Eu tinha quase trinta anos já, quando li a primeira vez. Comecei do maior e fui voltando para as estórias menores, mas não menos importantes. Comecei com o “Grande Sertão”. O vivente, pra terminar aquele sertão todo, tem de enfrentar primeiro o Liso do Sussuarão, feito os medeirovazes. Assim, cinquenta, oitenta páginas primeiras do livro. Se conseguir, se der conta disso, não volta mais, segue Riobaldo e Diadorim até o fim, até quando o jagunço Tatarana vê pela primeira vez o corpo nu, sem vida, do jagunço Reinaldo. Mas pra chegar lá, tem um sertão inteiro a se cumprir. Se não passar na travessia do deserto, se não aguentar o Liso do Sussuarão, melhor voltar, esperar um tempo, até tentar de novo o desafio. Ou se corre o risco de desgostar, de incompreender, de largar o sertão e ir em busca de outras paragens.

Mestre João criou um mundo inteiro. O sertão é um mundo. 

“O sertão está em toda a parte. […] Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”

É mesmo assim. A obra do mestre Rosa é como fosse um sertãozão, imenso, sem fim. Manda quem é forte. Quem quiser se aventurar por ela, que venha armado. Ah! Mas que vale a pena. A obra do mestre é feito uma lonjura de boniteza, que o vivente, por mais que peleje, não consegue abarcar com a vista. As duas cadernetinhas da viagem com a boiada, com os apontamentos dele, eu comecei a ler depois que já tinha lido tudo dele. Voltei pro princípio, praqueles garranchos, as páginas transcritas datilografadas, cheias de riscos, de anotações. Que coisa linda, sabe? 
Antônio Callado indagou o mestre Rosa, certa vez, sobre o conto “A terceira margem do rio”.

Callado achou bonito, perguntou de onde veio, qual a fonte, a ideia. A resposta do mestre Rosa era de um personagem seu: “Ai, Callado, nem me pergunte, eu cheguei a ficar assustado, parei pra rezar.”. Assim fiquei eu, ao ler as cadernetinhas da viagem com os bois. Descrente que sou, quase parei pra rezar, de tão assustado. Precisei compartilhar aquelas coisas com alguns amigos, de tão grandes, de tão bonitas que não cabiam dentro de mim sozinho, que eu precisava guardar em outros aquelas bonitezas.

É quase uma unanimidade comparar o mestre João com Joyce. Dizem que é um escritor joyciano. Sei não. Acho que a gente pode é dizer que algum outro seja rosiano. Mestre João não era assim comparável, era ele, apenas ele. Verdade que concordo quando dizem que ele leu outro mestre, o Euclides, que ele estudou os sertões descritos por Euclides. Mas o sertão do mestre Rosa era dele, sabe? Um sertão rosiano.

“Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”

Assim com a obra de seu João. Ali, parece que o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder dele mesmo. Aqueles personagens, aqueles lugares, dizem que acabou, que não existe mais, que aquele sertão não existe mais. Há quem diga que nunca existiu. Ah! O sertão sobrevive dentro do sertão. Lugares há iguaizinhos àqueles, ainda, do mesmo jeitinho, com as mesmas casinhas, a mesma igrejinha, os mesmos vaqueiros, as mesmas mulheres Joana Xaviel contando histórias. Tudo, tudo igualzinho, sobrevive ainda em recantos escondidos e esquecidos dentro do sertão. Até os bois, os burros, a vaca Porcelana, os paus d’arcos cheirosos, as porteiras gemendo.

Tudo igual, igualzinho, assim a gente entrasse num livro do mestre Rosa. Ainda há os mesmos amores, os ódios, as traições, os homens matando outros, em perversidades, as bondades, as malvadezas, deus e o diabo no meio do redemoinho. Ah! Existe sim, o sertão, existe sim. Precisa é conhecer o sertão, adentrar lá dentro, com a mesma disposição e a mesma paciência que fosse pra ler o mestre. Se conseguir, se entrar… Ah! Moço! Não volta nunca mais não. Fica sendo sertão a vida inteira. Porque sertão mora é dentro da gente. 

“O sertão é do tamanho do mundo.”

Pois se for? A obra do mestre João é assim também, do tamanho do mundo. Esse conto mesmo que falei há pouco, “A terceira margem do rio”, é assim, do tamanho do mundo, um conto imenso, que não tem fim. E “A hora e a vez de Augusto Matraga”, o que dizer dele? E “Meu tio o Iauretê”, que Callado disse ser a história curta mais importante da literatura brasileira, comparável com “A metamorfose”, de Kafka? E “Conversa de bois”, uma das mais fantásticas fábulas que já li? E “O burrinho pedrês”, trágica história de amor e traição sem par na nossa literatura? E…? E…? A obra do mestre é assim, feito o sertão, do tamanho do mundo, sem fim. Paulo Mendes da Rocha escreveu que “O ‘Grande sertão: veredas’ é uma universidade toda de escrita naquelas poucas linhas”. Ah! Que é isso mesmo. A obra do mestre Rosa dá uma universidade, da graduação ao doutorado.

“Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.”

O sertão do mestre Rosa é amor, é ódio, é dialética pura. Afinal, o que é a obra do mestre? É o sertão. E o que é sertão? Ora, o sertão é o Brasil, é o mundo. O sertão é ainda maior do que o mundo, sem fim, sem começo, dentro de nós e se esparramando pra fora, derramando-se assim pelas beiradas do universo. O sertão é isso. Leia o mestre e depois se aventure por aí, pelo sertão, deixe que ele adentre pela sua alma, pra conhecer. Ou faça o contrário, entre pelo sertão, sinta os cheiros e as cores dele, converse com o povo sertanejo, e depois vá ler o mestre Rosa, que está tudo lá, tudinho, um no outro, a obra dele no sertão, o sertão na obra dele, tudo misturado, a dialética rosiana, o amor, o ódio, o sertão. Sertão é o quê? A gente, os sertanejos, isso é o sertão. 

“Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.”
O que eu acho mesmo, pensando como o mestre, é que a gente tinha que fazer um ajuntamento de muita gente, pra ler a obra dele, pra divulgar pelo sertão afora, pra todo mundo poder conhecer e ter o direito de entender, assim, tim-tim por tim-tim, tudo o que ele escreveu. A homenagem a ele era ler, ler muito, o que ele e o que outros escreveram sobre o Brasil. Porque o mestre Rosa escreveu mesmo sempre, foi sobre os problemas universais do homem. Antônio Cândido disse isso, que “através do homem do sertão havia uma presença dos problemas universais”. E disse mais, que “o mundo de Guimarães Rosa não é em Minas, o mundo de Guimarães Rosa é o mundo. Porque o sertão é o mundo…”.

“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro…”

Pois vamos fazer isso, vamos tomar conta do sertão, desse mundão rosiano que ainda há por aí. Vamos ler o mestre Rosa, e entender melhor esse país.

“… cidade acaba com o sertão. Acaba?”

Acaba nunca. Nunca acaba. O sertão há de haver mesmo quando não houver mais nada, ainda assim há de haver o sertão. Enquanto houver homem humano haverá o sertão. Rosiano. O sertão que houve e que ainda há, escondido, esquecido, dentro de tantos outros sertões. 

O que proponho, então, aos todos poucos que aqui leem, é que vão buscar o mestre João, esquecido nalguma prateleira, vão em busca dele, leiam, releiam. Depois, se quiserem uma prosa, vou me dispondo, enquanto termino a leitura das cadernetinhas, pensando naquela boiada chefiada por Manoel Nardy, com João Guimarães Rosa na culatra, ou como flanqueador no contra-coice do lado esquerdo, sua posição predileta.

Riobaldo Tatarana ficava se perguntando, martirizado: era pautário? Tinha feito o trato? Não sei. Mas e o mestre João? Era pautário? Fico com seu conterrâneo Drummond: “Tinha parte com… (sei lá/ o nome) ou ele mesmo era/ a parte de gente/ servindo de ponte/ entre o sub e o sobre/ que se arcabuzeiam/ de antes do princípio,/ que se entrelaçam/ para melhor guerra,/ para maior festa?/ Ficamos sem saber o que era João/ e se João existiu/ de se pegar”.

Mestre João Guimarães Rosa era pautário, fez trato com o coiso, naquela sua escrita onde o demo salta de cada linha? Porque aquilo que ele escreveu, aquela lindeza que ele escreveu, aquelas bonitezas todas… Ah! Aquilo é coisa de gente, de homem? Tão bonito daquele jeito, será? Ah! Riobaldo que responda:

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”

 

*Joan Edesson de Oliveira é poeta, no outubro seco do sertão do Ceará