O fogo que coloniza
Em 2 de setembro de 1822, observando a conjuntura política e as exigências de Portugal, a princesa regente Leopoldina, substituindo D. Pedro I nas decisões do Palácio, convocou o Conselho de Estado e sancionou a independência do Brasil. Levou alguns dias para seu marido receber a carta com a deliberação e anunciar o feito, oficializando uma data. O príncipe, até então, não estava completamente convencido em romper com a metrópole. A reunião histórica de Leopoldina aconteceu no Palácio de São Cristóvão, hoje cinzas do Museu Nacional.
Da conquista, a cena que ficou registrada na memória social do brasileiro é a da pintura de Pedro Américo, que cristalizou D. Pedro I em uma figura corajosa e imponente, levantando sua espada em um ato heroico, acompanhado de tantos outros homens valentes prontos para a guerra. O artista sequer era vivo em 1822; criou sua obra a partir do discurso da corte e do que sua imaginação quis.
Mais coerente com a realidade foi a cena retratada por Georgina de Albuquerque. Em comemoração ao centenário da independência, ela registrou o verdadeiro ato heroico da história: pintou “Sessão do Conselho de Estado”, tela que mostra Leopoldina chefiando ministros e secretários, decidindo o futuro autônomo do Brasil. O quadro hoje está no acervo permanente do Museu Nacional, se não tiver queimado junto com 90% da reserva da instituição.
Exatos 196 anos depois da conquista da princesa regente, no mesmo dia e local da decisão, o fogo se alastrou e fez o Brasil adoecer, como se tivesse acordado com amnésia e ameaça de piora das sequelas conforme o tempo passar. Sem memória, voltou a ser dependente; agora ele precisa que o digam quem foi, o que fez, o que aconteceu. O preocupante é quem irá contar essa história.
Provavelmente será Pedro Américo e seus descendentes patriarcas, herdeiros de engenho. Vão dizer que antes da chegada dos portugueses, não havia nada no Brasil; que a independência foi proclamada por um homem guerreiro e que nossa identidade reside em construções recentes com janelas de vidro azul espelhado à la Miami. Se alguém questionar, cadê provas do contrário? Não existe mais nada e cada vez menos.
A história é feita muito mais de esquecimentos do que de lembranças. Se até hoje o que é mais revivido em 7 de setembro é o grande “grito do Ipiranga” de D. Pedro I, o Museu Nacional lembrava a população de que foi uma mulher a grande líder da independência. Se até hoje se fala que os portugueses “descobriram” o Brasil, o acervo indígena da instituição recordava que existiam milhares de sociedades, de culturas diversas, e que o colonizador foi um invasor violento e genocida.
Agora apagaram tudo, assassinaram milhares de populações que ainda resistiam pela relíquia ali conservada. O que resta é o vazio e o grito silencioso que não para de ecoar pelos ventos que carregam as cinzas de tanta história.
O prédio da independência virou pó; 12 mil anos de humanidade queimaram em poucas horas; Perdeu-se tudo do acervo de línguas indígenas: gravações sonoras de cantos de populações exterminadas, artefatos, mapas singulares com localização de todas as etnias do país, registros em áudio de idiomas que não possuem mais nenhum falante vivo. Depois de tanto trabalho, tanta pesquisa, tantas viagens e escavações, tantos livros lidos e guardados, tantos obstáculos enfrentados, tantos bens recolhidos e protegidos, volta-se agora para a ideia de que o país não tem passado, de que não houve sangue derramado e injustiças impostas, de que conquistas não foram feitas e derrotas não foram choradas.
O Brasil nunca soube sua história. E as pistas para o conhecimento, guardadas a sete chaves no Museu, foram jogadas nas chamas por decisão consciente do governo federal, com seus cortes na educação, na pesquisa e na cultura, com sua decisão de não ouvir as incessantes reivindicações das universidades, dos museólogos, dos agentes culturais, dos arquitetos e de tantos mais especialistas que alertaram para o perigo que nossas instituições culturais e universidades correm.
Que se lembrem das manifestações contra o congelamento de gastos em educação e da repressão violenta do governo – a Esplanada dos Ministérios em Brasília virou campo de guerra. Que se lembrem das ocupações em prol da proteção do Ministério da Cultura, desprezadas por Michel Temer, que tentou enganar a população recriando um MinC sucateado e inoperante. Que se lembrem das manifestações mais recentes em frente ao Ministério da Educação contra a negligência às universidades: a polícia abriu fogo contra um grupo irrisório de estudantes. Que se lembrem.
Apesar do luto, agora é momento de se ter atenção. Os neoliberais se aproveitam da dor pública para chorar por privatização, para acusar a universidade gratuita, para criminalizar o reitor que faz mágica com o orçamento mínimo que recebe, quando a culpa é toda da presidência cruel do Brasil, que diz que cultura pouco merece, que educação é direito só de quem pode pagar e que pesquisa vai ficar congelada por décadas. Em menos de 2 anos de teto de gastos, o passado inteiro se perdeu. Não há memória, não há identidade, não há pertencimento.
Não há mais independência.
Que tragam os especialistas franceses para dizer o que é cultura. Que deixem às empresas privadas internacionais a responsabilidade de disponibilizar recursos para proteção e revitalização do Museu. Se o Brasil não soube cuidar, os europeus estão aí para ajudá-lo a redescobrir a sua história. Eles vão contar direitinho como foi, têm tecnologia para isso. Viva o neo-neocolonialismo. Dependência ou morte!
*Raisa Pina é doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília, professora e pesquisadora em arte, política e cultura brasileira.
Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil.