Nosso Marx – e a velha esquerda
Trata-se de uma efeméride especialíssima, de um pensador de estatura sem igual, nascido e falecido no século XIX, cujas ideias inspiraram abalar as estruturas da exploração burguesa moderna, em todas as grandes revoluções anticapitalistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, que de lá para cá já alcançaram o início deste novo século [2].
Breves, essas observações que seguem inserem-se aí, e baseiam-se, também, no registro da excelente contribuição da Fundação Maurício Grabois/Editora Anita Garibaldi, pela publicação da obra coletiva “Karl Marx: Desbravar um mundo novo no século XXI” (520 páginas, 28 autores; prelo).
O nosso Marx, não o deles
Certa feita, em conversa solta com J. Quartim de Moraes, comentei sobre uma resenha crítica que fiz à Revista Princípios, de um livro intitulado “Os marxismos do novo século” [3]. Quartim entrecortou de imediato: “Marxismo mesmo, só há um!”.
Concordava e concordo plenamente. O marxismo se funda no materialismo dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, opera extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo não se separar do sempre rebelde movimento da matéria. Este, caminha (estagna ou retrocede) conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno: as contradições. Ou, como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O capital”, distinguindo – indelevelmente – o “oposto” de seu método, ao de G. Hegel:
“A investigação tem que apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhado, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori” [4].
“Devastador”, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua obra – um constructo de poderosa ruptura epistemológica.
A propósito, como diz muito bem o brilhante epistemólogo e filósofo da ciência Larry Laudan, usamos “teoria” muitas vezes para caracterizar um conjunto específico de doutrinas que se relacionam (“hipóteses, “axiomas” ou “princípios”), utilizadas para previsões experimentais também específicas ou explicar fenômenos naturais. E compara, relativamente:
“Como exemplos desse tipo de teoria podemos citar a do eletromagnetismo de Maxwell, a da estrutura atômica de Bohor-Kramers-Slater, a do efeito fotoelétrico de Einstein, a do valor-trabalho de Marx, a da deriva continental de Wagner e a freudiana do complexo de Édipo” [5].
Outro grande físico, filósofo e historiador da ciência – entre nós, assim como Laudan –, Michel Paty, numa penetrante observação teórica acerca do processo de assimilação do conhecimento científico, pergunta se nós – tal como na formulação de Marx (“Contribuição à crítica da economia política”, 1959) onde “toda produção é apropriação da natureza pelo individuo no quadro e por intermédio de uma forma de sociedade determinada” – não deveríamos (“poderíamos”) então propor que
“toda produção de conhecimento científico é apropriação da matéria pelo pensamento, no quadro e por intermédio de um conjunto de formas teóricas, mas também filosóficas, ideológicas e sociais dadas” [6].
Noutra esfera, escutemos um dos maiores economistas de todos os tempos, o burguês progressista e austríaco Joseph A. Schumpeter, cuja obra cada vez mais é estudada e sua teoria original do desenvolvimento econômico aplicadas à dinâmica dos sistemas de inovação tecnológicas. Interpreta ele, em “Capitalismo, socialismo e democracia” [7], publicado pouco antes do final da 2ª Guerra Mundial:
“Para Marx, o socialismo não era uma obsessão que obliterava todas as demais facetas da vida e criava um ódio e um desprezo doentios e tolos pelas outras civilizações. E, em mais de um sentido, há justificação para o título reivindicado para o seu tipo de pensamento e volição socialistas, unidos graças à sua posição fundamental: socialismo científico”.
Assim, nosso marxismo, o marxismo de Marx, é ciência social muito avançada e neste terreno até agora inalcançável, eis o inegável – o absoluto, no sentido que lhe emprestou o (insuspeito) marxista V. Lênin, o primeiro estadista do socialismo no planeta:
“A única conclusão a tirar da opinião, partilhada pelos marxistas, de que a teoria de Marx é uma verdade objetiva, consiste no seguinte: seguindo pelo caminho da teoria de Marx, aproximar-nos-emos cada vez mais da verdade objetiva (sem nunca a esgotar); mas, seguindo por qualquer outro caminho, não podemos chegar senão à confusão e à mentira” [8].
“Confusão e mentira”. Desde a derrota – “estratégica”, disse João Amazonas – das experiências da construção do socialismo no Leste da Europa, e na URSS, a cada semana aparecia um “renovador” de Marx, um “retomador da obra de Marx”, chegando-se inclusive, no Brasil, à criação de um “marxismo sem utopia”.
A pretensão e o caráter paupérrimo dos novos (e velhos) críticos sempre foram de dar constrangimentos e pena. A acusação perene feita, particularmente aos comunistas, de esquerda “velha” vinha prosperando em nome de uma regressão ideológica e civilizatória à pré-modernidade.
Para o mesmo Lênin, a essência revolucionária e grandeza da dialética marxista, como ciência, enfoca as leis gerais do movimento do mundo, do pensamento humano. Acentuando ele que esta dialética e o materialismo filosófico fusionam-se e interpenetram-se como duas características de uma mesma doutrina filosófica: o marxismo.
Sobre a referida concepção materialista da história, para Lênin, a grande descoberta de Marx foi adequar (amoldar; aplicar) as teses do materialismo dialético à esfera dos fenômenos sociais. Segundo dissertou, em “Karl Marx” [9](1914),
“O caráter notavelmente coerente e integral das suas ideias, reconhecidos pelos próprios adversários — e que, no seu conjunto, constituem o materialismo moderno e o socialismo científico moderno, como teoria e programa do movimento operário de todos os países civilizados — obriga-nos a fazer preceder a exposição do conteúdo essencial do marxismo, a doutrina econômica de Marx, um breve resumo de sua concepção do mundo em geral”.
Socialismo científico moderno, que é essencial compreender o sentido que lhe designou Engels, em seu magistral “O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência”, pequeno livro consagrado mundialmente como “Do socialismo utópico ao socialismo científico” [10]. Para Engels, Marx fora responsável por dois passos decisivos no desvelamento dos caminhos dos programas estratégicos do movimento operário internacional. Asseverou ele em definitivo:
“Estas duas grandes descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista por meio da mais-valia, devemo-las a Marx. Com elas o socialismo tornou-se uma ciência, e trata-se agora antes do mais de continuar a elaborá-la em todos os seus pormenores e conexões” (Engels, idem, p. 149).
Enxotando espantalhos da “esquerda velha”
Por todas as razões acima assinaladas, é o livro “Desbravar um mundo novo no século XXI. Artigos acerca da atualidade e vitalidade da teoria marxista”, organizado por Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore, arrojada contribuição do pensamento marxista.
Destacaria aqui – reitero, apenas para registro – a presença de teóricos internacionais consagrados e responsáveis pelo desenvolvimento contemporâneo da teoria marxista, filósofos como Domenico Losurdo (“O individualismo e seus críticos”) e de José Barata-Moura (“Da utopia dos mundos sonhados à transformação prática das realidades”), que na obra coletiva comparecem com textos de grande escopo.
No terreno nevrálgico da economia (política), em particular pela centralidade espraiada mundo afora desde a grande crise capitalista iniciada em 2007-8, sublinharia as contribuições de Luiz G. Belluzzo (“Capital fixo, o general intellect e a contradição em processo”) e de Renildo Souza (“O capitalismo financeirizado e a seção V do Livro III d’O capital”).
Demerval Saviani (“Marx 200 anos: o autor cuja obra mudou definitivamente nossa consciência do mundo”) e J. Quartim de Moraes (“O marxismo na evolução do pensamento político”) desfecham contra-ataques fecundos às misérias da política burguesa e suas formas violentamente regressivas que acompanham a degradação capitalista.
Além de inúmeras outros importantes aportes teóricos, ressaltaria uma presença marcante de pesquisadoras do marxismo no Brasil, como Marly Vianna (“Materialismo histórico e atualidade”), de Ligia Osório Silva (“Marx e a Gazeta Renana”), de Maryse Farhi (“Progresso técnico e limites do capitalismo”), de Julia Vieira (“O Marx republicano”), de Nereide Saviani (“Repercussões autuais do pensamento de Marx em educação”), de Andreia Galvão (“Marxismo e movimentos sociais”), e de Maria Ligia Q. de Moraes (“Marxistas e feministas”).
A vasta temática em torno de Marx, fruto dessa empreitada “pesada” desafiada pelos(as) autores(as) é reveladora da força avassaladora e fértil de uma ideologia, a serviço das classes trabalhadoras subalternizadas e exploradas, e embandeirada de um projeto societário libertador não-utópico.
De outra parte, que ressoe forte e cristalino o “recado” aos espantalhos (“de esquerda”) e bonecos de ventríloquos da decadente ordem burguesa mundial: Marx, suas ideias revolucionárias e sonhos generosos pulsam como nunca: sonhos que não envelhecem!
NOTAS:
[1] Exemplifico no artigo bem recente do experiente jornalista Cyro Andrade, que vai nessa linha e, apesar do “retrato plural” que ele sempre advoga existir no “Valor Econômico” – onde em geral isto quer dizer salada de inutilidades preconceituosas -, o essencial de Marx cabe na moldura. Em: http://www.valor.com.br/ cultura/5486599/marx-ontem- hoje-e-amanha
[2] É preciso não esquecer que, Evo Morales, eleito na Bolívia, em 2005, após movimentos de massas e insurrecionais, com enfrentamos armados e colapsos institucionais, discursara: “O pior inimigo da humanidade é o capitalismo. Isso é o que provoca levantes como o nosso, uma rebelião contra o sistema, contra o modelo neoliberal, que é a representação de um capitalismo selvagem. Se o mundo inteiro não tomar conhecimento dessa realidade, que os estados nacionais não estão provendo nem mesmo o mínimo para a saúde, educação e o desenvolvimento, então a cada dia direitos humanos fundamentais estão sendo violados”. Disse ainda: “…os princípios ideológicos da organização, anti-imperialista e contrária ao neoliberalismo, são claras e firmes, mas seus membros ainda devem transformá-los em uma realidade programática”. Sicofantas de todos os quadrantes viviam gargalhando e a jurar o enterro secular das revoluções falsamente feitas em nome de Marx. Tomando a todos de surpresa, esses processos passaram a misturar luta de massas, rebeliões e voto popular, como antes, na Venezuela de Chávez.
[3] De Cesar Altamira, da editora Civilização Brasileira, 2008, 459 pp. O estudo tem relevância por realiza ampla e substantiva análise de diversas escolas de pensamento que se apresentam sob o guarda-chuva Marx. Numa frase identificativa: “Ao contrário, o marxismo tradicional sempre tentou separar os espaços econômicos dos políticos; aborda o espaço político se si mesmo, como um sujeito especial entre outros e particularmente distinto do campo econômico, e de alguma maneira oculto na chamada superestrutura política, Durante muitos anos o marxismo reduziu sua crítica da crítica da hegemonia capitalista e suas leis de funcionamento. É que a fascinação gerada pelo despotismo fabril capitalista aos olhos marxistas, com mecanismos de dominação cultural e a instrumentalização das lutas operárias, impediu de ver a atividade e a emergência do outro sujeito antagônico” (Altamira, idem, p.62).
[4] Ver: “O capital (Crítica da economia política) Livro 1, v.1: O processo de produção capitalista”, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 16.
[5] Ver: “O progresso e seus problemas – rumo a uma teoria do crescimento científico”, L. Laudan, São Paulo, Unesp, 2011, pp. 100-1. Para Laudan, “Na economia, Karl Marx tomou elementos do idealismo de Hegel, do materialismo de Feuerbach e do capitalismo de Adam Smith e seus seguidores ingleses” (idem, p. 148).
[6] Ver: “A matéria roubada. A apropriação crítica do objeto da física contemporânea”, M. Paty, São Paulo, Edusp, pp. 287-8.
[7] Editora Unesp, 2017, capítulo Sugestivamente denominado “Marx, o profeta”, p. 23.
[8] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas crítica sobre uma filosofia reacionária”, V. Lenine, Lisboa/Moscou, Avante/Progresso!, 1982, p. 108. Antes, esclarecera Lênin: “Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e última verdade objetiva, daí decorre o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade é o caminho da ciência assente no ponto de vista materialista” (p.107).
[9] Editora Avante!/Progresso, V. I. Lenine, Obras Escolhidas, V. 2, Lisboa/Moscou, 1984, pp. 181-2.
[10] Ver a nota explicativa dos tradutores da Avante!, no V. 3, Obras Escolhidas Marx-Engels, Lisboa/Moscou, 1985, pp. 104-168.