O desenvolvimento adiado
“Enfim, no comércio do mundo, seja áspero assim como o judeu, e baixo como ele: faça pelo poder tudo o que ele faz por dinheiro. E também: preocupe-se com o homem em desgraça tanto quanto como se ele nunca tivesse existido. Sabe por que deve se comportar assim?… Você quer dominar o mundo, não quer?” (“Adeus as ilusões”, H. BALZAC, Cap. “Aula de história para o uso de ambiciosos, por um discípulo de Maquiavel”).
Sempre atento aos signos emanados pelas trapaças do capitalismo central, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo lembrou-nos mais uma vez que as mutações do capitalismo financeirizado fizeram vicejar uma sociedade movida através do “valor do acionista”. Isto expressaria – conforme Jang-Sup Shin, de Cingapura – um conjunto de práticas de gestão empresarial que buscam maximizar a extração de valor de um ativo já existente, em detrimento da criação de valor mediante o investimento em um novo ativo reprodutivo.[1]
Notadamente nos EUA – diz-se no texto -, os últimos 30 anos, vale dizer, desde o malabarismo financeiro desregulacionista de Bill Clinton, monopólios de grosso quilate pagaram regularmente aos seus acionistas na base da integralidade dos lucros acumulados, mas não só: acrescentaram mais grana ainda, com frequência via recompra das próprias ações e distribuição de dividendos, enquanto reduziam o investimento e promovem reestruturações redutoras de custos.[2] Leia-se: entupamo-nos de lucros, fajutos ou não, mas “reorganizemos” o massacre sobre o trabalho.
Convergindo nessa temática, em excelente artigo, o sociólogo e físico alemão Wolfgang Streeck afirma que o exame acurado da história do dinheiro vem a revelar-nos de modo cristalino que Estado e finanças são irmãos siameses, embora às vezes se confrontem, mas sempre foram interdependentes. Lembrando antes que em seu “Tratado sobre o dinheiro” (1930), J. Keynes se queixa de que ao enfrentar o tema chocou-se com “muitos problemas e perplexidades”, Streeck sublinha a capacidade do dinheiro em se reconstruir – na modernidade capitalista – num “processo de desmaterialização e abstração progressiva”, no entanto acompanhado de uma mercantilização crescente, passo a passo com “a intensificação do patrocínio estatal”.
Ditadura implacável das finanças
Desde tempos imemoriais, insiste Streeck, Estados e seus dirigentes buscaram assegurar a fiabilidade do dinheiro, eles mesmos os certificando com selo de garantia e aprovação. Como se costuma dizer, o dinheiro “fala” e suas primeiras palavras são sempre “confia em mim”. E, especialmente na era da “fiananceirização” os bancos centrais são distinguidos em suas tipologias no fato de existirem “para manter as finanças a salvo das veleidades dos políticos governantes (sejam autocráticos ou democráticos)”, ao tempo que proporcionam a eles ao menos “a ilusão de que controlam os mercados financeiros. [3] Financeirização que implica essencialmente na transferência da supervisão financeira aos próprios mercados financeiros ou a supervisão dos Estados pelos mercados financeiros – reforça Streeck. [4]
Segundo ainda Streeck, a expansão global do dinheiro, em sentido amplo, passou de 104% do PIB em 2000, alcançando 125% ainda em 2015; simultaneamente, o endividamento mundial, público e privado teria atingido 321% em 2016, sobre 246% do PIB em 2000, enfatizando as consequências da grande crise iniciada em 2007-8 nesse crescimento das dívidas.
“Guerra comercial”: colapso do desenvolvimento?
“Você e eu estamos sentados sobre uma montanha de dívida pública e privada”, escreveu o jornalista David Fernández (“El País”, 31/06/2018). Citando o “Monitor Fiscal” do FMI, registra Fernández que são “motivo de preocupação” os altos níveis de dívida e os elevados déficits públicos. Os países desenvolvidos deviam então 105% do PIB, em média; os países “emergentes” 50%. A China, para o FMI, teria sido quem mais teria contribuído nesse volume total da dívida. Já os EUA terão sua dívida pública chegando ao patamar de 116% do PIB em 2019, de acordo com o próprio FMI.
Assim, o sério agravamento desse cenário internacional, deflagrado pela “guerra comercial” pelo governo Trump, certamente representará: a) uma onda ainda maior de desinvestimento global, evidentemente incidindo sobre os países subdesenvolvidos, queda esta que se manifesta desde a crise capitalista iniciada em 2007-8 e seus desdobramentos estruturais; b) “guerra comercial” que decorre principalmente de uma tentativa política “protecionista” consciente do governo imperialista dos EUA (tarifas para o aço, o alumínio e inúmeros outros produtos chineses, buscando (i) enfrentar seu déficit comercial (bens e serviços = US$ 566 bilhões; em bens isoladamente = US$ 810 bilhões, 2017), apenas com a China US$ 375 bilhões; (ii) ampliando seu déficit fiscal, também a partir da subida de sua taxa básica de juros (drenando para si ainda aplicações financeiras do mundo inteiro).
Essas políticas do governo americano amplificarão, sem sombra de dúvidas, o impacto econômico-social – e ideológico – resultante da crise global ainda não equacionada. A tragédia da imigração de centenas de milhares e a ascensão do neofascismo em várias partes do mundo são evidentes resultados da grande crise capitalista e a neocolonização comandada pelos EUA imperialista.
O que ocorre ao lado da formação de novas “bolhas financeiras”, por supervalorização recorde de bônus e ações, assim como pelo crescimento assustador do endividamento global. Noutros dados, o volume global de dívida cresceu US$ 8 trilhões no primeiro trimestre de 2018 em relação ao quarto trimestre do ano passado, atingindo US$ 247,2 trilhões, o equivalente a 318% do PIB global, segundo dados do (insuspeito) Instituto Internacional de Finanças (IIF). Essa participação em relação ao PIB cresceu pela primeira vez, desde o terceiro trimestre de 2016.
Nesse quadro, o afluxo de investimentos chineses aos EUA despencou de US$ 46 bilhões em 2016 para US$ 2,1 bilhões até o primeiro semestre deste ano. Nos últimos anos tem havido grande fluxo de investimentos, tanto do Vale do Silício quanto de Wall Street para a China (especialmente em IA, 5G e computação quântica). Ocorre que pouco se divulgou sobre a nova Lei Federal de Modernização da Análise de Risco do Investimento Externo (Firrma), elaborada diante de uma poderosa China e que teve apoio partidário de Republicanos e de Democratas. Essa lei: a) fortalece o papel do Departamento de Defesa e a área de espionagem, focada particularmente sobre quem deveria, ou não, ser autorizado a investir nos EUA; b) dificultará muito o afluxo de dinheiro das companhias americanas no país asiático.
Deve-se concluir que os EUA podem estar processando alterações significativas na maneira pela qual as empresas captam capital e fazem negócios globalmente. [5]
NOTAS
[1] Ver: “Acionistas de valor”, L. Belluzzo, Carta Capital, publicado em 14/08/2018.
[2] Conforme Belluzzo, entre 1976/1985, as transferências de valor para os acionistas chegaram a 290 bilhões de dólares (0,4% do PIB dos Estados Unidos). Entre 1986 e 1995, alcançaram 1,54 trilhão, para avançar entre 1996/2005 para 4,46 trilhões (2,6% do PIB) no período 2006/2015.
[3]“El quarto poder?”, W. Streeck, em: New Left Review, nº 110, mayo-junio 2018.
[4] O artigo-resenha de Streeck é sobre o livro de Joseph Vogl, “A ascendência das finanças”, Cambridge, Polity Press, 2017.
[5] Dados e informações sobre a lei norte-americana em: “Cerco aos investimentos EUA-China”, de Rana Foroohar, Valor Econômico, 14/08/2018.