O psicanalista Christian Dunker, autor do premiado Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros foi um dos convidados do Seminário Internacional “1917: o ano que abalou o mundo“, realizado pela Boitempo e pelo Sesc em São Paulo, com apoio da Fundação Maurício Grabois. Organizado em torno do centenário da Revolução Russa, um dos acontecimentos históricos definidores do século XX, o evento reuniu entre os dias 26 e 29 de setembro mais de trinta conferencistas, nacionais e estrangeiros. Dunker participou da mesa de encerramento do Seminário com os franceses Pierre Dardot e Christian Laval, que lançavam o explosivo Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, em mesa mediada pela economista Laura Carvalho. Antes da conferência, no entanto, ele preparou para o Blog da Boitempo este artigo que reflete sobre o impacto da Revolução Russa no pensamento de Sigmund Freud e sobre lugar da psicanálise na Rússia revolucionária. 

* * *

A psicanálise na Rússia
A psicanálise florescia na Rússia nos idos de 1917, ano da Revolução Russa. Foi em Moscou que a psicanalista russa Vera Schmidt criou, em 1921, a primeira pré-escola psicanalítica do mundo – experiência bastante inovadora que contou com a direção de Sabina Spielrein, por sua vez, uma das primeiras psicanalistas mulheres, tragicamente fuzilada por tropas nazistas em 1944. Vigóstski e Luria chegaram a traduzir e introduzir, em primeira mão a obra Além do princípio do prazer, de Freud (publicada em 1925 na Rússia).

Já em 1922, Freud mostrava-se impressionado com as atividades do Instituto Psicanalítico de Moscou, e chegou a propor sua inclusão na Associação Psicanalítica Internacional. Essa integração institucional, no entanto, acabou sendo adiada por “motivos administrativos” segundo argumentação de Ernest Jones, seu biógrafo oficial. A atitude do Estado Científico Soviético aqui era ambígua: precisava de recursos para enfrentar a privação generalizada, os milhares de órfãos, a ascensão das taxas de suicídio, os estupros massivos contra mulheres e toda sorte de situações traumáticas do pós-guerra, mas também não sabia dizer ao certo se a psicanálise encontrava-se entre as vanguardas que deviam ser apoiadas.

Nesse contexto, o psiquiatra Aron Zalkind publica uma série de ensaios de inspiração psicanalítica defendendo a importância de considerar a sexualidade no contexto da revolução, bem como a necessidade de alguma regulação para os temas do aborto, da opressão contra mulheres e a proteção dos trabalhadores sexuais. Em 1923, depois de apoiar o grupo psicanalítico de Moscou, suas publicações e a abertura de uma clínica-escola para formação de psicanalistas e atendimento à população, Lênin apoiava efetivamente a psicanálise como parte de uma política pública.1

No entanto, com a morte de Lênin, em janeiro de 1924, essa atitude de aproximação começa a mudar completamente. A partir da ascensão de Andrei Jdanov, que ficou responsável pela política de cultura no regime de Stálin, a psicanálise será considerada uma ciência burguesa, individualista, mecanicista e contrarrevolucionária – proscrita, portanto, na União Soviética. Já em uma carta de 23 de fevereiro de 1927 Freud escreve a Osipov, em Praga:

“As coisas estão indo mal para a psicanálise na Rússia soviética; por algum motivo os bolcheviques puseram nas suas cabeças que a psicanálise é hostil ao sistema. Você sabe a verdade, que a nossa ciência não pode ser tomada a serviço de qualquer partido, mas ela requer uma mente aberta [Freiheitlichten] para o seu desenvolvimento”2

Freud e a Revolução Russa
Mas o que, afinal, Freud disse sobre a Revolução Russa? Em O futuro de uma ilusão, datado de 1927, Freud descreve o experimento revolucionário socialista como a abolição da classe burguesa e a eleição de um inimigo. Em O mal-estar na civilização, publicado logo em seguida em 1930, ele se mostra cético sobre o futuro da sociedade comunista. Diz ele:

“As premissas psicológicas nas quais o sistema comunista está baseado mantêm ilusões insustentáveis. A agressividade humana não foi alterada nos seus fundamentos naturais e nesse processo ela será provavelmente enviada a novas áreas de conflito social. Só podemos nos preocupar com o que os soviéticos farão depois de se livrar dos burgueses.”3

É nesse contexto que se poderá entender o comentário mais extenso que Freud dedica à Revolução Russa, e que se encontra em sua conferência sobre “A questão de uma visão de mundo [Weltanschauung]”, publicado originalmente no volume Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, de 1932/3. O texto começa argumentando que a psicanálise não é uma visão de mundo, e nem necessita ser. Isso acontece, como alguns críticos ignoram, porque ela se inscreve sob a égide da visão da mundo (Weltanschauung) da ciência, ponto sintético e terminal com o qual se conclui o texto:

“Opino que a psicanálise é incapaz de criar uma visão de mundo particular. Não lhe faz falta isso; ela forma parte da ciência e pode aderir a visão de mundo científica. Mas esta apenas merece esse grandiloquente nome pois não contempla o todo, é demasiadamente incompleta, não pretende absolutismo algum, nem formar um sistema.”4

Aqui, “ciência” é definida por um atributo positivo (a insistência em um mundo exterior real) e dois negativos (ater-se à verdade e desautorizar ilusões). Depois de discutir com o que ele considera propriamente as três visões de mundo que concorrem com a ciência (a saber: a arte, a filosofia e a religião) e argumentar que a filosofia “não é oposta à ciência, pois ela mesma se comporta como uma ciência”,5 ele chega a dois outros fenômenos correlatos de uma visão de mundo. O primeiro é o anarquismo político defendido pelos niilistas intelectuais, cuja crítica da ciência, assinala Freud, muitas vezes parece apenas uma etapa inicial para a posterior implantação de algum tipo de doutrina religiosa, como se “a teoria da relatividade moderna lhes tivesse subido à cabeça”.6 Para eles, estaria suspenso o “critério de concordância com o mundo exterior”7 e a consequência é o fracasso logo no “primeiro passo na vida prática”8.

O segundo caso deve-se tomar muito mais a sério. Trata-se do marxismo. Freud começa salientando que as indagações de Marx sobre a estrutura econômica da sociedade alcançaram uma grande autoridade, mas que ele não consegue julgar a pertinência de sua tese em todos os seus detalhes. Ainda que aproximativo, o entendimento de Freud sobre a tese de Marx é, sucintamente, o seguinte:

“[…] desenvolvimento das formas de sociedade é um processo de história natural, em que as mudanças na estratificação surgem umas das outras pela via de um processo dialético.”9

Para Freud, isso não soa suficientemente “materialista”, aproximando-se de um precipitado da obscura filosofia hegeliana. Para ele, as diferenças sociais foram, na origem, diferenças de linhagem ou de raças e a história se faz porque “os vencedores se converteriam em amos, e os vencidos em escravos. Assim, não se descobre nada com uma lei natural nem com uma mudança dialética de conceitos”.10 Apesar da interpretação bastante discutível do que pensava Max e do que são “leis dialéticas”, é neste ponto que ele interpola uma observação sobre a Revolução Russa:

“[…] o despotismo russo estava condenado já antes de perder a guerra, pois nenhum cruzamento de famílias dominantes da Europa haveria podido engendrar uma casta de tsares capaz de resistir ao poder deflagratório da dinamite.”11

Ou seja, não teria sido a revolução popular que derrubou o regime tsarista: este teria caído sob seu próprio peso. A sequência do argumento freudiano é mais ou menos típica: a política mudou com a tecnologia, a invenção de aviões e submarinos tornou as fronteiras algo diferente do que eram até então. O argumento é coerente com o discurso do texto, que insiste na afinidade entre ciência e psicanálise e no contraste comparativo primeiramente com a arte, a religião e a filosofia, e num segundo momento com a política, anarquista ou marxista. O governo sobre a natureza é o primeiro governo freudiano e é como cientista que Marx é reabilitado no texto:

“A força do marxismo não reside evidentemente em sua concepção de história nem em sua previsão do futuro, baseada naquela, mas em sua penetrante demonstração do influxo necessário que as relações econômicas entre os homens exercem sobre suas posturas intelectuais, éticas e artísticas. Assim se descobriram uma serie de nexos e relações de dependência que até então estavam ignoradas por completo.”12

Ou seja, não é a luta de classes mas a teoria da ideologia, entendida como momento e crítica das ilusões, que parece interessar mais a Freud. Tais fatores econômicos devem ser conjugados com as exigências pulsionais da autoconservação, do prazer de agredir, da necessidade de amor, da ganância de prazer e da evitação do desprazer. É assim que chegamos ao ponto tão controverso no qual Freud estabelece o programa para uma efetiva ciência da sociedade:

“Se alguém estiver em condições de demonstrar em detalhe o modo como se comportam, se inibem e se promovem entre si estes diversos fatores, a disposição pulsional comum a todos os homens, suas variações raciais e modelos culturais sob as condições de regimes sociais, a atividade profissional e as possibilidades de ganhar o sustento; se alguém o conseguisse, haveria completado o marxismo e convertido este em uma real e efetiva ciência da sociedade. É que em verdade a sociologia, que trata da conduta dos homens em sociedade, não pode ser outra coisa que psicologia aplicada. Em sentido estrito só existem duas ciências: a psicologia pura ou aplicada e a ciência natural”13

Em outras palavras, o marxismo seria para Freud uma teoria social manca. Dito isso, chegamos ao juízo sobre a “intervenção revolucionária” realizada por meio do bolchevismo russo e da teoria marxista. Essa combinação, ou seja, o complemento entre a teoria científica do marxismo e os interesses do partido e dos movimentos sociais, está na origem do “absolutismo e exclusivismo”14que caracterizariam uma visão de mundo (Weltanschauung), assemelhando-se assim ao que no início combatia. Sendo a princípio um “fragmento de ciência, edificado sobre a ciência e a técnica para sua realização, tem-se [posteriormente] uma proibição de pensar”15 tão intransigente como foi a religião.

O ponto crucial aqui é como o regime soviético teria inibido a prática da crítica tornando as obras de Marx semelhantes à Bíblia e o Corão. Disso decorreria, para Freud, a hipótese de uma sociedade sem “fricções” e de um engajamento livre e não compulsório no trabalho, ideais que se apoiam na hostilidade de pobres contra ricos e na dos oprimidos contra os poderosos. Tal transformação da “natureza humana” seria altamente improvável. A compensação para sua irrealização poderia estar na criação de um inimigo externo, que cumpriria o papel de explicar o caráter incompleto da revolução. Surge assim, no interior do bolchevismo, a promessa religiosa de que os sacrifícios de hoje serão compensados por um futuro melhor que vai ressarcir seus fiéis, com o reino de Deus na terra. É nessa medida que Freud antecipa o contra-argumento bolchevique: mas como então transformar os seres humanos sem usar a compulsão coercitiva da proibição de pensar e aplicação de violência, até mesmo o derramamento de sangue? Diante desta pergunta Freud recua e responde humildemente: “não sei”.

É só depois de implantar fortemente a psicanálise no campo da visão de mundo da ciência, depois de delimitar o que seria uma efetiva ciência da sociedade, depois de ponderar sobre a aliança local desta ciência com os bolcheviques e de resignar-se enfim diante do problema da educação em um contexto racial e de pobreza, que Freud estabelece os limites de sua própria posição. Diz ele então que “nós não somos os únicos a quem esse problema importa”. Há também o que Freud chama de “homens de ação”, caracterizados da seguinte maneira:

“[…] inamovíveis em suas opiniões, inacessíveis à dúvida, insensíveis aos sofrimentos dos demais quando estão em jogo seus propósitos. A tais homens devemos o fato que se há realizado agora na Rússia um ensaio grandioso de uma ordem desta índole. Em uma época em que as grandes nações do mundo proclamam esperar sua salvação da afirmação da piedade cristã, a revolução na Rússia – apesar de seus desagradáveis detalhes – produz o efeito de um evangelho de um futuro melhor.”16

Para Freud, o futuro desenlace desse ensaio é imprevisível, uma vez que talvez ele tenha se empreendido prematuramente. Uma alteração completa do regime social dependerá de “novas descobertas” que facilitariam a satisfação de nossas necessidades, ademais capazes de responder às “exigências culturais do indivíduo”17.

Salientemos que essa opinião acontece em um momento stalinista, que colocou fim ao breve, porém fértil, momento trotskista da Revolução Russa. Lembremos que em 23 de setembro de 1923 Trótski escreveu sua famosa carta a Pavlov afirmando que:

“Durante meus anos em Viena eu tomei contato com os freudianos, li seus trabalhos e até mesmo estive presente em seus encontros. […] Eles fizeram uma série de descobertas e conjecturas inteligentes apesar de cientificamente arbitrárias sobre as propriedades da mente humana. […] A teoria psicanalítica de Freud pode ser reconciliada com o materialismo.”18

Na carta, o dirigente soviético argumenta que Pavlov e Freud estavam trabalhando em modelos similares de teoria da mente, com pontos de saída opostos. Quiçá essa simpatia de Trótski, mais do que as críticas encomendadas a Bakhtin e Stoliarov, tenha sido fatal para a psicanálise russa. Este parece ter sido o abraço da morte de Trótski em Freud. Contra a opinião de Lênin, de que a teoria freudiana seria uma moda passageira, muitos acusaram Tróski de capitular diante da psicologia burguesa, esquecendo-se assim do front neuropsicológico.

Para alguns, a Revolução Russa durou apenas alguns meses. Durante esse breve período de extrema criatividade cultural e política, a psicanálise esteve entre as vanguardas que imaginaram um novo tempo. Seria esse experimento uma nova ilusão, uma regressão a formas anteriores de dominação, uma recusa do que há de irredutível, incurável ou impossível? Isso ainda está por se definir. O que não se pode negar na atitude freudiana de apreciação crítica dessa experiência é a cidadania que ela definitivamente tem entre os termos da conversa. Em um texto de menos de 20 páginas, nas quais se discute as visões de mundos possíveis, divididas entre as formas religiosas, científicas, artísticas e políticas, a Revolução Russa ocupa quase cinco páginas. Talvez Freud tivesse percebido que as chances da revolução e da psicanálise, serão sempre pequenas, mas nem por isso menos impensáveis.

Notas

1 Martin A. Miller. Freud and the Bolsheviks: Psychoanalysis in Imperial Russia and the Soviet. New Haven: Yale, 1998.
2 Martin A. Miller. Freud and the Bolsheviks. p. 97.
3 Sigmund Freud. “Mal Estar em la Civilizacion”. Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII.Buenos Aires: Amororttu, 1930.
4 Sigmund Freud. “En torno de uma cosmovisión”. Conferência 35 Nuevas Conferências de introuducción al psicoanálisis, 1932-1936. Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu. p.168.
5 Sigmund Freud. “En torno de uma cosmovisión”. p.148
6 Idem. p.162.
7 Idem. p.162.
8 Idem. p.163.
9 Idem. p.163.
10 Idem. p.164.
11 Idem. p.164.
12 Idem. p.165.
13 Idem. 166.
14 Idem. 166.
15 Idem. 166.
16 Idem. 167.
17 Idem. 168.
18 Martin A. Miller. Freud and the Bolsheviks. New Haven: Yale, 1998. p. 87.

***

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise.