Paulo Prado teve grande projeção entre os intelectuais no final da década de 1920. Era membro de uma tradicional família de cafeicultores paulistas,filho primogênito do conselheiro do Império Antônio Prado. Foi um dos mentores da Semana de Arte Moderna e, seis anos depois, em 1928, publicou o seu trabalho mais importante Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira. A obra conheceu um sucesso imediato e teve três edições em menos de três anos.

Procurava expor as origens remotas dos males que afligiam o país e impediam o seu desenvolvimento. O objetivo implícito era combater as visões românticas e exageradamente otimistas, representadas por obras como as de Afonso Celso. Ao contrário do afirmado pelo renomado ufanista, Paulo Prado acreditava ser o brasileiro um povo fundamentalmente triste. Vários fatores históricos, sociais e psicológicos contribuíram para esse fenômeno. O livro Retrato do Brasil começa com a frase emblemática,síntese desua tese principal do autor: “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram”. Dois fatores eram responsabilizados pela tristeza do homem brasileiro: a luxúria e a cobiça.

O retrato traçado dos colonizadores portugueses não era dos mais lisonjeiros: “Corsários, flibusteiros, caçulas das antigas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remisso, vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas (…) e insubmissos às peias sociais – toda a escuma turva das velhas civilizações, foi deles o Novo Mundo.” Por Novo Mundo entenda-se América Portuguesa. Continuava o autor: “Do contato dessa sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes. Segundo o próprio testemunho dos escritores portugueses contemporâneos, a imoralidade dos primeiros colonos era espantosa e excedia toda medida”.

A comparação com a colonização inglesa dos Estados Unidos não poderia nos ser mais desfavorável: “Essa gente (os colonos ingleses) trazia para o Novo-Mundo o princípio de liberdade e rebeldia que o fizera deixar a mãe-pátria: eram representantes do pensamento radical da Inglaterra no começo do século XVII, em revolta contra a autoridade espiritual e temporal (…) foi sem dúvida a forte disciplina religiosa dos primeiros agrupamentos congregacionistas o que fixou o tipo moral dominante na história do país. (…). Nesse processo evolutivo, a religião, estabelecida em condições favoráveis de higiene moral, preparou a atmosfera saudável em que pôde prosperar a nação”. Uma brutal idealização dos nossos “irmãos do norte” e dos anglo-saxões em geral. 

A luxúria e a cobiça

A vida sexual dos primeiros colonos conduziria ao “esgotamento das funções sensoriais” e, também, afetaria o “domínio da inteligência e dos sentimentos”. Ela produziria no organismo “perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma aspecto patológico, indo do nojo até o ódio”. Assim, a tristeza “sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviado para as perversões eróticas, de um fundo acentuadamente atávico”. Paulo Prado cita um velho ditado: Post coitum animal triste, nisi gallus qui cantat, ou seja, “após o coito, o animal fica triste, salvo o galo, que canta”. Ironicamente, o modernista Oswald de Andrade, criticando essa ideia, escreveria: “a luxúria brasileira não pode ser julgada pela moral dos conventos inacianos”.

Segundo Paulo Prado, a escravidão teria agravado este quadro de erotismo e depravação. Aqui, novamente, revela o seu preconceito de classe aristocrático: “Os escravos eram terríveis elementos de corrupção no seio das famílias. As negras e mulatas viviam na prática de todos os vícios. Desde crianças começavam a corromper os senhores moços dando-lhes as primeiras lições de libertinagens. Os mulatinhos e crias eram perniciosíssimos. Transformavam as casas em verdadeiros antros de depravação. Senhores amasiavam-se com escravas, desprezando as esposas legítimas, e em proveito da descendência bastarda.” Numa inversão completa da lógica e da história real, o elemento corruptor passava a ser as negras, os moleques e não o senhor de escravos.

Esses colonizadores erotizados viviam obcecados pela possibilidade de descobrir metais preciosos, e a “desilusão do ouro” levaria a mais tristeza pela “inutilidade do esforço”. Essas duas obsessões (luxúria e cobiça) levavam à constituição de um povo triste. “Luxúria, cobiça = melancolia. Nos povos, como nos indivíduos, é a sequência de um quadro de psicopatologia: abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abulia, tristeza. Por sua vez, a tristeza, pelo retardamento das funções vitais, traz o enfraquecimento e altera a oxidação das células produzindo nova agravação do mal com seu cortejo de agitação, lamúrias e convulsões violentas”.

A tese apresentada no livro, em certo sentido, era bastante original. Constituiu-se numa tentativa de leitura do Brasil não assentada no determinismo racial ou geográfico (tão típico no início do século XX), mas desviava-se para outro tipo de determinismo: o psicológico. Haveria, para ele, povos alegres e povos tristes. Também existiriam povos que alternavam estes estados de espírito e os divididos igualmente entre tristes e alegres. No Brasil, o “véu da tristeza” se estendia “por todo o país, em todas as latitudes”. Apenas escapariam o gaúcho da fronteira, “mais espanholado”, e o carioca por “viver numa cidade grande e marítima, em contato como o estrangeiro e entregue ao lazaronismo do ambiente”.

Ao contrário do tristonho brasileiro, o povo “inglês é alegre, apesar da falta de vivacidade e da aparência; o alemão é jovial dentro da disciplina imperialista (…); todos os nórdicos da Europa respiram saúde e equilíbrio satisfeito. O nosso próprio antepassado de Portugal (…) é um ser alegre quando comparado com o descendente tropical, vítima da doença, da pálida indiferença e do vício da cachaça”. Assim como o erotismo e a cobiça provocam, no indivíduo, estados de tristeza, o mesmo pode ser observado na sociedade como um todo.

Dante Moreira Leite, contestando Paulo Prado, escreveu: “A tese parece tão frágil e tão incoerente, que talvez fosse desnecessário discuti-la; ainda que o esquema fosse válido na psicologia individual – e, evidentemente, não o é –, seria absurdo numa hipotética psicologia coletiva (…) que chega à conclusão de que essa tristeza pode ser transmitida às gerações seguintes”.

Sobre o processo de miscigenação, suas ideias não poderiam ser mais confusas. Primeiro, debitou este fenômeno à “luxúria” e ao “desleixo social”. Isto teria levado os brasileiros a superarem toda e qualquer “repugnância física ou moral”. “Entre nós”, continuou ele, “a mescla se fez aos poucos, diluindo-se suavemente pela mestiçagem sem rebuço. O negro não é um inimigo: viveu, e vive, em completa intimidade com os brancos e com os mestiços que já parecem brancos. Nascemos juntos e juntos iremos até o fim de nossos destinos.”  

Recusou-se a adotar as teorias de Gobineau e de outros racistas tão em voga no final do século XIX e início do século XX: “Todas as raças parecem essencialmente iguais em capacidade mental e adaptação à civilização. Nos centros primitivos da vida africana, o negro é um povo sadio, de iniciativa pessoal, de grande poder imaginativo, organizador, laborioso. A sua inferioridade social, nas aglomerações humanas civilizadas, é motivada, sem dúvida, pelo menor desenvolvimento cultural e pela falta de oportunidade para a revelação de seus atributos superiores. Diferenças quantitativas e não qualitativas”. Continuou: “o mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral”.

Contudo, seguindo num caminho oposto ao anunciado, completou: “Por outro lado, as populações (brasileiras) oferecem tal fraqueza física, tão indefesas contra a doença e os vícios, que é natural indagarmos se esse estado de coisas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças”. A própria dúvida assim exposta já nos induz a uma resposta preconceituosa de fundo racista.

Dentro da lógica eugenista – fortemente enraizada no interior das elites brasileiras e de sua intelligentsia–, levanta a hipótese de que miscigenação, ao longo do tempo, pode levar à degeneração de um povo: “A história de São Paulo, em que a amalgação se fez intensamente (…) é prova concludente das vantagens da mescla do branco com o índio. Hoje, entretanto, depois de se desenrolarem gerações e gerações desse cruzamento, o caboclo miserável – pálido epígono – é descendente da esplêndida fortaleza do bandeirante mameluco. A mestiçagem do branco e do africano ainda não está definitivamente estudada. É uma incógnita”.

E, por fim, diz ser possível constatar um processo de “arianização do habitante do Brasil”, fruto do cruzamento contínuo. Assim, o “negro desaparecerá aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro”. Ele não afirmava ser isso um fato positivo – como os adeptos do branqueamento – nem negativo. Dava à afirmação um caráter de constatação científica, neutra. Podemos ver que Retrato do Brasil” avança em relação às teorias abertamente racistas, predominantes entre nós no início do século, mas não consegue superá-las integralmente, mantendo-se nos marcos do que denominaremos racismo mitigado ou racismo à brasileira. 

A Revolução de Paulo Prado

A obra de Paulo Prado foi publicada no auge da crise da República Oligárquica, quando o governo federal passava a ser afrontado por revoltas militares – o tenentismo.  A revolução estava entrando na ordem do dia. Este espírito da época também pode ser notado em Retrato do Brasil. “Para tão grandes males”, escreveu ele, “parecem esgotadas as medicações da terapêutica corrente: é necessário recorrer à cirurgia. Filosoficamente falando (…) só duas soluções poderão impedir o desmembramento do país e sua desaparição como um todo uno criado pelas circunstâncias históricas, duas soluções catastróficas: a Guerra ou a Revolução”.

Ao descrever o que seria esta Revolução, alertava não ser ela “uma simples revolta de soldados”, pois isto seria se “encerrar numa modalidade estreita a ânsia de renovação que é a própria pulsão vital da História”. A revolução deveria vir “de mais longe e de mais fundo”. E concluía: “Será a afirmação inexorável de que, quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo o que foi mal feito”.

A ideia de Revolução exprimiria “a síntese de duas tendências opostas: esperança e revolta”. “Para o revoltado, o estado de coisas presentes é intolerável, e o esforço de sua ação possível irá até a destruição violenta de tudo o que ele condena. O revolucionário, porém, como construtor de uma nova ordem, é por sua vez um otimista que ainda acredita, pelo progresso natural do homem, numa melhoria em relação ao presente.” A radicalidade vazia do discurso – contrastante com o espírito do livro – não poderia se traduzir num programa revolucionário nem na apresentação das forças sociais em condições de realizá-lo.

Paulo Prado terminou seu ensaio com uma nota “otimista” – o máximo a que poderia chegar um pessimista convicto e militante. Concluiu que deveríamos ter confiança no futuro porque ele não poderia “ser pior do que o passado”. Ao contrário de muitos membros da dissidência oligárquica paulistas, Paulo Prado não participou da Revolução de 1930 e, dois anos depois, apoiou a contrarrevolução constitucionalista de São Paulo.

As teses presentes em Retrato do Brasil, como afirmou Marco Aurélio Nogueira, “estavam manchadas de certo ‘preconceito’ contra atributos tidos como típicos do brasileiro (a preguiça, a luxúria, a cobiça, o romantismo), perspectiva que havia colorido muitas páginas escritas por viajantes estrangeiros”. Não foi por outro motivo que o historiador marxista Nelson Werneck Sodré associou o livro (consideradoo ‘retrato de uma classe’ e não do Brasil) à ‘ideologia do colonialismo’. Ele refletiria “o desespero burguês ante a falta de perspectiva histórica para a sua classe”.

* Este texto compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).

** Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi

Bibliografia 

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SODRÉ, Nelson W.  A Ideologia do Colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis (RJ): Vozes, 1984.