Quando houve a cisão do movimento comunista em nosso país em 1962 – surgindo dois partidos –, poucos foram os militantes estudantis que optaram pelo PC do Brasil (PCdoB). A maioria ficou no PC Brasileiro (PCB), incluindo os participantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Centro Popular de Cultura (CPC) ligado àquela entidade. Contudo, após o golpe militar de 1964 começaram a ocorrer algumas mudanças nesse quadro. A primeira delas deu-se no Ceará. Nesse estado, entre 1965 e 1966, a maior parte do Comitê Estudantil do PCB, liderado por Ozéas Duarte de Oliveira, ingressou no PCdoB, levando a um crescimento da influência desse partido entre os estudantes cearenses.

Algum tempo depois, em 1967, o pcdobista João de Paula Monteiro Ferreira elegeu-se presidente do DCE da Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi escolhido pela unanimidade das correntes de esquerda: do PCB aos trotskistas. Carlos Augusto Diógenes, mais conhecido como Patinhas, por sua vez, conquistou a presidência do Centro Acadêmico de Engenharia. Outro jovem militante ligado ao PCdoB, chamado José Genoíno Guimarães Neto, assumiu o Centro Acadêmico de Filosofia da Universidade Estadual. Assim, quando explodiu o movimento estudantil em 1968, o PCdoB já era a principal força política entre os universitários daquele estado nordestino.

O ano começou quente com a luta dos excedentes por vagas na UFC. Em meio a essa campanha, o reitor inadvertidamente convidou o general Dilermando Monteiro, comandante da 10ª região militar, para ministrar a aula inaugural. O Comitê Estudantil do PCdoB resolveu estragar a festa oficial. Propôs às entidades – e aos excedentes – uma manifestação de protesto contra a presença daquele representante da ditadura militar.

Na hora marcada, dezenas de estudantes tomaram assento no auditório onde se daria a “aula magna”. Quando ia começar o evento, João de Paula tomou a palavra e criticou duramente a presença do general e se retirou com grande parte da audiência. Foi um alvoroço danado e uma desmoralização para o regime. Como punição, o DCE foi suspenso por seis meses. Medida olimpicamente ignorada pela maioria dos alunos da universidade. Tudo isso aconteceu poucos dias antes do assassinato de secundarista Edson Luís na Guanabara, ocorrido no dia 28 de março.

Na cidade de Fortaleza, em repúdio àquela morte, realizou-se uma grande manifestação com mais de cinco mil pessoas – número significativo tendo em vista o tamanho daquele município. Durante o protesto, estudantes depredaram o escritório da United States Information Service (USIS). A ação foi organizada pelos comunistas que estavam num processo de radicalização, visando à preparação do clima para o desencadeamento da luta armada. Dois estudantes acabaram presos e iniciou-se uma greve universitária de sete dias.

Logo após a Sexta-feira Sangrenta e a Passeata dos cem mil, ocorridas nas ruas do Rio de Janeiro em junho, o povo de Fortaleza retomou as ruas numa manifestação reunindo mais de 20 mil pessoas – a maior ocorrida contra a ditadura naquele estado e uma das maiores do Brasil. Na sua organização se destacariam os dirigentes do PCdoB e da Ação Popular (AP).  

Na eleição para o DCE da UFC, realizada naquele ano, não foi possível a formação de uma chapa única com todas as correntes de esquerda, como ocorreu em 1967. Então, apresentaram-se três chapas: a da AP, presidida por Mariano de Freitas; a do PCdoB, presidida por José Genoino e a dos trotskistas. Os comunistas ganharam a eleição com mais votos do que a soma dos seus concorrentes, consolidando sua hegemonia no movimento estudantil cearense.

Não era apenas no Ceará que o PCdoB ampliava o seu espaço entre a juventude mais combativa. Na Bahia, ele também conheceu um crescimento significativo. Em abril de 1968, venceu a eleição para o prestigiado Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O presidente eleito foi Rosalindo de Souza.   

Certo dia, em resposta à prisão de um jovem militante do PCdoB, os estudantes capturaram e julgaram um agente da repressão que vigiava a residência universitária. O próprio Rosalindo comandou aquela ousada e temerária operação. Em agosto, expulsaram policiais disfarçados que “cursavam” a faculdade de direito. Como punição, o governo resolveu fechar a escola por alguns dias.

Com esperado, no final do ano, a chapa presidida por Aurélio Miguel Pinto Dórea – do PCdoB – venceu a eleição para o DCE da UFBA. Dela também participavam militantes da AP, que estavam num processo de aproximação com os comunistas no movimento estudantil. Uma bancada de aproximadamente sete militantes do PCdoB da Bahia participou do XXX Congresso da UNE realizado em outubro na cidadezinha de Ibiúna. O próprio Aurélio Miguel iria compor a diretoria clandestina da UNE pós-1968.

Nos estados de São Paulo e da Guanabara, o Partido tinha bem menos influência entre os estudantes. Ali a disputa era travada, fundamentalmente, entre o pessoal da AP e o das dissidências pecebistas. Mas, sua presença já começava a ser sentida. Em 1967 Antônio Guilherme Ribas, que ingressara no PCdoB, elegeu-se presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES). Esta entidade teria uma ativa participação nos acontecimentos do ano seguinte. Também começavam a se destacar personagens como Helenira Resende, estudante da USP e que seria eleita vice-presidenta da UNE.

No final de 1968, a chapa apoiada pelo PCdoB venceria a eleição para a Associação Universitária Rafael Kauan (AURK), que representava os moradores do Conjunto Residencial da USP (CRUSP). O seu candidato à presidência era Celso Nespoli Antunes. Segundo ele, a chapa ganhou a eleição com uma grande diferença de votos em relação àquela apoiada pela Dissidência (DI). Um sinal do crescimento da influência do PCdoB entre os estudantes paulistas, embora ela continuasse muito pequena comparada à da AP e à da Dissidência, comandada por José Dirceu.

Na Guanabara as coisas melhoraram quando houve a incorporação da Maioria Revolucionária do Comitê Regional do PCB e elementos da Dissidência em meados de 1968. Neste processo ingressaram várias lideranças estudantis, entre elas Lincoln Bicalho Roque e Ronald de Oliveira Rocha. Este último era presidente do Centro Acadêmico Edson Luís (CAEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Outro militante do PCdoB, Arildo Valadão, se elegeria para a presidência do Centro Acadêmico da Faculdade de Física.

Segundo Ronald Rocha, foi apenas no período de preparação do XXX Congresso da UNE que se conseguiu organizar “uma bancada do Rio de Janeiro em torno da política do PCdoB”. A partir daí houve um crescimento acentuado da influência do Partido entre os estudantes daquele estado. “Entre 1970 e 1971 ele tornou-se a força majoritária no movimento estudantil carioca. Nessa época já havia centenas de militantes e um Comitê Universitário experiente e capaz”, concluiu ele. Os jovens comunistas organizariam a União da Juventude Patriótica (UJP).

Contraditoriamente, seria após a queda do Congresso da UNE em Ibiúna – e da promulgação do Ato Institucional n. 5 (AI-5) – que o PCdoB conheceria sua maior influência nas entidades gerais estudantis, que começavam a viver na clandestinidade e terem suas bases sociais corroídas pela dura repressão policial.

Os comunistas pela unidade na UNE

Agravava-se dia a dia a disputa entre os militantes estudantis da Ação Popular e a Dissidência. No 29º Congresso da UNE, realizado clandestinamente num convento de Vinhedo (SP) em 1967, a AP havia garantido a presidência da entidade para Luís Travassos. Contudo, a votação foi apertada e decidida por pouquíssimos votos. A necessidade política de enfrentamento com a ditadura militar levou a diretoria a ser composta por membros dos principais grupos políticos de esquerda participantes do movimento. Assim, a direção da UNE passou a ser integrada por quatro membros a AP, três da Política Operária (POLOP) e três das Dissidências. Nesta composição, a AP perdeu a maioria que tinha no interior da entidade. Quando os demais grupos se unificavam, ela era derrotada nas votações.

Carlos Augusto Diógenes, o Patinhas, que esteve entre os poucos delegados pcdobistas presentes naquele congresso, nos deu o seu depoimento: “A AP se reunia com duzentos e tantos estudantes e as dissidências também. Nós do PCdoB nos reuníamos debaixo de uma mangueira com apenas onze pessoas e ainda havia a divergência do pessoal da Ala Vermelha que só queria discutir a questão do racha no partido. Foi o congresso que o Luís Travassos ganhou a presidência por apenas dois votos, enquanto nós nos abstivemos. Na época eu e o João de Paula tivemos uma reunião com Diógenes Arruda. Ele deu uma bronca danada na gente. Achou um absurdo nossa decisão e nos disse: ‘como é que vocês se abstêm num congresso desses no qual se podia ter entrado na diretoria da UNE?’”. De fato, aquela decisão colocou o PCdoB fora da entidade às vésperas de ela se tornar o epicentro das grandes mobilizações que tomariam as ruas do país alguns meses depois. 

Em meados de 1968, Ozéas Duarte tornou-se responsável pelo movimento estudantil junto à direção nacional do PCdoB, possivelmente ligado a Diógenes Arruda. Ele coordenava um grupo do qual participavam José Genoíno Neto, do Ceará; Ronald Rocha e Adriano Fonseca, do Rio de Janeiro; Aurélio Miguel, da Bahia; e Helenira Rezende, de São Paulo. Segundo depoimento do próprio Ozéas, “o partido ainda tinha um trabalho pequeno nessa frente de atuação. Mas, naquele momento, o PCdoB era bastante sólido no Ceará e um pouco na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul”.

Algo, no entanto, colocava em risco a eficiência do movimento estudantil em ascensão: as divisões internas. As acirradas disputas entre a AP e as Dissidências ameaçavam dividir o movimento estudantil ao meio. No estado de São Paulo, ainda em 1967, surgiriam duas Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs) – uma presidida por Catarina Melloni (AP) e outra por José Dirceu (Dissidência). Às vésperas do Congresso de Ibiúna, existia a ameaça real de surgirem duas UNEs.

Segundo Luís Raul Machado – ex-diretor da UNE pela AP –, “chegou-se a um ponto crítico no período anterior à preparação do congresso de 68. O presidente da UNE convocou um conselho nacional que não contou com a aprovação de cinco ou seis membros da diretoria. Esses (…) não compareceram ao conselho que se realizou em São Carlos (SP) e que ficou sem validade em termos de decisão sobre o congresso, por ter se transformado numa reunião da tendência ‘travassista’. Novo conselho foi convocado e realizado em Salvador. Nesse período chegou-se a falar em ‘duas UNEs’ tal era o grau de divergência interna no movimento estudantil”. No Conselho decidiu-se, contra o voto da AP e do PCdoB, pela realização do congresso estudantil clandestino em São Paulo. A diferença dos votos foi, novamente, muito pequena.

Diante dos perigos de uma divisão iminente, o PCdoB criou o Movimento de Unidade e Ação (MUA), cujo principal objetivo era defender a união do movimento estudantil em torno de suas entidades gerais. Lideranças estudantis comunistas, especialmente do Ceará, foram enviadas a vários estados para apresentar o programa de unidade. Sobre esse movimento depôs Carlos Augusto, o Patinhas: “No começo de 1968 com a divisão da UEE em São Paulo, o Partido lançou nacionalmente o Movimento de Unidade e Ação (MUA) que defendia o respeito às decisões majoritárias das instâncias do Movimento Estudantil. Este movimento de defesa da unidade e de combate às tentativas de divisão foi lançado através de manifesto lido por João de Paula numa assembleia estudantil na USP (…). O Partido firmou uma posição pública em defesa da unidade do Movimento Estudantil e a partir daí passou a crescer em vários estados”.

Esta é mesma avaliação de Ronald Rocha, ex-diretor da UNE: “O MUA (…) não era um movimento organizativo, mas uma política e uma forma de abordagem pautada pela proposta de unidade diante da escalada do sectarismo e da ameaça de divisão existente em 1968 (…). Dessa maneira, o PCdoB ganhou autoridade, estabeleceu novos contatos e acumulou força. De fato, foi uma política nacional, expressa num texto redigido pela Comissão Executiva do Comitê Central, mas assinado por militantes cearenses”. 

Em maio, após as grandes manifestações contra o assassinato de Edson Luís, o Comitê Central do PCdoB aprovou o documento A política estudantil do Partido Comunista do Brasil. Era uma tentativa de unificar a ação dos seus estudantes e apresentar uma alternativa para o movimento que crescia. Em primeiro lugar, critica as teses conservadoras que debitam a luta dos jovens estudantes a um suposto “choque de gerações” ou às “neuroses e aos desajustamentos sociais”. Tais ideias visavam a encobrir o “verdadeiro conteúdo das manifestações estudantis”, que, na opinião dos comunistas, se tratava de “um movimento de protesto contra a podridão dos regimes em decadência” e um “reflexo da crise geral do capitalismo”.

Ele, também, contesta as opiniões em voga dentro da esquerda pelas quais os estudantes seriam a “vanguarda da revolução”, substituindo os operários. Esta era uma ideia errônea, pois, “ao contrário do proletariado, os estudantes não representam uma força homogênea e estável. Provêm de diferentes classes e camadas sociais e renovam-se periodicamente, com o término dos cursos e o ingresso de novas turmas. Não se deve confundir a possibilidade que, em determinados momentos, têm os estudantes de se colocar na vanguarda de certas lutas com a possibilidade (…) de ser força dirigente da revolução”.

Segue reafirmando o caráter de classe do Partido: “Diferentemente de outras organizações que atuam nas escolas, o Partido Comunista do Brasil dá ênfase ao seu caráter de classe. Não é um partido de estudantes, mas uma organização revolucionária da classe operária”. Numa clara referência aos dirigentes estudantis da AP, os comunistas criticam aqueles que “utilizam as organizações estudantis sob seu controle como partido político de sua filiação” e, por isso, empregam “métodos exclusivistas”.

O documento de maio de 1968 propõe que os dirigentes estudantis concentrem “o fogo dos ataques na camarilha militar reacionária e entreguista e nos imperialistas ianques” e levem “as massas estudantis a lutarem pela derrubada da ditadura e por um poder popular”. Continua: “É necessário que as grandes massas de estudantes participem das lutas pelas reivindicações específicas e das ações políticas em defesa dos objetivos democráticos e patrióticos (…). Se as reivindicações específicas servem de motivo justo e permanente às lutas dos estudantes – e devem merecer especial atenção dos comunistas –, as questões políticas, em muitas circunstâncias, são as determinantes da mobilização das massas estudantis e da realização de grandiosas manifestações”.

 Além de estabelecer claramente o inimigo, é preciso ter em conta a justa política de alianças a ser estabelecida: “Para aplicar corretamente a política estudantil do Partido, é preciso, antes de tudo, aprender a distinguir, em cada momento e em cada lugar, as contradições fundamentais das não fundamentais, a fim de resolvê-las com acerto, fugindo ao subjetivismo e à desorientação. Isto significa que se deve fazer distinção entre os inimigos principais e os secundários, diferenciar dos amigos e estabelecer para cada um deles o tratamento correspondente (…). Na atual situação, o imperialismo norte-americano e a ditadura militar constituem os inimigos principais a combater. Embora outras forças também se oponham aos supremos interesses do povo, na presente conjuntura não podem ser considerados os alvos imediatos dos ataques das lutas de massas.”.

E conclui: “A política do Partido no movimento estudantil visa a consolidar a esquerda, ganhar o centro e isolar a direita. A esquerda, em muitos estados, é numerosa. A direita, de modo geral, é reduzida. Mas, no conjunto da massa estudantil, a parcela maior é constituída pelo centro. Ganhar essa massa intermediária para a ação contra a ditadura e o imperialismo norte-americano é um dos principais objetivos do Partido no movimento estudantil. Os ultraesquerdistas acham que a esquerda se autossatisfaz e que pode desprezar a massa do centro, impor suas palavras de ordem sem considerar a repercussão na parcela majoritária dos estudantes”. 

O PCdoB, ao lado da AP, se posiciona contra as propostas de diálogo com o governo militar que vinham sendo defendidas por alguns setores da oposição, inclusive no interior do movimento estudantil: “Não há cabimento falar em diálogo entre os estudantes, privados dos mais elementares direitos e liberdades, e os fâmulos da ditadura. Para os atuais governantes, o diálogo não passa de manobra para ludibriar a opinião pública e de uma tentativa de fazer os estudantes aceitarem o sistema instituído com o golpe de 1º de abril. Por isso, têm razão os estudantes que desmascaram o governo, exigindo, como condição prévia para qualquer diálogo, o reconhecimento oficial da UNE, a liberdade dos estudantes presos, a cessação das perseguições ao movimento estudantil etc., e que este diálogo seja realizado com a participação das massas”.

No processo de construção do XXX Congresso da UNE, aumentou a aproximação entre o PCdoB e a AP. As duas organizações colocavam a tônica de seus programas nas bandeiras políticas gerais de combate à ditadura e ao imperialismo estadunidense. Defendiam que o movimento estudantil deveria manter as mobilizações de rua. Eram contrárias a qualquer tipo de diálogo com o governo do general Costa e Silva. Por outro lado, as Dissidências pretendiam concentrar a atividade do movimento nas lutas específicas e propunham um recuo das ruas para as universidades, especialmente depois da passeata dos 100 mil. Chegaram mesmo a advogar a participação do processo de diálogo com o regime, como forma de desmascará-lo perante as massas.

Além de alguns aspectos da tática de luta contra o regime militar, aproximavam as duas organizações o vínculo político e ideológico com a China socialista, as ideias de Mao Tsé-tung e a sua crítica ao chamado revisionismo soviético. Ambas se diziam marxista-leninistas e advogavam a guerra popular prolongada como único meio de derrubar a ditadura.

O PCdoB era menos radical quanto às falsas dicotomias existentes no movimento estudantil entre organização e mobilização ou organização e luta armada. Enquanto nas manifestações os militantes do PCB gritavam “só o povo organizado derruba a ditadura” e os das Dissidências gritavam “só o povo armado derruba a ditadura”, o PCdoB lançava um panfleto que dizia “só o povo organizado e armado derruba a ditadura”. Conta-nos Augusto César Petta, dirigente estudantil em 1968, que numa das assembleias ocorridas em São Paulo, quando dirigentes das duas principais tendências (AP e Dissidência) se digladiavam em torno do que era mais importante, mobilizar ou organizar, uma estudante negra se levantou e, para espanto geral, disse que os dois lados estavam errados. Haveria uma relação dialética entre organização e mobilização. Era preciso mobilizar para organizar e organizar para mobilizar. A jovem chamava-se Helenira Rezende. O PCdoB começava a se fazer ouvir pelos estudantes paulistas.

Sobre o debate em torno de onde deveria se realizar o XXX Congresso da UNE, Ronald Rocha depôs: “no segundo semestre de 1968 a AP e o PCdoB propuseram um congresso sustentado e protegido pela mobilização de massas. O PCdoB defendia o CRUSP – no campus da USP – como o melhor local. Dezenas de milhares de estudantes de um movimento no auge, em ampla atividade político-cultural, impediriam a repressão seletiva sobre os delegados (…). Todavia, o Conselho Nacional da UNE aprovou a proposta de realizar o congresso clandestinamente por exígua maioria de votos, o que esteve na origem da queda de Ibiúna, que quase desorganizou completamente o movimento”.

Ainda segundo Ronald, apenas alguns meses antes desse Congresso o PCdoB passou a ter uma efetiva articulação nacional no movimento estudantil. Isso teria acontecido “a partir de uma reunião em São Paulo, com a assistência de Arruda, na qual camaradas com funções dirigentes no movimento do Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará se encontraram pela primeira vez”. Tendo por referência uma proposta inicial do Comitê Central, apresentada por Arruda, realizou-se um intenso debate sobre o documento que sofreu muitas alterações, incorporando sugestões dos dirigentes do Ceará e Rio de Janeiro.

Assim nasceu a Contribuição ao XXX Congresso da UNE: Combate intransigente a ditadura e ao imperialismo ianque, assinada por Ronald Rocha (RJ), João de Paula (CE) e Nair Kobashi (SP). Esta última era diretora da Associação Universitária Rafael Kaun (AURK) da USP. O documento “não era uma proposta ao Congresso, com pretensões de ser submetido à aprovação, mas um instrumento para unir e mobilizar a militância do PCdoB e seus aliados (…). Portanto, não houve uma tese nacional do PCdoB ao XXX Congresso de Ibiúna”, afirma Ronald. 

Para os dirigentes estudantis do PCdoB, a UNE deveria ter como centro “a luta contra a ditadura militar e contra os colonialistas da América do Norte”. Assim, “colocar esta luta como questão secundária ou de maneira indireta seria um grave erro. Não corresponderia ao sentimento dos estudantes e ao movimento real que se processa nas escolas e nas ruas (…). Temos que prosseguir nas lutas específicas. Mas a tarefa principal do movimento estudantil é lutar contra a ditadura e a ingerência norte-americana em nosso país (…). Tampouco é correto considerar que a luta contra a ditadura só deve ser feita partindo sempre dos problemas específicos”. Uma clara crítica às posições da Dissidência, comandada por Vladimir Palmeira e José Dirceu.

Os comunistas também se opunham ao pessoal da Polop, aliado à Dissidência, que defendia ser o centro de atuação do movimento estudantil a luta por uma Universidade Crítica. “É útil, sem dúvida, opinar sobre o tipo de universidade que o Brasil necessita. Mas, esse não pode ser o centro de nossa preocupação (…). Somos partidários de uma nova universidade, de caráter progressista e popular, uma universidade democrática (…). Mas, estamos conscientes de que tal objetivo não será conseguido sem a derrubada da ditadura e a conquista de um regime do povo (…). No fundo, a tese da Universidade Crítica não passa de simples remendo da política educacional do governo”.

As maiores bancadas do PCdoB vinham do Ceará, Bahia e Rio de Janeiro. Possivelmente, a aliança firmada com o PCdoB desse a maioria dos votos à AP e garantiria a eleição do seu candidato (Jean Marc) à presidência. Mas, antes disso, o congresso foi desbaratado pelos órgãos de repressão e centenas de delegados acabaram sendo presos. José Dirceu e Vladimir Palmeira continuariam no cárcere até serem trocados pelo embaixador dos Estados Unidos. O único que cumpriria a pena seria o pecedobista – e ex-presidente da UPES – Antônio Guilherme Ribas. Ele sairia apenas em 1971 e logo se integraria às Forças Guerrilheiras do Araguaia.  

Uma das novidades ocorridas no interior do movimento estudantil brasileiro em 1968 foi o rápido crescimento do PCdoB, que no Congresso da UNE do ano anterior tinha conseguido levar apenas onze delegados numa bancada muito dividida.

O PCdoB entra na diretoria da UNE e se torna maioria

Visando a reorganizar a UNE, em novembro de 1968 realizou-se uma reunião nacional onde se decidiu que não ocorreria um novo congresso e sim encontros por estados. Neles se aprovariam as teses e se indicariam os membros da nova diretoria da UNE. A maior parte desse processo realizou-se debaixo do AI-5 e do recrudescimento da repressão política. Apesar disso, apenas a plenária do Paraná caiu nas mãos da polícia. Entre os presos estava um dos principais expoentes do PCdoB no movimento estudantil, o cearense João de Paula. 

Os resultados dos congressos estaduais foram homologados num conselho nacional, ocorrido no Rio de Janeiro em abril de 1969. Nele Jean Marc Von Weid, da AP, elegeu-se presidente. Segundo ele, a votação foi apertada: a chapa da AP/PCdoB ficou, aproximadamente, entre 350 e 355 votos, a das dissidências 340/345, a de Marcos Medeiros 25/30 e brancos 25/30. Os votos em branco provinham da Frente Universitária Progressista (FUP), vinculada ao PCB.

Pela primeira vez, desde a reorganização, o Partido colocaria alguns militantes na diretoria da UNE. Eram eles: João de Paula, Helenira Rezende e Ronald Rocha. Mas João de Paula havia sido preso na plenária regional do Paraná em fevereiro de 1969, por isso foi substituído por José Genoíno Neto. Tanto Patinhas como Ronald Rocha afirmaram ter existido ainda um quarto nome: o do baiano Aurélio Miguel.

Esta influência comunista na diretoria da UNE tenderia a crescer. Deixemos a palavra com Ronald Rocha: “Em 1970 foi realizado o XXXI Congresso da UNE, com base em fóruns descentralizados regionalmente, nos quais o PCdoB superou a AP em número de delegados. Fui indicado à Presidência. Devido a um acordo político, a AP ficou com o cargo, pleiteando a continuidade de Honestino Guimarães – que havia substituído Jean Marc após a sua prisão –, e o PCdoB ficou com a maioria dos diretores, na época denominados vice-presidentes e com responsabilidades regionais”. Essa maioria seria mantida no congresso de 1971, o último realizado pela UNE.

Uma violenta repressão se abateria sobre o PCdoB entre 1972 e 1973, como uma resposta da ditadura militar ao desencadeamento da resistência armada no Araguaia. A UNE clandestina também sofreria duros golpes – como o assassinato de Honestino Guimarães – e, praticamente, deixaria de existir em 1973. Somente seria reconstruída seis anos depois. 

O crescimento do PCdoB naquele período se deveu a alguns acertos táticos – especialmente a defesa da unidade do movimento estudantil e das forças democráticas e populares contra a ditadura militar, mas também à opção feita pelos militantes das Dissidências de ingressarem na guerrilha urbana, especialmente após o AI-5. Muitos desses jovens abandonariam suas funções no movimento estudantil e se integrariam de corpo e alma nos grupos táticos armados da Ação Libertadora Nacional (ALN), Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Ala Vermelha etc. O PCB, por sua vez, decidiu não participar das entidades estudantis clandestinas como as UEEs e a UNE. 

O processo de emersão na luta armada – ainda que numa escala menor – também ocorreria no PCdoB. Pouco tempo depois, Helenira Rezende, José Genoíno, Antônio Guilherme Ribas, Rosalindo de Souza e dezenas de outras lideranças renunciariam ao movimento estudantil e partiriam para a montagem da guerrilha rural. A maior parte desses jovens combateria e seria morta na Guerrilha do Araguaia. As suas histórias precisariam ser mais bem conhecidas pelas novas gerações de militantes. 

Agradeço pelos depoimentos concedidos a Ronald de Oliveira Rocha, Ozéias Duarte de Oliveira e Carlos Augusto Diógenes (Patinhas). O agradecimento se estende ao historiador Jean Rodrigues Sales que nos cedeu as entrevistas feitas com Ozéas Duarte e Celso Nespole Antunes. Utilizamo-nos também dos depoimentos gravados para o projeto Repressão e direito à resistência: os comunistas na luta contra ditadura (1964-1985), executado pelo Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois com o apoio da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. 

* Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

 

Bibliografia 

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COLEÇÃO DE jornal A Classe Operária de 1968 – Centro de Documentação Fundação Maurício Grabois.

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