então me fiz tartaruga”, assim Salgado relatou o episódio em sua autobiografia, Da minha terra à Terra (2014). Tal como Darwin, do qual se diz “um discípulo”, Salgado defende a teoria de que existe uma origem comum entre todos os seres vivos. Para ele, a natureza e os animais têm uma racionalidade, uma personalidade, uma identidade ou – a palavra que costuma usar com muita frequência – uma dignidade.

Gênesis representou uma mudança na carreira bem-sucedida de Salgado. Pela primeira vez o fotógrafo brasileiro registrou imagens de animais e de paisagens naturais. Ele atribuiu essa decisão à profunda desolação em que afundou ao cobrir o genocídio em Ruanda, em 1994, durante o qual pelo menos 800 mil pessoas foram assassinadas. No documentário O sal da Terra (2014), codirigido por seu filho Juliano Ribeiro Salgado e pelo cineasta alemão Wim Wenders, Salgado revelou mais uma vez seu pessimismo em relação à espécie humana. Parte das fotos que retratam os efeitos do genocídio compôs o livro Êxodos (2000). Na realização desse projeto de seis anos sobre refugiados, Salgado revelou sua desesperança: “Eu havia enfrentado o que nossa espécie tinha de mais grave e violento e deixei de acreditar que ela tivesse salvação. Com Gênesis, mudei de opinião”.

“Ele é muito apaixonado pelo próprio trabalho”, diz Edward Burtynsky, premiado fotógrafo canadense cuja obra mostra a alteração provocada pelo processo industrial em paisagens naturais. “Gênesis trata de esperança quando aponta para a necessidade de preservar um sistema ecológico intacto. Existe algo por que lutar”, continua. Como profissional, Burtynsky admite ter as mesmas preocupações de Salgado, com a ressalva de sua abordagem “diametralmente oposta”. Ao fotografar em cores, a partir de uma perspectiva hiper-realista e muitas vezes aérea, Burtynsky não teria uma atitude de “veneração ou respeito” em relação à natureza. “O que faço é ampliar a consciência sobre as consequências da mineração, do uso da água ou da devastação florestal sobre o nosso cotidiano urbano”, ele diz. “Meu trabalho alerta para a escala e a velocidade inéditas da produção industrial com a finalidade de atender ao consumo crescente. Se continuarmos assim, espécies inteiras estarão ameaçadas de extinção.”

Apesar de ter iniciado Gênesis com uma câmera analógica, Salgado mudou de ideia e adotou uma digital no decorrer do empreendimento. As novidades param por aí. O preto e branco, a composição, a tonalidade, a estética barroca e o efeito dramático que Salgado empregou em trabalhos anteriores aparecem em Gênesis, uma tentativa de apresentar lugares do planeta intocados pela urbanização. “De fato, ele preservou sua técnica e sua estética particulares, mas o alvo de sua atenção é diferente na nova empreitada”, diz o crítico David Levi Strauss, professor da Escola de Artes Visuais de Nova York. Autora de The Cruel Radiance: Photography and Political Violence (2010), a jornalista Susie Linfield acredita que a abordagem de Salgado é muitas vezes reverente em relação ao que ele fotografa. “Suas imagens agradavelmente em preto e branco são compostas com muita minúcia, são dramaticamente teatrais e apresentam um uso da luz semelhante ao da pintura”, escreve Linfield. “É verdade que as fotografias de Salgado podem sugerir um tipo de romantismo nostálgico que relembra o realismo socialista.” Oficialmente adotado pela antiga União Soviética, o realismo socialista é uma doutrina segundo a qual as artes devem participar da consolidação do regime comunista com um registro supostamente realista das conquistas do governo e sem as tendências experimentais das artes modernas, consideradas burguesas.

Segundo Linfield, Salgado é um romântico. Ele não teria a tendência rebelde do fotógrafo francês Gilles Peress, por exemplo, pois não estimula o espectador a questionar como vê e o que sabe. No entendimento de Linfield, Peress seria um cético, alguém que deixa transparecer a própria perplexidade ou confusão mental no trabalho que produz. Peress duvida de si mesmo e pressupõe a condição humana destinada à falência. “Mesmo depois do trauma de Ruanda, que Peress afirmou ter sido também para ele um divisor de águas, não considero Salgado um pessimista. Se ele se aventurou novamente para criar Gênesis, é porque existe um otimismo a conduzi-lo. Há ainda uma tentativa de comunicar-se com outros seres humanos. Ele teria parado se a esperança tivesse cessado”, diz Linfield.

O fotógrafo brasileiro raramente aborda a relação entre suas escolhas estéticas e sua aflição existencial. Em O sal da Terra, como notou Jay Weissberg, crítico de cinema da revista Variety, Salgado discutiu superficialmente a profissão e pouco falou de suas influências artísticas. Nos depoimentos reunidos no documentário, indicado ao Oscar de 2015, ele mencionou Dante Alighieri, Lewis Carroll e Darwin para comparar o que registrou em suas fotografias às descrições da realidade contidas nos livros dos três autores. Defensor do trabalho de Salgado contra os que reputaram o brasileiro como um explorador do sofrimento dos destituídos, Strauss afirma existir um viés anti-intelectual entre certos fotógrafos. Como alguns profissionais se mostraram desconfiados do que Strauss classifica como “autoexame”, eles passaram a ignorar as questões mais urgentes da prática fotográfica. “Embora não pense em Salgado como um anti-intelectual, noto que ele evita falar dos dilemas da fotografia”, diz Strauss.

Depois do início de sua ascensão ao estrelato no mundo da fotografia, nos anos 1980, Salgado é recorrentemente criticado por ser um esteta, alguém preocupado acima de tudo com os elementos harmoniosos e belos da fotografia. Há 20 anos, críticos pós-modernos norte-americanos, entre eles Susan Sontag, Martha Rosler, Allan Sekula e Abigail Solomon-Godeau, entenderam como “estetização do sofrimento” a esperança de Salgado de que seus retratos dessem voz e dignidade a crianças refugiadas, pessoas famintas, trabalhadores sem terra e indígenas empobrecidos. Em um dos ataques mais ferozes, publicado em 1991 pela revista The New Yorker com o título “Boas intenções”, Ingrid Sischy afirmou que Salgado se obcecara pela composição de suas fotografias: interessava-lhe, sobretudo, achar “a graça” e “a beleza” nas “formas distorcidas de seus retratados agoniados”.

Sischy preferiria o ponto de vista de Walker Evans (1903-75), conhecido por seu trabalho sobre a Grande Depressão, feito para a Farm Security Administration (órgão do governo norte-americano), e autor de retratos de meeiros pobres do Alabama, reunidos em Elogiemos os homens ilustres (1941), com texto de James Agee. Ao contrário de Salgado, Evans não seria nem didático nem sentimental ao fotografar pessoas desfavorecidas, que na obra do brasileiro seriam “cuidadosamente compostas à semelhança de naturezas-mortas”. “E o embelezamento da tragédia resulta em imagens que, ao fim e ao cabo, reforçam nossa passividade em relação à experiência que elas revelam”, escreveu Sischy. “A estetização da tragédia é o caminho mais rápido para anestesiar os sentimentos daqueles que a testemunham. A beleza é um chamado para a admiração, não para a ação.” Sischy reclamou do culto a Salgado, um fotojornalista a cujo trabalho se atribuiria um poder transformador sobre noções classistas, raciais e étnicas.

Na época, Sischy ecoava a noção teórica dos pós-modernos. “Ao fim dos anos 1980, a defesa da prática documentária foi percebida na melhor das hipóteses como ingênua e, na pior, como ideologicamente suspeita”, diz Strauss, autor de dois ensaios sobre a fotografia de Salgado reunidos em Between the Eyes (2003). “Esse pensamento passou a ser o mais aceito atualmente entre os acadêmicos.” A origem dessa ideia remete a Walter Benjamin (1892-1940), de acordo com Strauss. Nos anos 1930, Benjamin refletiu sobre a reação artística ao expressionismo, que se tornou conhecida como Nova Objetividade. O filósofo alemão reclamou “do jeito como certos fotógrafos em moda procediam para transformar a miséria humana em um produto de consumo”. Para Benjamin, a Nova Objetividade “modifica a luta política a ponto de ela deixar de ser um motivo para a tomada de decisão e virar um objeto confortável de contemplação”. Strauss refuta a tentativa dos pós-modernos de fazer de Salgado um herdeiro da Nova Objetividade.

Quando pensa na fotografia documentária de Salgado, Strauss prefere citar o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, autor de um dos textos de An Uncertain Grace (1990), o catálogo da exposição organizada pelo jornalista Fred Ritchin no Museu de Arte Moderna de São Francisco, em 1990. “Salgado fotografa pessoas. Fotógrafos casuais fotografam fantasmas”, escreveu Galeano. “Como um produto de consumo, a pobreza é uma fonte de prazer mórbido e de muito dinheiro. A pobreza é uma commodity que alcança um preço alto no mercado de luxo. Fotógrafos da sociedade de consumo se aproximam, mas não entram. Em visitas apressadas a cenários de desespero ou violência, eles desembarcam do avião ou do helicóptero, disparam a câmera, explodem o flash: eles registram e correm. Olham sem ver, e suas imagens não dizem nada. Suas fotografias covardemente manchadas de horror e de sangue podem extrair algumas lágrimas de crocodilo, algumas moedas, uma ou duas palavras hipócritas dos privilegiados deste mundo, e nada disso muda a ordem do seu universo.” Strauss defende a teoria de que as imagens servem, sobretudo, para registrar a distância entre o fotógrafo e o fotografado. No relacionamento de Salgado com as pessoas que ele retrata, não haveria exploração. Tanto o crítico norte-americano quanto o autor uruguaio entendem que o fotógrafo brasileiro desenvolveu uma obra marcada pela solidariedade – que ajuda –, e não pela caridade – que humilha.

No caso de Gênesis, o que destaca Salgado na comparação com outros fotojornalistas seria a atitude, segundo Fred Ritchin. “Neste projeto, Salgado comportou-se como um fotógrafo proativo. O costume da tradição fotojornalística é o do fotógrafo reativo. Ele o desafiou, pois, em vez de denunciar um mundo destruído, Salgado apresenta um universo que merece ser preservado”, diz Ritchin, diretor do Centro Internacional de Fotografia (ICP), em Manhattan. O ICP foi o único museu a abrigar uma exposição de Gênesis nos Estados Unidos. É antiga a associação de Salgado com a instituição. Fundado por Cornell Capa, irmão de Robert Capa e criador do termo “fotografia engajada”, o ICP organizou antes mostras com o conteúdo parcial de Êxodos e Trabalhadores (1993). Ritchin define Salgado, de quem já foi editor e curador, como um fotojornalista “sentimental, nostálgico, heróico, lírico”. Em Da minha terra à Terra, Salgado se descreveu da seguinte maneira: “Sempre fui capaz de colocar minhas imagens dentro de uma visão histórica e sociológica”. Se a fotografia é “uma escrita”, Salgado acredita estar realizando com ela algo comum a todos os fotógrafos: “Fotografo em função de mim mesmo, daquilo que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando”.

Os indígenas de diferentes regiões do planeta integram esse mundo que merece ser preservado e é definido por Salgado como “prístino”. “As comunidades primitivas”, na definição do fotógrafo, ganham a companhia de animais nas 31 exposições de Gênesis programadas entre 2013 e 2016 no Brasil, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Itália, França, Espanha, China, Suécia, Alemanha, Coreia do Sul, Suíça, Singapura e Portugal. “Embora tenha um potencial polêmico, faz sentido a escolha de organizar as imagens de bichos e índios próximas umas das outras”, diz Strauss. “Essa parcela da humanidade representa a voz efetiva e tradicional na luta contra o aquecimento global.” Em sua autobiografia, Salgado justificou a escolha: “O homem das origens é muito forte e muito rico em algo que fomos perdendo com o tempo, tornando-nos urbanos: nosso instinto. Esse instinto permite sentir e prever muitas coisas, uma mudança de temperatura ou fenômenos climáticos, por meio da observação do comportamento dos animais. Na verdade, estamos abandonando o nosso planeta, por que a cidade é outro planeta”.

Mulheres da povoação Zo’é Towari Ypy, Pará, 2009
Para escrever A Different Light: The Photography of Sebastião Salgado (2012), Parvati Nair conversou com o fotógrafo brasileiro e sua esposa, Lélia Wanick Salgado. Nair iniciou sua investigação da “fotografia planetária” de Salgado porque lhe causaram admiração imagens com “uma narrativa muito clara sobre os problemas econômicos e sociais do mundo”, sobretudo em Êxodos e Terra (1997). Ela teve acesso ao material de Gênesis antes da seleção final que seria apresentada em exposições – vistas por pelo menos 1,5 milhão de visitantes – e em livros lançados originalmente pela Taschen em seis idiomas. A editora alemã programou a publicação em vários formatos, como a edição de arte e a de colecionador nos Estados Unidos. A primeira é composta de cinco edições limitadas a 100 exemplares cada, numerados e assinados por Salgado. Cada exemplar custa 10 mil dólares e vem com uma fotografia impressa e um atril projetado pelo arquiteto japonês Tadao Ando, com peso total de 59 quilos. Também numerada e assinada, a edição de colecionador custa 4 mil dólares. A edição comercial em português custa 199,90 reais, e pelos menos 60 mil exemplares foram vendidos no Brasil.

Nair percebe uma continuidade entre Gênesis e obras anteriores. “Por um lado, esse trabalho mais recente é um ponto final em uma grande carreira dedicada a entender como a modernidade promoveu a dissociação entre o ser humano e a natureza. Por outro, vejo escolhas criticáveis do ponto de vista estético e curatorial”, diz ela. A autora de A Different Light repete a ressalva de Fred Ritchin, para quem a curadoria de Gênesis, feita por Lélia, reuniu muitas imagens em um mesmo espaço, o que pode provocar um ruído considerável. “Por causa disso, o engajamento com o conteúdo das fotos fica prejudicado”, diz Nair, que visitou a exposição de Gênesis no Museu de História Natural de Londres, em 2013.

Embora se considere uma “defensora militante da beleza, da retórica e do barroquismo da sua fotografia”, Nair acredita que a majestade presente em obras anteriores desapareceu em Gênesis. “Pela primeira vez, Salgado usou a tecnologia digital e o recurso do zoom. As imagens digitais têm um contraste mais forçado e uma gradação de cinza menos evidente, e talvez por isso a beleza se arruíne. Gênesis requer outro tipo de método e seria mais interessante se houvesse a presença do mundo moderno.” Além de uma câmera digital, Salgado precisou de telefones por satélite, veículos militares, embarcações, aviões e outros recursos tecnológicos para fazer 32 viagens entre 2004 e 2012.

Nair afirma ser provocadora a justaposição de indígenas e animais. “A mensagem é que eles são seres humanos como nós, ao mesmo tempo que pertencem ao reino animal. A humanidade não é o centro, mas uma parte do mundo. Nós compartilhamos o planeta com o restante.” Nair também se diz incomodada com o romantismo em relação aos animais, como se entre eles não houvesse violência ou crueldade. Quanto ao retrato dos povos indígenas, Gênesis lhe relembrou um dos primeiros livros de Salgado, Outras Américas (1986), sobre diferentes populações indígenas da América Latina. “Nesse trabalho, os retratados pareciam um tanto mudos, bidimensionais”, ela declara. “Ele optou pela idealização de comunidades pré-modernas.” O que mais a incomodou em Gênesis foi a semelhança com as fotografias usadas no início da antropologia, no século 19, a princípio “criada como um projeto intelectual europeu e colonizador”. “Há uma sensação de que os índios são um povo exótico de um lugar distante.”

Tanto em A Different Light quanto na conversa com a ZUM, Nair retrata Salgado como um homem de contradições. Ela considera essencial lembrar a formação inicial dele, um economista que, em 1973, aos 29 anos, radicado em Paris, decidiu tornar-se fotógrafo. Um militante de esquerda que aderiu à Ação Popular, Salgado mudou-se de São Paulo para a Europa, pois receava que ele e Lélia se transformassem em vítimas da ditadura militar brasileira. “Participamos de todas as manifestações e de todas as ações de resistência à ditadura e estávamos, ao lado de nossos camaradas, ferozmente determinados a defender nossas ideias. Isso era muito perigoso, claro. Nosso grupo decidiu que os mais jovens, dos quais fazíamos parte, deviam ir para o exterior para se formar e continuar agindo de lá, enquanto os que tivessem mais maturidade entrariam para a clandestinidade”, ele declara em Da minha terra à Terra. Até hoje Salgado entende os problemas socioeconômicos a partir da óptica da esquerda. “Deveríamos admitir que a sociedade de consumo da qual participamos explora e pauperiza enormemente os habitantes do planeta”, diz ele em sua autobiografia.

“Mas há algo contraditório em um marxista que aceita dinheiro de empresas privadas para financiar a própria produção fotográfica. Gênesis alerta para o problema do aquecimento global, mas a exposição e o livro têm o patrocínio da Vale, uma mineradora”, afirma Nair. Ao mesmo tempo, Salgado e Lélia conceberam o Instituto Terra, um projeto ambiental apoiado pela Vale para reflorestar a mata atlântica na fazenda da família, em Aimorés, Minas Gerais, onde o fotógrafo cresceu. “Salgado usa a fotografia para promover a sua visão de mundo, que é planetária e panorâmica. E o resultado é o seguinte: o maior crítico dos impasses globais gera lucro.”

Nair aponta para o fato de serem pouco conhecidos os trabalhos publicitários feitos por ele para empresas como Silk Cut (cigarros), Le Creuset (panelas), Volvo (carros) e Illy (café). Em um artigo para o jornal The Independent, em 2005, Paul Arden, diretor da campanha publicitária de 1988 para a Silk Cut, revelou que o Advertising Standards Authority (ASA, órgão regulador de publicidade na Grã-Bretanha) censurou as fotografias de indígenas da Papua-Nova Guiné tiradas por Salgado “sob o pretexto de que eram ofensivas às minorias étnicas”. “Acho que o ASA ficou com medo porque não sabia como ler ou interpretar as imagens”, escreveu Arden, colecionador de fotos de Salgado e dono da galeria Arden and Anstruther, na Inglaterra.

Na campanha para a Illy, iniciada em 2002, Salgado visitou oito países (Brasil, Índia, Etiópia, Guatemala, Colômbia, China, El Salvador e Costa Rica) para fotografar os cafeicultores e a produção de café. “Em vez de se apresentar como uma promoção do café da Illy, o site da campanha declara ser o resultado de uma homenagem conjunta da Illy e de Salgado aos cultivadores de café”, escreve Nair em A Different Light. “Claramente, tal como a empresa, Salgado tenta aliar sua visão de mundo e seus compromissos éticos a sua necessidade de envolvimento com um trabalho comercial. Ao fazê-lo, contudo, ele implica sua obra no contexto capitalista que procura criticar.” Uma seleção dessas fotos sobre o café será apresenta da na Expo de Milão deste ano e publicada em livro em diferentes países. Salgado não respondeu aos pedidos de entrevista da ZUM.

Na convivência com o casal, Nair notou como Lélia é “uma mulher de negócios que sabe como lutar as batalhas”, e Sebastião, “alguém extremamente bem informado, que sempre fala em porcentagens e estatísticas”. Antes de fundar a Amazonas Images, em Paris, em 1994, Salgado passou por três das mais prestigiadas agências de fotografia do mundo: Sygma, Gamma e Magnum. Foi como integrante da última, fundada por Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger nos anos 1940, e que Salgado reputou como competitiva, que ele registrou a tentativa de assassinato a tiros do então presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1981. A exclusividade das imagens, reproduzidas em diferentes veículos pelo mundo, angariou uma receita considerável para a Magnum na época. “Devo dizer que, de alguma forma, esse tiroteio foi muito interessante para mim e para a Magnum, que andava em dificuldades financeiras: todas as minhas fotos foram vendidas!”, relata Salgado em Da minha terra à Terra.

Na mesma autobiografia, ele conta que “uma divisão em diferentes setores se impunha, a fim de responder às necessidades específicas dos fotógrafos, de gerenciar melhor seus arquivos e comercializar melhor suas imagens. Propus à Magnum a criação de unidades de produção. Tenho certeza de que isso teria permitido maior rentabilidade e coerência. Minha ideia não foi aceita”. A insistência de Salgado e Lélia na necessidade de reestruturação da agência passou a ser percebida pelos colegas como uma atitude personalista, segundo um perfil do fotógrafo publicado pela The New Yorker em 2005. “Salgado me contou que Lélia participava de reuniões da Magnum. A verdade é que ela tem um papel crucial e quase ninguém sabe direito da sua importância”, diz Nair. Ele costuma dizer que seu trabalho é possível graças à organização empresarial e ao equilíbrio afetivo oferecidos por Lélia.

Outra faceta pouco conhecida da produção de Salgado refere-se a suas influências, sobre as quais ele faz silêncio. Em conversas com o fotógrafo para escrever um dos textos do catálogo da Territoires et Vies, exposição realizada em Paris em 2005, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade percebeu que o período de Salgado em Aimorés pode ter sido o de sua formação mais essencial. Foi quando conheceu a iconografia cristã e a linguagem clássica do fotojornalismo da primeira metade do século 20. “O simbolismo religioso é muito presente. Salgado menciona que ficava à porta das igrejas católicas da região. Ele admite ter herdado a cultura barroca”, diz Andrade. “Sua utilização da linguagem fotográfica é consciente. Parte dela se inicia nos anos 1950, quando ele lia as revistas O Cruzeiro e Manchete, que reproduziam as imagens dos principais fotojornalistas daquela época.” Os integrantes da Magnum, cujo trabalho aqueles periódicos brasileiros divulgavam, seguiam um ideário da esquerda e antifascista. A ênfase era em uma interpretação subjetiva da realidade, para a qual apresentavam um argumento marcado por diferentes estados de espírito, como a raiva, a esperança, o bom humor ou a tristeza. “Embora Gênesis transite entre a fotografia artística e a documental, não se pode esquecer que a raiz de Salgado está no fotojornalismo”, diz Edward Burtynsky.

Em sua autobiografia, Salgado relata que a luz natural e as montanhas mineiras moldaram sua capa cidade de ver. “Na estação das chuvas, quando tempestades fenomenais começam a se armar, o céu fica cheio de nuvens. Nasci com imagens de céus carregados atravessados por raios de luz. Essas luzes entraram em minhas imagens. De fato, vivi dentro delas antes de começar a produzi-las. Também cresci em meio à contraluz: quando era garoto, para proteger a pele clara, sempre me colocavam um chapéu na cabeça ou me instalavam embaixo de uma árvore. Na época, não existia protetor solar. E eu sempre via meu pai vindo até mim sob o sol, na contraluz”, ele conta em Da minha terra à Terra.

Autor de História da fotorreportagem no Brasil (2003), Andrade considera Trabalhadores a obra-prima de Salgado, a quem se refere como um dos fotojornalistas mais importantes da história. “Ele concebeu um projeto com o qual viajou mundo afora, de modo obstinado, com uma reedição incansável e uma publicação a conta-gotas, capaz de mudar o nosso entendimento sobre o significado moderno do trabalho”, diz Andrade. Com Êxodos, algo teria mudado, embora uma proposta singular ainda se apresentasse: a aparência de grande empreendimento convive com a de ineditismo. “As duas obras podem ser abraçadas por um homem só. Ambas têm uma visão de conjunto e são mais autorais que Gênesis”, completa.

Andrade considera que o empreendimento mais recente de Salgado traz à mente a produção de fotógrafos paisagistas norte-americanos, como Carleton Atkins (1829-1916) e Ansel Adams (1902-84), e a linguagem consagrada da National Geographic, cuja primeira edição data de 1888. “É inevitável lembrar as imagens de áreas intocadas do planeta feitas por esses profissionais insuperáveis”, diz. “Ao ver Gênesis, parece que a fotografia está presa à camisa de força do preto e branco. Salgado percorreu o planeta com uma tecnologia digital para realizar uma obra que pedia um registro em cores.” De certa forma, é como se Gênesis se assemelhasse a um filme de Hollywood: manteve uma fórmula bem-sucedida, mas pouco original. ///

Sebastião Salgado com uma das edições do livro Gênesis, 2013
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

imagens: © Sebastião Salgado / Taschen

Genesis, de Sebastião Salgado, (Taschen, 2013)

Sebastião Salgado (1944), fotojornalista brasileiro de Aimorés (MG), é autor de Trabalhadores e, mais recentemente, Gênesis, entre outras obras.

Francisco Quinteiro Pires (1982) é jornalista. Nasceu no Brasil e vive em Nova York desde 2010.

Publicada na revista ZUM#8 (abril de 2015).

Nessa edição também foi publicado o texto …E Deus criou Sebastião Salgado, do crítico de arte e escritor Rodrigo Naves.