Sob o governo de juízes
“Enquanto o Congresso não faz, a Justiça tem feito. E isso não parece adequado à democracia.” Segundo o pesquisador e professor Rogério Arantes, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), o Judiciário tem assumido um protagonismo inadequado e praticamente “governa” o país, tendo em vista a postura do Legislativo.
“Assistimos recentemente a toda controvérsia em relação ao cumprimento da pena após condenação em segundo grau. O Supremo foi e voltou nessa matéria nos últimos dez anos e o Congresso Nacional não deliberou sobre isso, o que seria sua tarefa institucional. Essa última decisão sobre foro privilegiado também foi uma decisão tirada do bolso do colete”, afirma o cientista político em entrevista aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, na Rádio Brasil Atual.
De acordo com Arantes, essa preponderância do Judiciário no cenário nacional não é algo novo. “Não é exagero afirmar que já há alguns anos estamos sob governo dos juízes, em particular do Supremo Tribunal Federal. Ele (STF) foi decisivo desde que se colocaram os parâmetros normativos e legais para o processo de impeachment da ex-presidente, e desde então está no centro da relação entre poderes, administrando as relações no interior do próprio Judiciário e tomando decisões cruciais para a vida nacional.”
“Se formos remontar às origens, desde a Constituição de 1988 houve uma transferência enorme de autoridade para o STF na tomada de decisões políticas para o país de um modo geral”, pontua Arantes. “A partir da reforma constitucional do Judiciário de 2004, o Supremo foi ainda mais reforçado no que diz respeito à sua capacidade de controlar os atos dos demais poderes e a constitucionalidade das leis.”
Nessa trajetória, outro ponto fundamental que resultou em mais visibilidade e poder para o STF foi o julgamento da Ação Penal 470, o chamado Mensalão. “Mas foi nos tempos mais recentes que o tribunal assumiu essa posição ainda mais central, e o caso do Mensalão sem dúvida nenhuma foi um divisor de águas, porque foi um caso em que o tribunal, surpreendendo inclusive em relação à sua performance anterior, decidiu levar adiante uma ação penal que envolvia muitos elementos da classe política”, explica.
“Ao contrário do que se diz sobre o foro privilegiado, naquela época, dos 40 acusados apenas três tinham ‘direito’ ao foro privilegiado. Tanto que no início do julgamento, outros tantos entre os 37 pediram para não serem julgados pelo STF e que seus processos descessem à primeira instância. No entanto, sob a liderança do ministro Joaquim Barbosa, à época relator do Mensalão, esses pedidos todos foram recusados e o Supremo manteve consigo 37 réus que a rigor não deveriam estar sendo julgados ali.”
Arantes usa o exemplo da AP 470 para ressaltar que a atual discussão sobre foro privilegiado não é feita de forma mais adequada e nem representa, necessariamente, impunidade. “O foro privilegiado não tem uma direção clara em relação aos efeitos que ele produz, depende no fundo de qual é o tribunal e os juízes que estão empenhados no julgamento dessas causas”, diz. “No que diz respeito ao Mensalão, não se pode dizer que o foro teve um ‘efeito privilegiado’ para aqueles réus que foram julgados. Essa discussão está mal informada, de certo modo.”
“Não é uma matéria (foro privilegiado) que o Judiciário deveria estar conduzindo, é uma matéria constitucional e legislativa. Caberia ao Congresso disciplinar essa matéria, mas o tribunal tem governado o país, inclusive no que diz respeito às mudanças nas regras do jogo institucional, o que me parece grave, e um indício da crise na qual estamos metidos já há algum tempo.”
Recurso de Lula
Em relação à expectativa ao recurso que tramita atualmente no STF e que poderia resultar na liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o cientista político demonstra ceticismo. No plenário virtual da Segunda Turma da Corte, os ministros Edson Fachin e Dias Toffoli já se posicionaram de forma contrária à defesa.
“A estratégia de recursos do ex-presidente na Justiça, em relação à condenação que recebeu em primeira instância e no segundo grau, se dividiu em duas. A primeira era tentar reverter a execução provisória da pena logo após a condenação em segunda instância, o que exigiu tanto do STJ quanto do STF a reapreciação da tese firmada há não muito tempo acerca do cumprimento da pena após decisão do tribunal (de segunda instância)”, aponta. “Essa estratégia não prosperou e agora existe uma segunda estratégia que é uma defesa nos tribunais superiores em relação ao mérito da condenação recebida no TRF4. Os tribunais serão acionados e terão que avaliar os termos dessa condenação. Mas me parece que esses recursos que ainda estão sendo apresentados pela defesa nessa primeira linha, de não cumprimento da pena por razões que não as de mérito, tudo indica que não vão prosperar, como essa votação que se iniciou.”