O processo: golpe e claustrofobia
A primeira imagem de O processo é uma tomada aérea da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, com a câmera avançando em direção à Praça dos Três Poderes por sobre a cerca que separa apoiadores e opositores do impeachment de Dilma Rousseff. É de um país cindido ao meio que tratará este filme impressionante, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio.
O que mantém vivo e incômodo o documentário de Maria Augusta Ramos, e que o torna difícil de manusear como um ferro em brasa, é o fato de que essa cisão continua: pesquisas recentes dão conta de que metade da população brasileira acredita que Dilma foi derrubada por um golpe, enquanto a outra metade, ou hoje um pouco menos, ainda julga que o impeachment foi um processo legítimo.
Como enfrentar, num documentário, um tema tão explosivo e espinhoso? Como organizar e dar sentido a uma sequência tão confusa e vertiginosa de eventos? Para se ter uma ideia do tamanho do desafio, a diretora e sua montadora, Karen Akerman, tinham 450 horas de material filmado para condensar em pouco mais de duas horas.
Construção dramática
Sem entrar, na medida do possível, no mérito das questões discutidas na tela, pois isso já está sendo feito por ensaístas e comentaristas políticos, vamos examinar alguns dos procedimentos e opções adotados pela cineasta e os resultados assim atingidos, em termos de construção cinematográfica e eficácia dramática.
Antes de tudo, há um rígido recorte temporal. O filme começa com a abertura do processo de impeachment na Câmara e termina com sua conclusão no Senado e o consequente afastamento da presidente. A esse recorte temporal corresponde também uma delimitação geográfica: tudo se passa na Praça dos Três Poderes (em especial no Congresso Nacional) e em suas proximidades, isto é, na Esplanada dos Ministérios. O que ocorre fora desse território e que tem efeito sobre o processo é mostrado sob a forma de noticiários em telas de TV instaladas nos próprios ambientes retratados (corredores do Congresso, gabinetes de parlamentares).
A sensação de claustrofobia provocada por essa circunscrição em ambientes fechados é aliviada ocasionalmente pela inserção de planos externos abertos, em que sempre se pode ver o horizonte e o céu de Brasília. Estas imagens, em geral planos de ligação entre os nervosos embates parlamentares, têm também o efeito de instilar uma certa melancolia, um sentimento de solidão profunda, de diluição daquela agitação superficial na imensidão inamovível do país, do continente, do cosmo. O tempo incomensurável do universo contraposto ao tempo miúdo da política imediata.
Jogo de contrastes
O jogo de contrapontos parece ser a opção básica da construção dramática do filme, em vários aspectos. Há a oposição básica entre os pró e os contra o impeachment, claro. Isso se mostra não apenas na alternância de discursos de um lado e de outro e na briga de torcidas entre vermelhos e verde-amarelos, mas na maneira como são filmadas e montadas essas falas e essas palavras de ordem.
Quando a acusadora Janaína Paschoal discursa, por exemplo, vemos a reação fisionômica da senadora petista Gleisi Hoffmann; quando fala o advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo, contemplamos a expressão irônica do senador tucano Aloysio Nunes, e assim por diante. Do lado de fora, os gritos de “Fora Dilma” e “Lula na prisão” são respondidos por “Fora Temer” e “Não vai ter golpe”, menos de acordo com uma sequência linear, cronológica, e mais por uma lógica, digamos, conceitual.
Mas há também contrastes de outra ordem, mais formais, por assim dizer: sequências de debates acalorados são seguidas de imagens de corredores vazios do Congresso na madrugada, ou de um ponto de ônibus num final de tarde. Há toda uma arquitetura sonora e visual em que se alternam ruído e silêncio, tumulto e calmaria, ambientes abarrotados e espaços desertos. Cada sequência de acontecimentos parece atingir um ápice de tensão antes de ser sucedida por um longo escurecimento da tela que serve não apenas para a inserção de letreiros com informações factuais e marcos temporais, mas principalmente para propiciar um tempo de assentamento, uma pausa para reflexão.
Depois de um tempo, essa alternância rítmica de agitação frenética e tempos mortos, de vociferação e silêncio, luz ofuscante e escuridão, termina por compor uma sensação de cansaço, de desalento, ou mesmo de luto – e nisso talvez esteja a tomada mais profunda de posição da cineasta. O que começa como um filme de terror, como um Kafka filmado por Fellini – o circo bizarro da votação do impeachment na Câmara, com seus discursos em defesa das criancinhas, da família e dos militares torturadores –, termina como uma elegia, um réquiem por um país que já se acreditou risonhamente cordial e que já sonhou com um futuro de justiça e prosperidade.
O tempo dos bastidores
Uma última observação sobre o evidente desequilíbrio, nas cenas de bastidores, entre o tempo dedicado às conversas entre partidários de Dilma e o dedicado aos partidários do impeachment. A produção do filme esclareceu que os políticos e advogados petistas concederam um acesso a seus gabinetes e reuniões que foi negado pelos representantes do outro lado. A julgar pelo que se soube depois, e pelo que a imprensa vem revelando a cada dia, não terá sido casual o veto às conversas dos articuladores do impeachment: elas devem ter sido muito pouco republicanas.
Das confabulações nos gabinetes petistas, para além das táticas momentâneas de enfrentamento jurídico-parlamentar, o que deve ficar para a posteridade, provavelmente, é a dura autocrítica do então ministro Gilberto Carvalho, para quem o PT deu munição a seus inimigos ao entrar no jogo de toma lá dá cá da velha política e se distanciar dos movimentos sociais que estavam na sua origem. Mas isso é assunto para analistas políticos, e eles já estão se refestelando com o material fornecido por O processo.
José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor.
Publicado no blog do IMS (Instituto Moreira Salles)